Fundação dos EUA financiou a virada à direita na América Latina

As fundações "libertárias" financiadas pelos Estados Unidos que formaram líderes políticos e geraram derrubada de governos, como o de Dilma Rousseff

Protesto a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff diante do Congresso Nacional, em Brasília, no dia 2 de dezembro de 2015 – Foto: Eraldo Peres/AP

Jornal GGN – Investigação publicada pelo jornal The Intercept, chamada “Esfera de influência: como os libertários americanos estão refazendo a política latino-americana” mostra como uma fundação, a Atlas Economic Research Foundation, organização sem fins lucrativos, financia desde 1991 movimentos de direita, entre eles líderes do MBL (Movimento Brasil Livre), que ajudaram a derrubar a ex-presidente Dilma Rousseff.

Um vídeo do Democracy Now relembrou essa reportagem de agosto de 2017, do The Intercept. Reproduzimos, abaixo, o vídeo legendado em português e a reportagem:

Do The Intercept

Esfera de influência: como os libertários americanos estão refazendo a política latino-americana

Por Lee Fang

PARA ALEJANDRO CHAFUEN, a reunião desta primavera no Brick Hotel, em Buenos Aires, foi tanto uma volta para casa quanto uma volta olímpica. Chafuen, um esguio argentino-americano, passou a vida adulta se dedicando a combater os movimentos sociais e governos de esquerda das Américas do Sul e Central, substituindo-os por uma versão pró-empresariado do libertarianismo.

Ele lutou sozinho durante décadas, mas isso está mudando. Chafuen estava rodeado de amigos no Latin America Liberty Forum 2017. Essa reunião internacional de ativistas libertários foi patrocinada pela Atlas Economic Research Foundation, uma organização sem fins lucrativos conhecida como Atlas Network (Rede Atlas), que Chafuen dirige desde 1991. No Brick Hotel, ele festejou as vitórias recentes; seus anos de trabalho estavam começando a render frutos – graças às circunstâncias políticas e econômicas e à rede de ativistas que Chafuen se esforçou tanto para criar.

Nos últimos 10 anos, os governos de esquerda usaram “dinheiro para comprar votos, para redistribuir”, diz Chaufen, confortavelmente sentado no saguão do hotel. Mas a recente queda do preço das commodities, aliada a escândalos de corrupção, proporcionou uma oportunidade de ação para os grupos da Atlas Network. “Surgiu uma abertura – uma crise – e uma demanda por mudanças, e nós tínhamos pessoas treinadas para pressionar por certas políticas”, observa Chafuen, parafraseando o falecido Milton Friedman. “No nosso caso, preferimos soluções privadas aos problemas públicos”, acrescenta.

Chafuen cita diversos líderes ligados à Atlas que conseguiram ganhar notoriedade: ministros do governo conservador argentino, senadores bolivianos e líderes do Movimento Brasil Livre (MBL), que ajudaram a derrubar a presidente Dilma Rousseff – um exemplo vivo dos frutos do trabalho da rede Atlas, que Chafuen testemunhou em primeira mão.

“Estive nas manifestações no Brasil e pensei: ‘Nossa, aquele cara tinha uns 17 anos quando o conheci, e agora está ali no trio elétrico liderando o protesto. Incrível!’”, diz, empolgado. É a mesma animação de membros da Atlas quando o encontram em Buenos Aires; a tietagem é constante no saguão do hotel. Para muitos deles, Chafuen é uma mistura de mentor, patrocinador fiscal e verdadeiro símbolo da luta por um novo paradigma político em seus países.

Ousted Honduras' President Manuel Zelaya, left, looks down inside a car on his way to the airport where he will board a flight to Nicaragua on the outskirts of San Jose, Sunday, June 28, 2009. Soldiers seized Honduras' national palace and sent the President Zelaya into exile in Costa Rica on Sunday, hours before a disputed constitutional referendum. Zelaya, an ally of Venezuelan President Hugo Chavez, said he was victim of a coup. Honduras' Congress sworn in Sunday congressional leader Roberto Micheletti as the country's new President. (AP Photo/Kent Gilbert)

O presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya, à esquerda, dentro de um carro em direção ao aeroporto, onde pegaria um voo para a Nicarágua nos arredores de San José. Domingo, 28 de junho de 2009.

Foto: Kent Gilbert/AP

UMA GUINADA À DIREITA está em marcha na política latino-americana, destronando os governos socialistas que foram a marca do continente durante boa parte do século XXI – de Cristina Kirchner, na Argentina, ao defensor da reforma agrária e populista Manuel Zelaya, em Honduras –, que implementaram políticas a favor dos pobres, nacionalizaram empresas e desafiaram a hegemonia dos EUA no continente.

Essa alteração pode parecer apenas parte de um reequilíbrio regional causado pela conjuntura econômica, porém a Atlas Network parece estar sempre presente, tentando influenciar o curso das mudanças políticas.

A história da Atlas Network e seu profundo impacto na ideologia e no poder político nunca foi contada na íntegra. Mas os registros de suas atividades em três continentes, bem como as entrevistas com líderes libertários na América Latina, revelam o alcance de sua influência. A rede libertária, que conseguiu alterar o poder político em diversos países, também é uma extensão tácita da política externa dos EUA – os think tanks associados à Atlas são discretamente financiados pelo Departamento de Estado e o National Endowment for Democracy (Fundação Nacional para a Democracia – NED), braço crucial do soft power norte-americano.

Embora análises recentes tenham revelado o papel de poderosos bilionários conservadores – como os irmãos Koch – no desenvolvimento de uma versão pró-empresariado do libertarianismo, a Atlas Network – que também é financiada pelas fundações Koch – tem usado métodos criados no mundo desenvolvido, reproduzindo-os em países em desenvolvimento.

A rede é extensa, contando atualmente com parcerias com 450 think tanks em todo o mundo. A Atlas afirma ter gasto mais de US$ 5 milhões com seus parceiros apenas em 2016.

Ao longo dos anos, a Atlas e suas fundações caritativas associadas realizaram centenas de doações para think tanks conservadores e defensores do livre mercado na América Latina, inclusive a rede que apoiou o Movimento Brasil Livre (MBL) e organizações que participaram da ofensiva libertária na Argentina, como a Fundação Pensar, um think tank da Atlas que se incorporou ao partido criado por Mauricio Macri, um homem de negócios e atual presidente do país. Os líderes do MBL e o fundador da Fundação Eléutera – um think tank neoliberal extremamente influente no cenário pós-golpe hondurenho – receberam financiamento da Atlas e fazem parte da nova geração de atores políticos que já passaram pelos seus seminários de treinamento.

A Atlas Network conta com dezenas de think tanks na América Latina, inclusive grupos extremamente ativos no apoio às forças de oposição na Venezuela e ao candidato de centro-direita às eleições presidenciais chilenas, Sebastián Piñera.

EM NENHUM OUTRO LUGAR a estratégia da Atlas foi tão bem sintetizada quanto na recém-formada rede brasileira de think tanks de defesa do livre mercado. Os novos institutos trabalham juntos para fomentar o descontentamento com as políticas socialistas; alguns criam centros acadêmicos enquanto outros treinam ativistas e travam uma guerra constante contra as ideias de esquerda na mídia brasileira.

O esforço para direcionar a raiva da população contra a esquerda rendeu frutos para a direita brasileira no ano passado. Os jovens ativistas do MBL – muitos deles treinados em organização política nos EUA – lideraram um movimento de massa para canalizar a o descontentamento popular com um grande escândalo de corrupção para desestabilizar Dilma Rousseff, uma presidente de centro-esquerda. O escândalo, investigado por uma operação batizada de Lava-Jato, continua tendo desdobramentos, envolvendo líderes de todos os grandes partidos políticos brasileiros, inclusive à direita e centro-direita. Mas o MBL soube usar muito bem as redes sociais para direcionar a maior parte da revolta contra Dilma, exigindo o seu afastamento e o fim das políticas de bem-estar social implementadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

A revolta – que foi comparada ao movimento Tea Party devido ao apoio tácito dos conglomerados industriais locais e a uma nova rede de atores midiáticos de extrema-direita e tendências conspiratórias – conseguiu interromper 13 anos de dominação do PT ao afastar Dilma do cargo por meio de um impeachment em 2016.

O cenário político do qual surgiu o MBL é uma novidade no Brasil. Havia no máximo três think tanks libertários em atividade no país dez anos atrás, segundo Hélio Beltrão, um ex-executivo de um fundo de investimentos de alto risco que agora dirige o Instituto Mises, uma organização sem fins lucrativos que recebeu o nome do filósofo libertário Ludwig von Mises. Ele diz que, com o apoio da Atlas, agora existem cerca de 30 institutos agindo e colaborando entre si no Brasil, como o Estudantes pela Liberdade e o MBL.

“É como um time de futebol; a defesa é a academia, e os políticos são os atacantes. E já marcamos alguns gols”, diz Beltrão, referindo-se ao impeachment de Dilma. O meio de campo seria “o pessoal da cultura”, aqueles que formam a opinião pública.

Beltrão explica que a rede de think tanks está pressionando pela privatização dos Correios, que ele descreve como “uma fruta pronta para ser colhida” e que pode conduzir a uma onda de reformas mais abrangentes em favor do livre mercado. Muitos partidos conservadores brasileiros acolheram os ativistas libertários quando estes demonstraram que eram capazes de mobilizar centenas de milhares de pessoas nos protestos contra Dilma, mas ainda não adotaram as teorias da “economia do lado da oferta”.

Fernando Schüler, acadêmico e colunista associado ao Instituto Millenium – outro think tank da Atlas no Brasil – tem uma outra abordagem. “O Brasil tem 17 mil sindicatos pagos com dinheiro público. Um dia de salário por ano vai para os sindicatos, que são completamente controlados pela esquerda”, diz. A única maneira de reverter a tendência socialista seria superá-la no jogo de manobras políticas. “Com a tecnologia, as pessoas poderiam participar diretamente, organizando – no WhatsApp, Facebook e YouTube – uma espécie de manifestação pública de baixo custo”, acrescenta, descrevendo a forma de mobilização de protestos dos libertários contra políticos de esquerda.

Os organizadores das manifestações anti-Dilma produziram uma torrente diária de vídeos no YouTube para ridicularizar o governo do PT e criaram um placar interativo para incentivar os cidadãos a pressionarem seus deputados por votos de apoio ao impeachment.

Schüler notou que, embora o MBL e seu próprio think tank fossem apoiados por associações industriais locais, o sucesso do movimento se devia parcialmente à sua não identificação com partidos políticos tradicionais, em sua maioria vistos com maus olhos pela população. Ele argumenta que a única forma de reformar radicalmente a sociedade e reverter o apoio popular ao Estado de bem-estar social é travar uma guerra cultural permanente para confrontar os intelectuais e a mídia de esquerda.

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Fernando Schüler.

Foto:captura de tela do YouTube

UM DOS FUNDADORES do Instituto Millenium, o blogueiro Rodrigo Constantino, polariza a política brasileira com uma retórica ultrassectária. Constantino, que já foi chamado de “o Breitbart brasileiro” devido a suas teorias conspiratórias e seus comentários de teor radicalmente direitistas, é presidente do conselho deliberativo de outro think tank da Atlas – o Instituto Liberal. Ele enxerga uma tentativa velada de minar a democracia em cada movimento da esquerda brasileira, do uso da cor vermelha na logomarca da Copa do Mundo ao Bolsa Família, um programa de transferência de renda.

Constantino é considerado o responsável pela popularização de uma narrativa segundo a qual os defensores do PT seriam uma “esquerda caviar”, ricos hipócritas que abraçam o socialismo para se sentirem moralmente superiores, mas que na realidade desprezam as classes trabalhadoras que afirmam representar.

A “breitbartização” do discurso é apenas uma das muitas formas sutis pelas quais a Atlas Network tem influenciado o debate político.

“Temos um Estado muito paternalista. É incrível. Há muito controle estatal, e mudar isso é um desafio de longo prazo”, diz Schüler, acresentando que, apesar das vitórias recentes, os libertários ainda têm um longo caminho pela frente no Brasil. Ele gostaria de copiar o modelo de Margaret Thatcher, que se apoiava em uma rede de think tanks libertários para implementar reformas impopulares. “O sistema previdenciário é absurdo, e eu privatizaria toda a educação”, diz Schüler, pondo-se a recitar toda a litania de mudanças que faria na sociedade, do corte do financiamento a sindicatos ao fim do voto obrigatório.

Mas a única maneira de tornar tudo isso possível, segundo ele, seria a formação de uma rede politicamente engajada de organizações sem fins lucrativos para defender os objetivos libertários. Para Schüler, o modelo atual – uma constelação de think tanksem Washington sustentada por vultosas doações – seria o único caminho para o Brasil.

E é exatamente isso que a Atlas tem se esforçado para fazer. Ela oferece subvenções a novos think tanks e cursos sobre gestão política e relações públicas, patrocina eventos de networking no mundo todo e, nos últimos anos, tem estimulado libertários a tentar influenciar a opinião pública por meio das redes sociais e vídeos online.

Uma competição anual incentiva os membros da Atlas a produzir vídeos que viralizem no YouTube promovendo o laissez-faire e ridicularizando os defensores do Estado de bem-estar social. James O’Keefe, provocador famoso por alfinetar o Partido Democrata americano com vídeos gravados em segredo, foi convidado pela Atlas para ensinar seus métodos. No estado americano do Wisconsin, um grupo de produtores que publicava vídeos na internet para denegrir protestos de professores contra o ataque do governador Scott Walker aos sindicatos do setor público também compartilharam sua experiência nos cursos da Atlas.

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Redação

10 Comentários

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  1. Esta reportagem do Intercept parece a piada dos quatro bêbados:
    Eles iam caminhando pela rua e viram uma imensa bosta no meio do caminho, porém como estavam bêbados desconfiaram sobre o que viam, o primeiro segurou um pedaço desta e esfregou nas mãos, e disse:
    – Tem consistência de bosta!
    O segundo foi mais objetivo, pegou um pedaço e cheirou, dizendo logo a seguir:
    – Tem cheiro de bosta!
    O terceiro ainda mais objetivo, pegou um pedaço e provou, dizendo surpreso:
    – Tem gosto de bosta!
    O quarto que era o mais esperto e trabalhava no Intercept, alertou a todos:
    – Para trás, para não pisarmos na bosta.
    Qual a novidade?

  2. A importância deste artigo não está na descoberta de algo novo que os latino americanos conhecem há mais de um século, mas sim de saber como eles atuam para evitar no futuro o mesmo tipo de ação.

    1. Essas pessoas ali na primeira foto, com bandeirinhas e cartazes… como convencê-las de que a opinião não é delas, de que foram manipuladas? O sujeito com o “fora Toffoli”, o que será que pensa hoje?

  3. então alguns traíras ganham fortunas para vender/entregar o país
    a esses malditos ricaços – os taíra, repito,faturam para
    para espalhar mentiras e
    nós nos fodemos todos, é isso?

  4. Estão vendendo os cursos a 199,90. Aulas de conservadorismo. Não sabemos como existe
    pessoas que pagam por esses cursos e acreditam em teorias atrasadíssimas, retorna aos
    séculos passados. E temem coisas superadas como o comunismo chinês e russo, ainda
    da antiga URSS. Ideologia de Gênero. Etc.

    Acho que nem por curiosidade vale a pena.

  5. É impressionante como as pessoas criadas nos EUA foram educadas para serem absolutamente cegas em relação ao papel de seu estado, esteja sob o governo que estiver. Lee Fang diz surpreender-se com a “descoberta” de o estado dos EUA financiam a Rede Atlas. Ora, quem manda naquele país é a iniciativa privada e isso qualquer criança sabe. Não há um poder público efetivo naquele país. O que há é um simulacro. O povo dos EUA não tem a menor importância, é profundamente doutrinado para essa cegueira desde que nasce. Por mais bem intencionados que sejam, não conheço um único estadunidense capaz de alguma crítica – portanto, menos ainda capaz de qualquer ação – contra essa usurpação da democracia pela iniciativa privada. É um limite, como disse o Ion de Andrade, “estrutural”: não conseguem passar da 2a. página no livro da Democracia.

    Mas à parte disso, me vem um comentário: E depois ainda há quem tenha alguma dúvida sobre serem, os EUA, um país inimigo do nosso. Tá bom, as “contas de vidro” são mesmo lindas, criadas para aliciarem. Mas quem troca lindeza por soberania, riqueza, evolução, diminuição de desigualdades, oportunidades para prosperidade? Só bobos, é isso?

  6. Wallace 07/05/2019 at 20:23

    Faltou dizer quem financia a fundação.
    Isso é o mais importante, pois certamente ela foi criada pra esconder as empresas

    O jornalista diz, inclusive, que é com surpresa que descobriu que quem financia a Rede Atlas é o estado dos EUA. É muito louco pensar que um jornalista dos EUA é incapaz de perceber que quem manda no estados dos EUA não é o povo, são os donos da iniciativa privada. É como se todo “americano” vivesse numa espécie de redoma, de mundinho… como se vivesse submerso num líquido que os impede de ver o que para qualquer pessoa é óbvio: são as pessoas que possuem e dirigem as corporações que são, elas próprias, as donas dos EUA. Usam até do que, no que nos outros países é de exclusividade de estados nacionais, a saber, recursos bélicos contra outros estado nacionais.

    Os irmãos Koch (Charles, David e William) foram citados no começo da reportagem mas a dificuldade em relacionar as empresas que financiam a derrubada de democracias, além da deles próprios, é que desde gigantes como Coca-Cola (“soft drink, soft power”), GM ou Boeing, muitas pequenas empresas e até empregados, se não contribuem com fundos, apoiam profundamente essa ausência de estado. E, claro, sendo a democracia fundamentalmente atributo exclusivo do estado, a ausência de democracia.

    É uma loucura coletiva. E muito perigosa para outros países.

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