Paulo Kliass
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
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Crise da Evergrande: o mundo à espera da China, por Paulo Kliass

Questão central é: como Pequim, interessada em afirmar-se globalmente, reagirá frente à voracidade do setor privado?

Por Paulo Kliass

Em Outras Palavras

A passagem do equinócio em 22 de setembro neste ano será marcada pela irresponsabilidade assumida publicamente por Bolsonaro na tradicional abertura da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque. O sentimento generalizado de vergonha alheia, compartilhada pela maioria da população brasileira, vem se somar à exposição vexatória no espaço internacional de um presidente que mais se parece com um chefe de facção do que um chefe de Estado.

No entanto, ao longo dos mesmos dias desta viagem escandalosa perpetrada por Bolsonaro, as manchetes dos jornais de economia pelo mundo afora também estão dando grande destaque a uma situação de crise profunda experimentada por uma das maiores empresas de construção de moradias do mundo, a chinesa Evergrande. Trata-se de um grupo empresarial bastante robusto, que terminou por diversificar sua área inicial de atuação. Com isso, passou a contar com unidades em setores tão heterogêneos como veículos elétricos, atividades esportivas e empreendimentos turísticos.

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O registro da crise atual é que a empresa deve cerca de US$ 300 bilhões e não consegue oferecer as garantias mínimas de que os credores possam vir a receber os valores, tal como previsto nos contratos e nos prazos acordados. A tentativa de comparação com a crise que se iniciou nos Estados Unidos em 2008/9 é inescapável. No caso norte-americano, a presença forte de duas grandes operadoras de hipotecas imobiliárias – Fannie Mae e Fred Mac – também contribuiu para a propagação das dificuldades em superar a profunda falta de liquidez que afetou o setor.

A crise de 2008 e a situação atual na China

Deu-se ali o quadro típico daquilo que o jargão do financês chama de bolha especulativa. Os preços dos ativos das empresas eram catapultados pela valorização insustentável dos preços dos imóveis de forma generalizada. Esse movimento se retroalimentava na seara especulativa e a falta de regulamentação do setor público deixava o mercado se resolver sozinho. Os contratos de financiamento por meio de hipotecas de longo prazo revelaram também a fragilidade do sistema e a incapacidade das famílias continuarem a cumprir com os pagamentos devidos, em razão da crise econômica e social. Em pouco tempo, deixada à lógica do salve-se quem puder, a solução do mercado veio sob a forma de falências, desvalorizações expressivas, expulsões por não pagamento das mensalidades e/ou aluguéis. Enfim, destruição de riqueza e patrimônio que haviam sido artificialmente inflados na onda da especulação irracional.

O fator que agravou a crise naquele momento no mercado financeiro dos Estados Unidos foi a interdependência entre as empresas e ausência de regras que impedissem esse movimento de valorização artificial. Os empréstimos eram repassados para instituições intermediárias e assim sucessivamente, sempre nessa estratégia de repassar para terceiros os riscos envolvidos nas operações. Quando a crise explodiu e colocou a sobrevivência de todo o sistema financeiro em xeque, o governo norte-americano decidiu intervir nas duas empresas, sob o argumento do “too big to fail” – elas seriam muito grandes para falir.

No caso da Evergrande, a questão parece ser mais simbólica do que suas congêneres norte-americanas. Apesar da grande dimensão do conglomerado, ele não atua com o poder isolado no mercado imobiliário chinês. Analistas estão mais preocupados em antecipar qual será a reação do governo central para enfrentar a crise. O setor da construção civil é um dos principais carros chefes da economia do país e um abalo no mesmo pode ter consequências graves para o ritmo de crescimento do PIB, uma vez que suas atividades representam por volta de 15% do produto do país. Além disso, existe todo o efeito em cadeia no resto da economia e a estratégica geração de empregos

No entanto, ao contrário do ocorrido nos EUA, as autoridades chinesas decidiram por estabelecer as chamadas medidas macroprudenciais, com a intenção de evitar ou diminuir os riscos envolvidos nesse movimento descontrolado de repasse de riscos e créditos artificialmente valorizados. Por meio da divulgação das regras das “três linhas vermelhas”, a intenção era desestimular aventuras especulativas no mercado imobiliário. No entanto, as empresas que operam no setor pareciam não se incomodar muito em seguir as recomendações do setor governamental. A crise da Evergrande é o exemplo mais cristalino dessa postura de parte dos empresários do ramo.

As expectativas a respeito da reação do governo

A indefinição inicial das autoridades parece refletir o dilema: i) intervir e comprometer a credibilidade do sistema, por um lado; ou, ii) deixar o mercado buscar a solução por conta própria, com as incógnitas de um vendaval social e econômico, por outro. No entanto, o próprio Presidente Xi Jinping havia declarado anos atrás, em mensagem endereçada ao Congresso do Partido Comunista Chinês em 2017, que o governo não seria complacente com esse movimento. Segundo ele, (…) “não nos esqueçamos que casas são para morar e não para especular” (…)

Ocorre que a contaminação do mercado imobiliário chinês pelas práticas nada saudáveis da especulação desregulamentada do mercado financeiro ocidental avançou muito mais do que se imaginava. Assim, coloca-se como bastante séria a possibilidade de ocorrer algum tipo de efeito em cascata, caso nada seja feito pelo governo no caso Evergrande. Na operação deste complexo xadrez, entram em cena atores tão diferentes quanto instituições financeiras, empresas construtoras, investidores institucionais do tipo fundos de investimento e os próprios compradores dos imóveis na ponta.

Mais uma vez a China se coloca frente às dificuldades de promover a articulação de um modelo que representa, por excelência, a contradição em movimento. Ou seja, trata-se de operar uma sociedade em que convivam as características de um Estado regulador e mantenedor dos interesses da maioria da população trabalhadora e aquelas de um sistema capitalista de mercado, que incorpora intrinsecamente a desigualdade, a concentração, o lucro, a financeirização e também a especulação.

No caso concreto, qualquer que seja a linha da intervenção a ser adotada, ela oferecerá à população local e ao do mundo os recados a respeito de como o Estado asiático pretende atuar no sentido de arbitrar perdas e ganhos patrimoniais no setor. Isso significa trazer para si a responsabilidade pela busca do difícil equilíbrio entre respeitar os interesses precípuos da função da moradia e os desejos típicos e simbólicos do empreendedor dessa nova fase da sociedade chinesa.

Leia também:

+ O problema está fora da China, nas bolhas de outros mercados, por Luis Nassif

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Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

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