O familiar Homo Ignorans, por Ladislau Dowbor

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
[email protected]

good_bye_cruel_world_by_crilleb50-d39r6uu

do Outras Palavras

O familiar Homo Ignorans

Que será a racionalidade? Um caminho para o conhecimento? Ou a busca de suposta superioridade moral, para disfarçar preconceitos e busca e privilégios?

Por Ladislau Dowbor

homo sapiens todos conhecemos. Inclusive a maior parte da teoria econômica e das teorias das transformações sociais se baseia numa compreensão otimista de que o homem absorve conhecimentos, confronta-os com os seus objetivos racionalmente entendidos, e procede de acordo. Quando erra, analisa os erros e corrige a sua visão para não repeti-los.

Naturalmente, é agradável pensarmos que somos, conforme aprendi na escola, animais racionais, racionalidade que nos separaria confortavelmente dos animais. As minhas dúvidas aumentam proporcionalmente à minha idade, o que significa que são elevadas. Pensar que somos mais do que somos é uma atitude muito difundida. A bíblia já abre com o tom adequado: Deus nos criou à sua imagem e semelhança, o que implica por virtude dos espelhos que somos semelhantes nada mais nada menos que a Ele. O tamanho desta pretensão, e o fato de passar tão desapercebida e natural, já mostra a que ponto a nossa racionalidade pode ser adaptada ao que é agradável, mas não necessariamente ao que é verdadeiro.

Pensar na dimensão irracional da nossa inteligência, ou nas raízes interessadas e ideologicamente deformadas do que nos parece racionalmente verdadeiro, é muito interessante. Existe um termo simpático para isto, que é a racionalização. Fazemos uma construção racional em cima de fundamentos profundamente enterrados na confusão de paixões, medos, ódios e sentimentos contraditórios. Quanto maior o preconceito – no sentido literal, raiz emocional que assume a postura antes do entendimento – maior parece ser a busca do sentimento de superioridade moral.

Devemos lembrar como foram denunciados e massacrados ou ridicularizados os que lutaram pelo fim da escravidão, pelo fim da discriminação racial, pelos direitos de organização dos trabalhadores, pelo voto universal, pelos direitos das mulheres? Hoje é a mesma luta pela redução das desigualdades, pelo fim da destruição do planeta, pela democratização de uma sociedade asfixiada por interesses econômicos. Aqui precisamos de muito bom senso e generosidade. Ou seja, emoções e indignações sim, mas apoiadas na inteligência do que acontece no mundo e visando o interesse maior de todos, e não no interesse particular de defesa dos privilégios.

Aqui realmente é preciso de muita ignorância, ou seja, desconhecimento (voluntário ou não), para não se dar conta dos desafios reais. O aquecimento global é uma ameaça real, mas a direita tende a negar, como se o termômetro e a medida dos gazes de efeitos de estufa fossem de esquerda. O desmatamento generalizado do planeta está levando a perdas de solo fértil em grande escala, quando iremos precisar de mais área de plantio. A vida nos mares está sendo esgotada pela sobrepesca e em 40 anos, segundo o WWF, perdemos 52% da vida vertebrada no planeta. É um desastre planetário espantoso, mas não aparece na mídia comercial. Os dados sobre a inviabilização ambiental do planeta são hoje amplamente comprovados. Mas as opiniões se dividem: é questão de opinião ou de conhecimento dos dados?

No plano social é mais impressionante ainda: até Davos escuta e divulga as pesquisas da Oxfam, do Banco Mundial e das Nações Unidas, dos inúmeros institutos de pesquisa estatística em todos os países sobre a desigualdade crescente da renda. Pior, temos agora os dados da desigualdade do patrimônio acumulado das famílias – 85 famílias são donas de mais riqueza acumulada do que 3,5 bilhões de pessoas na base da pirâmide social – gerando tensões insustentáveis, mas em Wall Street enchem a boca e declaram “greed is good”, é bom ser ganancioso. Sobre esta desigualdade de patrimônio uma das principais fontes é o Crédit Suisse, que tem boas razões para entender tudo de fortunas familiares. Vamos tampar os olhos e fazer de conta que acreditamos que é possível manter a paz política e social num planeta onde 1,3 bilhões não têm acesso à luz elétrica, 2 bilhões não têm acesso a fontes decentes de água, 850 milhões passam fome. Tem sentido acreditar no bom pobre¸ que se resigna e aceita, quando hoje até no último degrau da pobreza há uma consciência do direito a ter uma escola decente para o filho, saúde básica para a família? Aqui já não são apenas os olhos e os ouvidos que estão tapados, e sim a própria inteligência.

E porque toda esta riqueza acumulada no topo não serve para as reconversões tecnológicas que nos permitam salvar o planeta, e para financiar as políticas sociais e inclusão produtiva capaz de reduzir as desigualdades? Basicamente porque está situada em paraísos fiscais, aplicada em sistemas de especulação financeira, sequer interessada em investimentos produtivos tradicionais. Os 737 grupos que controlam 80% das atividades corporativas do planeta são essencialmente grupos financeiros. Fonte? O Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica. São recursos que não só se aplicam em especulação financeira em vez de investimento produtivo, como migram para paraísos fiscais onde não pagam impostos. O Economist estima que sejam 20 trilhões de dólares, um pouco menos de um terço do PIB mundial.

O Brasil tem cerca de 520 bilhões de dólares em paraísos fiscais, da ordem de 25% do PIB. O HSBC que o diga. Mas no Brasil a grande vitória é a eliminação da CPMF que cobrava ridículos 0,38% sobre movimentações financeiras. No Brasil a direita identifica o culpado pelas dificuldades atuais: não o desvio de recursos através da máquina financeira, mas os excessos de gastos sociais do governo. Ainda bem que temos a corrupção para canalizar a atenção e os ódios. O uso produtivo dos recursos não seria mais inteligente?

Não há nenhuma confusão sobre as dimensões propositivas: se estamos destruindo o planeta em proveito de uma minoria que pouco produz e muito especula, trata-se de tributar a riqueza improdutiva para financiar as políticas tecnológicas, ambientais e sociais indispensáveis aos equilíbrios do planeta. Com Ignacy Sachs e Carlos Lopes apontamos rumos básicos no documento Crises e Oportunidades em Tempos de Mudança, não são ideias que faltam: falta muita gente que tampa o sol com a peneira dos seus interesses se dar conta dos desafios reais que enfrentamos.

Confesso que ando preocupado. Parece que quanto maior a bobagem declarada, maior o sentimento de superioridade moral. E o ódio, esta eterna ferramenta dos preconceituosos, é um sentimento agradável quando se consegue encobrir o interesse com um véu de ética. Nesta nossa guerra permanente entre o frágil homo sapiens e o poderoso e arrogante homo ignorans, a olhar pelo mundo afora, e pelos gritinhos histéricos de extremistas por toda parte – sempre em nome de elevados sentimentos morais e com amplas justificações racionais – o direito ao ódio parece superar todos os outros. Pobre Deus, nosso semelhante.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

10 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

    1. Foi ao ponto certo.

      Nas circunstâncias dadas no mundo, a razão é utópica, um texto como este não tem identidade e receptividade no homem irracional realmente existente.

  1. Eca!

    Isso parece subliteratura de autoajuda.

    Essa caricaturização fácil da racionalidade é como um avestruz com a cabeça no buraco.

    Há muitas racionalidades possíveis. Isso depende da lógica simbólica de cada formação cultural.

    Como se não bastasse a conhecida contraposição habermasiana entre racionalidade de meios e racionalidade de fins, no contexto de nossa própria racionalidade ocidental (e bote pesadas doses de capitalismo nessa dança), há muitas outras formas possíveis de arranjar não só as relações entre termos como também entre muitos termos dentro de uma relação.

    Os antropógos costumamos lembrar o exemplo clássico da feitiçaria entre os Azande, da África Central, que nos foi legado por Evans-Pritchard: um celeiro caiu em cima da cabeça de um sujeito e o matou; a causa física? o celeiro caiu porque os cupins comeram suas vigas; mas o mais importante para os Azande é fazer uma pergunta mais, que exige resposta: mas por que o celeiro caiu exatamente no momento em que o sujeito estava lá embaixo? Nós respondemos com o conceito “acaso”. Os Azande respondem com o conceito “feitiçaria”, e aí vão buscar suas causas através dos oráculos. Afinal, o que precisa ser irremediavelmente investido de sentido estratégico são as relações sociais (ameaças, feiticeiros e outros bichos), para poder administrar melhor a vida social, e não aquilo que chamamos “natureza”. A resposta dos Azande é tão racional quanto a nossa. É apenas uma questão de escolher onde termina uma cadeia de causalidade e onde estão as relações significativas para uma certa visão de mundo.

    Brincar com tipificações caricaturais como essa entre homo sapiens e homo ignorans é, na verdade, perder a dimensão mais larga da diversa e contraditória aventura humana. Esses discursos morais são tão curtos quanto o que eles pretendem criticar.

    1. também não foi muito bem

      olá ricardo, é um texto breve esse do dowbor… deixe pra lá e cuide mais das estratégia retóricas; desse modo tão duro não se faz ouvir.

    2. Não seja injusto com professor Dowbor, Schiel.

      Olhe para a história, veja as guerras e a “racionalização” que fizeram delas o homem na sua história mais recente; quanto mais o homem “racionalizou” as guerras, mais inclementes, mais destrutivas se tornaram, até o ponto da mútua capacidade acumulada de se autodestruirem muitas vezes, quando apenas uma basta, vale dizer, mais irracionais se tornaram as guerras dessa criatura que se enxerga racional. Que racionalidade você veria nessa pratica ancestral do homem, as guerras, que ainda são atualíssimas na sua história presente?

      Não me venha com a explicações racionais de historiadores, explicar o irracional não o torna racional, se encontro uma explicação racional para alguém que teve um surto psicótico, não posso chamar o comportamento observado durante o surto de racional. 

      Um homem adulto pleno de sua faculdades mentais, observado individualmente, é capaz de comportamentos racionais, mas os mitos, as crenças, superstições e ideologias que se apega para manter seus vínculos e relações sociais, não são nada racionais. No século XIX, Marx olhou para a sociedade dividida em classes e concluiu que vivemos na pré-história, mas que surgia a possibilidade de compreender sua dinâmica e propor a transformação para passar a história; a divisão ainda persiste, continuamos os mesmos trogloditas, animais sociais imersos numa sociedade completamente irracional. Como pode uma sociedade irracional constituir racionalidades? Os indivíduos representativos e hegemônicos dessa sociedade são igualmente irracionais, se fossem o contrário, ela já teria ruído desde sua base. Observe com atenção a história e verá que ela dá razões ao professor.

      Não estou muito atualizado com a metodologia científica dos antropólogos, mas nos campos científicos que eu mais navego, não cabe o emprego do sobrenatural para a explicação racional de nenhum fenômeno, aliás, parece que esta é uma separação fundante da ciência, não? Daí estranhar que antropólogos aceitem que uma resposta pelo sobrenatural seja “tão racional quanto a nossa”. Sim, em ciência, “há muitas racionalidades possíveis”, mas nenhuma fundada no sobrenatural; é tão “racional” uma explicação baseada na mitologia de uma tribo do interior da África, quanto o criacionismo dos evangélicos e neoconservadores americanos.

      Um abraço.

      1. Sim, muitas racionalidades, para além da ciência inclusive.

        Caro Almeida

        Os antropólogos (há excessões, evidentemente) não costumamos tomar nenhuma instância discursiva como a representante da natureza, nem dizer que aí repousa a “racionalidade em última instância”. Ao contrário, como sugeriria Roy Wagner, em toda cultura há coisas que são dadas como construídas, e coisas que são construídas como dadas.

        Tampouco reconhecemos uma “natureza em última instância”. Pelo contrário, as culturas humanas dispõem, segundo regimes variáveis, a relação entre natureza e cultura (ou subjetividade) (aliás, proposições desse tipo foram as responsáveis por colocar a antropologia brasileira no mapa da excelência mundial da disciplina ao entrarmos no novo milênio, ou, o que vem sendo conhecido como “ontological turn” da antropologia contemporânea; cito o grande inspirador dessas ideias: Eduardo Viveiros de Castro).

        Exatamente por não haver “natureza em última instância” é que a “sobrenatureza” é uma construção permanentemente circunstanciada. Ela não é o momento de exclusão da racionalidade, senão para uma formação cultural em que as coisas construídas como dadas excluem impositivamente qualquer ponderação (“razão”, em sua raiz etimológica, nada mais é do que “proporção”) sobre quaisquer outras coisas. É uma espécie de iluminismo totalitário. Esse tipo de atitude intelectual, ao invés de ganhar em possibilidades, perde em estreiteza.

        O que eu quero sugerir, por exemplo, é que mesmo a mais avassaladora e elegante racionalidade econômica (neoclássica? marxista? keynesiana?) em algum momento topa com ribeirinhos da Amazônia, caravanas de camelos do deserto de Gobi, máfias russas muito fiéis à Igreja Ortodoxa, criacionistas da elite conservadora norte-americana e, só pra lembrar uma referência clássica… éticas protestantes.
         

  2. Parece me acertada a analogia

    Parece me acertada a analogia dos órgãos que utilizada para explicar as diferentes formas de se persuadir alguém. Basicamente, existem três tipos de pessoas, considerando a melhor forma de convencê-las a fazer ou deixar de fazer algo. Algumas são movidas pela cabeça, são convencidas com a racionalidade dos argumentos fundamentados nos fatos, na ciência, na informação objetiva, nos números etc. Outras são controladas pelo coração, agem por emoção, são convencidas por apelos sentimentais, tendem a ser impulsivas, podem ser facilmente manipuladas e estão vulneráveis a compor algum grupo de linchamento, se a causa lhe parecer justa – parece o caso de muitos rebeldes e indignados que temos visto. E o terceiro grupo é das pessoas que são controladas pelo estômago, são convencidas  pelo dinheiro, decidem comparando o quanto podem ganhar ou perder com a escolha – neste grupo estão os grandes capitalistas e nenhum apelo sentimental ou argumento racional os convence a deixar de ganhar mais e mais dinheiro.

     

  3. Texto meio raso

    Há 20 trillhões em paraísos fiscais. Sim, e daí ? Vinte trilhões do que mesmo ? De uma criação humana chamada dinheiro. Não é uma riqueza paupável que possa ser distribuída. 

    Transformar isso em riquezas que possam ser distribuídas é onde mora o problema.

    Só para ficar na energia, se cada asiático quisesse consumir o mesmo valor de energia que consome um paraguaio, precisaríamos de 4 terras para gerar a quantiade necessária. E daí, como faz ?

    1. Você está certo, os vinte trilhões não é a riqueza.

      Mas enquanto eles têm vinte trilhões, nós temos merecas. E a riqueza é distribuída na proporção desse fetiche: eles abocanham vinte trilhões, nós ficamos com as merrecas.

    2. 1 bilhão de Iates. 1 por família (sugiro abaixo assinado)

      Quem consome mais, que consuma menos.

      Se não dá pra fabricar 7 bilhões de Ferraris, que não se fabrique nenhuma.

      Parece ser mais sensato todos terem condições de “comprar carros”, até um limite aceitável, do que, termos ainda, pessoas no limite extremo da dignidade humana.

      Se todo este dinheiro escondido não pode ser convertido em algo tangível… precisamos rever os conceitos.

      P.S.: Não sou comunista. Mas penso que, deveríamos pregar primeiro a distribuição da miséria ao invés da riqueza. Quando a miséria for comum a todos… algo se fará novo.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador