Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Semiótica das fotografias “newborn”: que histórias elas contarão no futuro?

Era uma vez uma época em que os momentos mais íntimos dos filhos eram registrados por meio de fotografias e vídeos caseiros para serem mostrados aos vizinhos, parentes e amigos mais próximos. Isso tudo ficou muito chato. Agora no lugar temos uma autoconsciente e calculada produção de imagens, geralmente de crianças, com alcance global através redes sociais ou em produtos esteticamente sofisticados e profissionais como ensaios fotográficos publicados em photobooks, CDs ou em sites e blogs na Internet. Nesse contexto cresce o subgênero das fotos chamadas “newborn” (fotografias de recém-nascidos) onde, apesar do discurso da simplicidade e espontaneidade, são produzidas através de complexas estratégias técnicas e estéticas para simular cenas e poses enquanto, alheio a tudo, o bebê dorme. Quais histórias essas fotos contarão para essas crianças no futuro?

As fotografias newborn (fotos de recém-nascidos em suas primeiras semanas de vida) é o novo baby boom fotográfico. Um mercado tão promissor que acabou sendo criada a Associação Brasileira de Fotógrafos de Recém-Nascidos (ABFRN) para zelar a filosofia, ética e segurança dos pequenos modelos. Tudo isso em meio a uma intensa agenda de Workshops e Conferências sobre o tema.

Se concordarmos com Woody Allen de que os três principais fatos da nossa existência são nascimento, sexo e morte, as fotos newborn (ao lado das fotos de casamento, pornográficas e todos os rituais e estrutura de serviços funerários) se revestem de grande importância para todos aqueles que estudam a semiótica da cultura: a forma como a Natureza é incorporada pela Cultura através de uma complexa rede de simbolismos e significados. E, principalmente, como essa rede semiótica revela como sintomas as mazelas da sociedade e dos indivíduos.

A preocupação da ABFRN em zelar pela ética é o reconhecimento de uma questão implícita nessas fotos: é sempre moralmente complicado quando os membros mais vulneráveis da sociedade são transformados em imagens sem eles terem possibilidade de consentir ou recusar. Principalmente porque os bebês, alheios a tudo enquanto dormem, serão suportes vivos de significados que pais e sociedade atribuem a eles. E levarão isso para o resto das suas vidas.

Veremos através de uma análise semiótica do sistema linguístico desse gênero fotográfico (em uma amostragem aleatória de 350 fotografias de ensaios newborn exibidas pelo Google Imagens) que por trás do encanto dessas imagens esconde-se uma elaborada produção tecnológica e simbólica: a contradição entre o discurso da simplicidade e espontaneidade versus a calculada produção simbólica de significados. Entre as fotos de estúdio e as chamadas “orgânicas” que procuram minimizar essa contradição, tentando transformar o nascimento em um evento natural integrado à família.

Os bebês estão entre o mágico e o orgânico

Em um primeiro olhar para o conjunto de fotografias podemos perceber três grandes grupos que a princípio pode parecer uma distinção logística ou instrumental, mas percebemos que determinam a própria natureza da significação foto: (a) fotos no estúdio do fotógrafo; (b) fotos na casa dos pais; (c) fotos metalinguísticas.

No conjunto (a) perceberemos que são compostas por classes de frequência as mais carregadas retoricamente, pois procuram atribuir significados mais abstratos como “dádiva”, “presente”, “Natureza” ou “Futuro” – [Bebê no Saquinho de pano ≡ cegonha]; [Bebê em Posição fetal  ≡ Natureza], [Nenê dentro de cesta ≡ dádiva/presente]; [Bebê sobre objeto ≡ [Composição Nenê e cenário ≡ futuro].

No conjunto (b) temos as fotografias que poderíamos chamar de “orgânicas”, pois produzem significações associadas ao ambiente doméstico e rotina familiar – [Bebê com o pai ≡ Falo]; [Bebê com a mãe ≡ aconchego]; [Bebê com pai e mãe ≡ proteção]; [Bebê em situações domésticas ≡ rotina].

No conjunto (c), a categoria fotográfica típica de campos de atividades de produção cultural que de desenvolveram em prestígio e legitimidade cultural, comercial e simbólica: fotos que apresentam uma espécie de making of, os bastidores e pequenos segredos da produção fotográfica newborn – [fotos infográficas ≡ Estratégias]; [fotografia do fotógrafo ≡ aparatos de produção].

(a) No estúdio

Por serem as fotos mais produzidas pelo ambiente do estúdio e pelo aparato técnico disponível elas se revestem de maior significado simbólico: o bebê dentro de sacos de tecido suspensos ou rede como estivesse sendo conduzido numa referência ao mito da cegonha. A posição fetal e de bruços, criam a forma compacta em alusão à origem uterina. Os elementos retóricos como flores de crochês, flores naturais na cabeça ou composições florais reforçam a origem do bebê: a Natureza.

Em uma referência à construção simbólica mítica, a Natureza é investida de um significado mágico: os eventos naturais são representados como fossem dádivas ou presentes. Bebês em caixas (às vezes retoricamente carregadas como engradados de exportação ou embalagens de presentes) reforçam essa conotação de um lindo presente entregue aos pais pela Mãe Natureza ou, num sentido mais “espiritualizado”, pela Providência.

Após essa apropriação mágica da Natureza, vem a sua transformação: o Futuro do bebê. São as fotos mais elaboradamente posadas em uma composição com cenários e objetos que retoricamente produzem uma espécie especial de elipse: a prolépse – avanço no tempo figurando coisas futuras face às presentes com as quais o bebê convive: bebê com óculos adultos com os braçinhos apoiados sobre livros de Direito e Física Quântica, bebê com gravata, bebê apoiado em um console de videogame etc.

(b) Fotos orgânicas

Enquanto no grupo anterior reina a abstração ao traduzir o evento natural do nascimento em termos de magia, miticismo e previsão, no grupo dessas classes de frequência o evento natural é traduzido como evento orgânico: a proximidade física com os corpos dos pais, carinho, aconchego e proteção.

É interessante a construção de significados na relação do bebê com o pai e a mãe. Na relação com o pai, vemos a construção de um simbolismo que em Psicanálise chama-se “fálico”. Com o pai a relação é de força e virilidade: bebê repousa sobre o braço do pai estendido (força), por exemplo; em relação à mãe, os braços não se estendem, mais envolvem o bebê (aconchego). Quando pai e mãe estão juntos, a composição das fotografias conota uma ideia de proteção – juntos, os pais olham para o bebê, ao mesmo tempo em que braços e mão envolvem ou tocam.

Como toda produção cultural, a Natureza deve ser transformada, re-significada. Se no grupo anterior o evento biológico é conotado como magia e mito, nas fotografias orgânicas (o Lar, a Casa, a Família) já estão presentes conotações até políticas (o simbolismo fálico paterno de Força e Poder) onde a rotina do cotidiano se interpõe como campo da reprodução social da vida biológica – fotografias em que os pais observam a criança brincando ou dormindo.

(c) Metalinguagens

Nesse conjunto de fotografias é onde fica mais explícita a contradição entre o discurso da “simplicidade” e o aparato de produção e a astúcia das estratégias em simular a espontaneidade e simplicidade enquanto o bebê dorme alheio a tudo. Fotografias em que vemos o fotógrafo, luzes e cenários com o pequeno ser no centro enquanto uma atenta mãe observa

Ou ainda as fotografias com infográficos explicando os truques utilizados para manter a pose do bebê para o clique como esse: “Se a cabeça ficar caindo para trás, pense em colocar um enchimento de apoio no cotovelo do bebê”.

As fotografias desse grupo de classes de frequência é o aspecto mais evidente de uma contradição que parece permear esse sistema semiológico: o metadiscurso da simplicidade e espontaneidade desse campo particular da fotografia convivendo com um complexo e autoconsciente aparato tanto técnico como simbólico.

O sistema retórico

Como já abordamos acima, a primeira coisa que chama a atenção no conjunto de fotografias newborn analisado é o domínio da figura de retórica chamada prolépse: bebês vestindo tutu como fossem bailarinas; bebê dormindo sobre um tecido em pele de onça enrolado em uma manta roxa num décor nitidamente adulto; bebê incorporando o personagem de nerd com óculos adultos com os bracinhos apoiados em grossos volumes de física quântica ou ainda sobre instrumentos musicais.

Nitidamente a figura de retórica é uma projeção da profissão ou estilo de vida dos pais.

Nas fotos orgânicas a retórica tende mais para o simbolismo, metáforas e alegorias. São figuras de retórica mais elaboradas exigindo mais sensibilidade do fotógrafo e do próprio consumidor final dessas imagens.

Nas fotografias orgânicas há uma tendência mais “documental” em preto e branco e sépia, ou tendendo para paletas de cores em tons pastéis, compondo um décor de suavidade.

Ao contrário, no grupo de fotos em estúdio há uma visível tendência estética para o kitsch pela saturação sígnica e pastiche – fundos em papel de parede vitoriano com flores de crochê na cabeça do bebê envolvido em mantas da qual sai uma ponta enrolada simulando um cordão umbilical…

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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