Administração para o desenvolvimento, por Humberto Falcão Martins

Enviado por Jura Passos

Do Ebape/FGV

ADMINISTRAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO – A RELEVÂNCIA EM BUSCA DA DISCIPLINA

Por Humberto Falcão Martins*

1. Introdução

A edição de julho/setembro de 1972 da Revista de Administração Pública trouxe um texto tornado clássico do professor Paulo Roberto Motta, intitulado “Administração para o desenvolvimento – A disciplina em busca da relevância”. Nele, o autor reflete sobre a disciplina que, àquela altura, já buscava há alguns anos estabelecer a ponte entre o planejamento governamental desenvolvimentista e a capacidade dos governos para implementá-lo. Motta destaca dois problemas básicos – tanto da perspectiva empírica quanto da teórica – da administração para o desenvolvimento. Primeiro, no que se refere aos fins, constata que a visão de futuro dos países subdesenvolvidos é a imagem e semelhança dos países desenvolvidos. Nesse sentido, a administração para o desenvolvimento estaria buscando mapear as diferenças e obstáculos para conversão de sociedades tradicionais em transicionais e, sucessivamente, modernas (os países desenvolvidos). Segundo, no que se refere aos meios, constata que a forma básica de promoção de capacidade de governo consiste na implementação de um padrão de burocracia governamental ortodoxa, inspirada no modelo-ideal weberiano, orientada para eficiência e eficácia, refletindo um deslumbramento pela evolução das concepções de gestão dos países desenvolvidos.

Essa visão evolucionista comportava três diferentes posturas: a) a racionalidade moderna pode ser transferida e aprendida integralmente; b) a racionalidade moderna não pode ser transferida porque é limitada e condicionada por aspectos culturais peculiares; e c) a racionalidade moderna pode ser parcialmente transferida, desde que ajustada. Em todos os casos, a “racionalidade moderna”, conforme se afigura nos países desenvolvidos, é considerada o último estágio a ser buscado.

Motta propunha três linhas que uma nova administração para o desenvolvimento deveria seguir: a) voltar as organizações para objetivos peculiares de desenvolvimento, buscando-se a relevância mediante a efetividade organizacional (o impacto desejável no ambiente), uma forma estrita de administração por objetivos; b) conceber modelos mais orgânicos de organização (em contraposição à burocracia mecanicista tipicamente weberiana), menos rígidos e permanentes, mais temporais e flexíveis; e c) buscar o comprometimento valorativo das pessoas que integram as organizações e não apenas a adesão neutra à regra burocrática como forma de realização de resultados.

Passadas mais de três décadas de sua publicação original, permanecem categorias análogas de problemas e soluções, apesar de o mundo e os países em desenvolvimento terem mudado significativamente. Por um lado, a globalização proporcionou maiores “entradas” das sociedades mais avançadas (pelo acesso a bens e serviços, comunicações e transportes) nas subdesenvolvidas e vice-versa, homogeneizando e padronizando visões de futuro e, ao mesmo tempo, revelando identidades muito específicas e possibilidades peculiares. Ainda que subsistam profundas diferenças de poder, riqueza e bem-estar dentre os países, a globalização tende a mesclar padrões modernos, tradicionais e transicionais de forma bastante peculiar. Por outro lado, a “nova gestão pública” surgiu como portadora de modelos de gestão mais orgânicos e, ao mesmo tempo, estabeleceu-se como novo paradigma a ser seguido, gerando tanto deslumbramento quanto o modelo burocrático ortodoxo gerou anteriormente.

No bojo desses movimentos surgiram novas concepções de transformação institucional no Estado, portadores de prescrições sobre o que os Estados deveriam fazer em relação ao desenvolvimento e como prepará-los para tal. Os anos 80 representaram a decadência da velha Administração para o Desenvolvimento. Além das flagrantes disfuncionalidades da burocracia ortodoxa, esmorecia a idéia de que cabia aos Estados papel central na promoção do desenvolvimento. Os anos 80 e 90 não produziram uma nova administração para o desenvolvimento, mas um modelo de “Administração para o Ajuste Fiscal”, baseado na crença de que o desenvolvimento requeria uma retirada do Estado e maior autonomia do mercado. O novo milênio traz de volta a discussão sobre o desenvolvimento e sobre o papel dos Estados na sua promoção. Essa discussão ilumina o advento de uma mudança de paradigmas de transformação institucional no Estado e na Administração pública e acena para uma nova Administração para o desenvolvimento.

O propósito deste artigo é caracterizar essa mudança de paradigmas de transformação institucional do Estado e da administração pública de modo a se delinear (do ponto de vista empírico e normativo) uma trajetória de transformações na direção de uma nova Administração para o Desenvolvimento. A disciplina em busca da relevância encontra novas relevâncias em busca do resgate da disciplina.

Os dois próximos segmentos apresentam a caracterização de dois paradigmas de transformação institucional do Estado, denominados, respectivamente, “reforma do Estado” e “revitalização do Estado”. A Figura 1 apresenta de forma resumida as características de ambos os paradigmas.

Figura 1. Paradigmas de transformação institucional

 

A construção desses paradigmas utilizou elementos empíricos e conceituais. Há uma dupla utilidade nesse exercício: a) caracterizar uma transição de pensamento, da concepção da reforma para a revitalização do Estado; e b) possibilitar análises sobre a extensão na qual determinadas experiências específicas se enquadram mais num ou noutro paradigma. A questão é que praticamente qualquer experiência concreta, independentemente do nome, conterá elementos de ambos paradigmas. A esse propósito, é fundamental que qualquer análise a partir desses paradigmas desconsidere a questão terminológica – porque há experiências concretas que se denominam, genericamente ou não, “reforma do Estado” e posicionam-se na perspectiva do paradigma e da “revitalização do Estado” e vice-versa. Embora as nomenclaturas sejam problemáticas, o que se busca é contrastar significações.

Essa forma de pensamento carrega uma hipótese e uma sentença normativa. Por um lado, supõe-se (sem a pretensão de corroborações com análises factuais) que os processos de transformação institucional do Estado tenderão a incorporar progressivamente, de forma mais ou menos complementar, características do paradigma da revitalização do Estado, indicando uma nova Administração para o Desenvolvimento. Por outro lado, sustenta-se que, do ponto de vista valorativo, esse deveria ser o movimento.

2. A reforma do Estado: o Estado como problema

A reforma do Estado pode ser caracterizada como um paradigma de transformação institucional porque contém definições peculiares em relação ao caráter e papel do Estado (conteúdo ou direção) e também em relação a como implementá-lo (processo). Sucintamente, trata-se de uma apropriação peculiar de princípios e práticas da denominada Nova Gestão Pública, em particular daqueles associados à sua fase inicial gerencialista, na linha do “consenso de Washington”.

No que se refere ao conteúdo da proposta da reforma do Estado, a crise do Estado é seu principal discurso argumentativo justificador. O discurso da crise do Estado, segundo a vertente predominante, tem dois pilares centrais que trançam argumentos doutrinários e factuais: o neoliberalismo e o neo-institucionalismo econômico.

O neoliberalismo resgata o ideal liberal na década dos 70 a partir do esgotamento do paradigma keynesiano e das condições que forjaram o surgimento do welfare state. Apoiado na visão hobbesiana utilitarista da natureza humana e na idealização da eficiência do mercado preconizado pela economia neoclássica, o liberalismo celebra as virtudes do mercado como instância, por excelência, eficiente na alocação dos recursos. Diferentemente dos liberais clássicos, que acreditavam na capacidade auto-regulatória do mercado, os neoliberais reconheceriam a existência de falhas de mercado, o que impunha alguma regulação. A caracterização padrão da crise do Estado conforme elaborado pela crítica neoliberal evoca alguns elementos contextuais que se inter-relacionam em diferentes medidas: a) fim do desenvolvimentismo pós-guerra, pelo fim de Bretton Woods, as crises do petróleo, as crises de liquidez e a instabilidade do mercado financeiro internacional, os novos requisitos de integração competitiva da globalização etc.; b) crise do welfare state keynesiano, pelas disfunções e desvantagens da intervenção estatal na garantia do bem-estar ou da estabilidade econômica, relativamente aos atributos do mercado; c) disfunções burocráticas ou crise do modo de implementação estatal de serviços públicos; e, dentre outras, d) ingovernabilidade: sobrecarga fiscal, excesso de demandas e crise de legitimidade. Saía de cena o desenvolvimentismo empurrado pelo Estado, entrava em cena o desenvolvimento puxado pelo mercado em escala global.

Já a contribuição do denominado neo-institucionalismo econômico ao discurso da crise do Estado é que as instituições importam (institutions matter) em dois principais sentidos. Primeiro, são vitais para a produção de resultados, mas são uma espécie de escolha de segunda (second best), um mal necessário, porque o mercado por si só não poderia assegurar as transações sem estruturas ou organizações formais. Segundo, as organizações não são instancias tão racionais assim, a racionalidade (da eficiência econômica) é limitada, sujeita a uma série de “interferências” e constrangimentos decorrentes da sua natureza multifacetada (política, humana, cultural etc.). Daí a necessidade de “esquemas de enquadramento” sob a forma de organizações formais: estruturas, regras, procedimentos, incentivos, induzimentos e controles que, por um lado impõem custos de transação, mas, por outro, evitam os problemas de agência – a subversão das regras e resultados estabelecidos de forma convergente com os interesses dos “principais” da organização, aqueles detentores dos direitos de propriedade. Instituições ineficientes são aquelas que não maximizam a relação estruturas-resultados e a burocracia governamental era considerada disfuncional porque intensivamente sujeita a excessivos custos de transação e problemas de agência. Portanto, estruturalmente ineficiente e inconfiável.

A partir desses fundamentos, a concepção da reforma do Estado considera o Estado um problema, sobretudo – logo, a solução seria menos Estado e mais mercado e sociedade civil. O Estado havia, segundo essa ótica, atingido um ponto de estrangulamento, um ponto de ingovernabilidade. A sociedade civil deveria resgatar sua determinação e capacidades próprias, depender menos do Estado (afinal haveria no limiar do século XXI condições tecnológicas para tal) e controlá-lo mais. O Estado deveria se restringir às suas funções mínimas: as funções clássicas (defesa, arrecadação, diplomacia e polícia), um aparato mínimo de proteção social (que reconheça poucos direitos sociais e de forma bastante seletiva e se baseie na prestação privada de serviços de relevância social) e uma gestão mínima da ordem econômica (com destaque para a regulação, além da gestão macroeconômica).

A implementação desse padrão de Estado mínimo consistia em processos de redução do Estado segundo uma orientação predominantemente fiscal via redução de despesas (cortes e contingenciamentos orçamentários), de organizações (mediante variadas formas de desestatização tais como a privatização, devolução, descentralização, parceirização etc.) e de quadros funcionais (enxugamento, terceirizações, voluntarismo etc.). A implementação do Estado mínimo consiste numa agenda negativa, de desconstrução.

No que concerne aos processos de transformação institucional no sentido de se implementar o modelo de Estado contido no paradigma da reforma do Estado, esse se baseia no fascínio pelas tecnologias gerenciais emergentes nas décadas de 80 e 90, o que representa o percurso de soluções em busca de problemas. Trata-se de uma situação na qual supõe-se que o que funciona em determinado contexto/organização tem validade universal. O deslumbramento por modismos gerenciais e instrumentos e abordagens considerados panacéias (soluções instantâneas para os problemas organizacionais, independentemente de prévia problematização crítica) tende a modelar a percepção sobre os problemas, gerando uma enorme propensão à baixa sustentabilidade, desperdício e estresse organizacional.

Outra característica dos processos de ajuste no âmbito da reforma do Estado é a busca de resultados rápidos, freqüentemente de forma tecnocrática mediante processos de transformação “de cima para baixo”. Tal orientação decorre, por sua vez, da crença de que resultados têm de ser visíveis e demonstráveis no curto prazo. A legitimação da mudança acontece a posteriori, pelo resultado concreto; não pela discussão prévia da desejabilidade ou aceitabilidade. Essa concepção abre caminho para as estratégias do tipo “pegar e fazer” e para os “planos de gabinete”, mediante baixa participação de partes essenciais (sejam beneficiários, sejam implementadores). Com efeito, a lógica da restrição, da eficiência e controle subjacentes aos processos de reforma do Estado dificultam muito a previa formação de consenso (Rinne, 2001).

Essas características não podem, por outro lado, negar a utilidade da crítica liberal, seja para colocar em destaque a questão da eficiência, que deve ser sempre um elemento central nos processos de transformação do Estado, seja para levantar a necessidade de aperfeiçoamento do controle democrático sobre as instituições estatais.

3. A revitalização do Estado: o Estado como solução

O paradigma emergente da revitalização do Estado constitui uma apropriação do estado da arte da Nova Gestão Pública direcionado para o desenvolvimento de forma mais consensual. Nessa concepção, o Estado é visto mais como parte essencial da solução; não “a solução” ou “o problema” em si. Isto vale tanto para democracias consolidadas (na quais, de fato, o Estado nunca deixou de ser parte essencial da solução), quanto para, principalmente, os países emergentes e mais ainda para os Estados submergentes (em particular da África e Ásia Central). Há três principais elementos no discurso da revitalização do Estado: a crise da reforma do Estado, a peculiaridade dos processos de transformação institucional em países em desenvolvimento e os requisitos de modelagem institucional contemporâneos.

A crise da reforma do Estado constitui as lacunas e os efeitos colaterais perversos na economia, na política, na sociedade e nas instituições públicas a partir da onda de ajustes liberais dos anos 90, na linha do consenso de Washington. Na economia, Stiglitz (2000), prêmio Nobel de economia em 2001, argumenta que a onda de ajustes liberais foi excessiva para os países em desenvolvimento, diminuindo suas possibilidades de investir e crescer. Já em relação às economias desenvolvidas, que não aplicaram o receituário liberal conforme prescreveram, os fatores do crescimento estariam mais relacionados ao advento da nova economia e a decorrente reestruturação produtiva, que ao ajuste das finanças públicas per se. Na política, o grande problema foi a lacuna: o ajuste liberal tinha foco na economia e pressupunha que as instituições políticas ou já estavam suficientemente consolidadas (caso dos países desenvolvidos, em que pesem as questões suscitadas a partir da última eleição presidencial norte-americana) ou estavam em via de se estabelecerem (a partir da adoção da forma democrática na maioria dos países, sem se atentar para a qualidade dessas instituições). Na sociedade, o grande efeito colateral do ajuste liberal dos anos 90 foi o aumento da pobreza e da desigualdade em escala global. Nas instituições, o grande efeito colateral dos processos de redução do Estado foi o agravamento do déficit institucional, o enfraquecimento das instituições e a conseqüente diminuição da capacidade de governo.

O paradigma da revitalização do Estado possui clara orientação para o desenvolvimento, não mais pensado apenas como o efeito do crescimento do produto fruto da industrialização ou da livre iniciativa do mercado, mas o efeito mensurado de incremento sustentável de bem-estar geral em termos de desenvolvimento humano e com responsabilidade ambiental. Isto requer direcionamentos via políticas públicas ativistas de modo a se promover a redução de desigualdades (do ponto de vista regional, étnico, social etc.). O pressuposto dessa postura ativista na geração do desenvolvimento é que há uma “primazia das instituições” como fator de desenvolvimento. Dessa forma, acredita-se que os imensos desafios sociais em escala global, manifestos pela crescente desigualdade e pobreza, não podem ser vencidos pela simples ação dos mercados.

O segundo elemento é um agravante do primeiro: o fato de que a maior parte do mundo emergente deveria implementar um processo de ajuste que foi plasmado segundo a perspectiva de instituições consolidadas em um contexto de disfunções e incompletudes institucionais. Isto faz uma grande diferença, porque, diferentemente das democracias consolidadas, que inventaram e consolidaram um padrão de Estado de direito e de Estado social (que mesmo em crise, apresentando disfunções, se implementou), os países emergentes apresentam, em geral, além das mesmas categorias de disfunções dos Estados desenvolvidos, processos incompletos de construção institucional. Primeiramente, porque nos países emergentes o Estado patrimonial não é residual, o Estado democrático de direito tem sérias lacunas e disfunções estruturais (ilustrado no formalismo jurídico, na legislação casuísta e nas limitações e precariedades das metainstituições democráticas como o processo legislativo, o sistema eleitoral e partidário, o sistema federativo e a forma de governo) e o Estado social idem (a exclusão acentuada, as barreiras à universalização de direitos humanos e sociais, a qualidade e abrangência da prestação dos serviços, a precariedade do aparato de proteção e, em alguns casos, os problemas de financiamento). Em diferentes gradações, os Estados emergentes não estão formados, são altamente sujeitos a predações internas e externas. Esse quadro perverso de fraqueza e fragmentação institucional gera enclaves do não-Estado: os guetos, as favelas, as hordas tribais, as guerrilhas, o terrorismo etc. No mundo emergente, a crise do Estado é a crise do Estado somada à crise gerada pelo não-Estado.

Esse quadro clama por uma agenda positiva, de fortalecimento e (re)composição das instituições estatais de modo a se reduzir o déficit institucional, o que se constitui uma tarefa muito mais complexa do que nos países que tiveram de lidar apenas com as disfunções de “superávits institucionais”. A agenda positiva não é necessariamente uma agenda de expansão do tamanho do Estado, tampouco por meio da estatização de atividades ou da expansão do funcionalismo, mas é fundamentalmente uma agenda de construção da governança, de melhoria da capacidade de governo para alcance de resultados de desenvolvimento – o que requer estratégias, estruturas, processos e pessoas alinhadas com as finalidades em questão. A construção de uma agenda positiva deve se processar em bases muito peculiares, buscando-se a adequação de diferentes soluções customizadas (sejam ortodoxas, inovadoras ou híbridas) a problemas previamente identificados, mensurados e qualificados mediante diagnósticos institucionais (de tal forma que a visão do problema possa condicionar a escolha das soluções e não o contrário). Por essas razões, os processos de transformação institucional voltados ao fortalecimento do Estado são altamente dependentes da formação de consensos sobre problemas e soluções de forma a se legitimarem e assegurarem resultados sustentáveis tanto no curto, quanto no médio e longo prazos, mediante a mobilização política e o envolvimento direto e indireto de prestadores e beneficiários via distintos mecanismos de interlocução (fóruns, conselhos etc.).

O terceiro elemento do discurso da revitalização do Estado está relacionado aos requisitos de desenho institucional contemporâneo, conforme enunciados por Claus Offe (1998): a boa governança social depende de um equilíbrio (de capacidade e poder) entre as esferas do Estado (domínio dos políticos e burocratas), do mercado (domínio dos investidores e consumidores) e terceiro setor (domínio dos cidadãos organizados em torno de seus interesses, mais públicos ou particularísticos em diferentes extensões). Cada uma dessas três esferas possui limitações e vantagens comparativas, bem demonstram a história recente. O Estado promove eqüidade, mas é menos eficiente. Enfraquecê-lo em detrimento das demais esferas pode levar à baixa capacidade de governo, fortalecê-lo pode levar ao estatismo dirigista e formas autoritárias perversas. O mercado é virtuoso em eficiência, mas insensível em eqüidade. Enfraquece-lo em detrimento das demais esferas pode levar à ineficiência e perda de competitividade, fortalecê-lo pode levar a formas perversas de “mercado livre”, concentração e “capitalismo selvagem”. O terceiro setor é virtuoso porque é o domínio do valor, da causa, provendo meio de expressão de iniciativas comunitárias e cidadãs essenciais à afirmação da identidade cívica, mas sua natureza não é a regra de direito. Fortalecê-lo em detrimento das demais esferas pode gerar formas anômicas de atuação paroquial ou formas perversas de comunitarismo excessivo, enfraquecê-lo pode levar a negligência de comunidades e identidades.

Segundo essa visão, o que está em questão é a construção de um Estado-rede no sentido institucional, um elemento concertador, ativador e direcionador das capacidades do mercado e da sociedade civil na direção do desenvolvimento. Trata-se do Estado incrustado na sociedade não apenas no sentido de que reproduz suas demandas, mas também no sentido de que promove ações conjuntas (parcerias e alianças no provimento de serviços de relevância social e mesmo empreendimentos) e constitui uma “inteligência” estratégica que se manifesta na interlocução e na participação na gestão das políticas públicas.

Não se trata, portanto, apenas de um processo de reforma do Estado, mas de um processo de reordenamento institucional da sociedade contemporânea, que pode e deve, em alguma extensão, ser modelado, induzido, incentivado e controlado pelo Estado, inclusive em relação a si, mas não de forma autônoma, senão interdependente.

4. Implantando a nova Administração para o Desenvolvimento

A transição do paradigma da reforma do Estado para a revitalização do Estado não implica o completo abandono ou negação das características do primeiro, mas na progressiva adesão ao segundo. Isto significa que, na prática, experiências concretas de transformação institucional carregam características ambíguas e complementares de ambos paradigmas. O que se advoga é que adesões que tendem ao paradigma da reforma do Estado negligenciam as relevâncias emergentes – traduzidas sob a forma de demandas e possibilidades de desenvolvimento.

A implementação de uma nova Administração para o Desenvolvimento requer uma série de ações extremamente desafiadoras, que passam pela formulação de estratégias efetivas de desenvolvimento, pela elaboração de planos de desenvolvimento, pela concepção de modelos de gestão por resultados e pelo alinhamento das organizações aos resultados estabelecidos. Sobretudo, é necessário que esse roteiro sintético seja desenvolvido e implementado de forma integrada e coerente.

A formulação de estratégias de desenvolvimento deve resgatar a dimensão da visão de futuro (o que o país quer ser) como expressão última de relevância e efetividade, de forma não determinista em relação às interdependências com o ambiente externo. Nesse sentido, as estratégias endógenas e reativas (baseadas no insulamento e na fragmentação, típicas do mundo comunista e dos países submergentes da Ásia central e África, como forma de não inserção na ordem global) e integrativas e passivas (baseadas na dependência e submissão à centralidade da ordem estabelecida pelos “países desenvolvidos” na inserção global, típicas da América Latina) tendem a dar lugar a formas integrativas-autopoiéticas, baseadas na invenção de padrões próprios de inserção global (típicas de países como a China, Malásia, Singapura, Coréia do Sul etc.), segundo novas competências, identidades e possibilidades. Nesse sentido, a nova administração para o desenvolvimento implica o advento de um modelo de “governança prospectiva” que se define pela capacidade de construção do futuro.

A nova administração para o desenvolvimento também requer a reinvenção do planejamento governamental. Não se trata mais de equiparar o planejamento governamental ao processo (inescapavelmente burocratizante) de se fazer planos de desenvolvimento, mas também isto não significa prescindir deles. Trata-se de orientar os planos para a realização da visão, tornando-os elementos programáticos dinâmicos, sujeitos e abertos a reformulações contínuas nas suas diversas fases lógicas (elaboração, implementação e avaliação). Analogamente, os planos de desenvolvimento devem cada vez mais abarcar de forma coerente e integrada múltiplas dimensões da vida social: economia e produção, meio ambiente, demografia e condições sociais, tecnologia etc. E tudo isto sem perder de vista a dimensão territorial nas perspectivas micro, meso e macro. Fundamentalmente, as políticas de desenvolvimento da nova administração para o desenvolvimento devem avançar as concepções e instrumentos baseados em fomento e posicionarem-se na perspectiva da ativação de capacidades mediante a mobilização, participação e atuação em rede, politizando-se o processo de planejamento, em vez de torná-lo tecnocrático.

A gestão por resultados é outro elemento indispensável da nova administração para o desenvolvimento, possibilitando o desdobramento do Plano de Desenvolvimento em políticas e programas e a definição de seus arranjos de implementação. Não se trata apenas de proporcionar programas bem desenhados, com nexos claros em relação aos resultados de políticas e indicadores e metas de eficácia e efetividade pertinentes e coerentes. Viabilizar a gestão por programas impõe a busca do elo perdido entre o terreno do planejamento, a partir do desenho de programas, e o terreno das organizações, onde em última análise os resultados se produzem. Essa questão é muito essencial e sensível porque nem os programas são auto-executáveis nem as organizações são auto-orientadas por resultados. Construir o nexo entre programas e organizações implica o mapeamento fino das complexas teias de relações entre programas e organizações (ou a definição de que estruturas suportam a implementação de quais programas, como estabelecer coerência e coordenação entre diferentes estruturas no âmbito de um mesmo programa, como comprometer as estruturas etc.). A chave da organicidade e da flexibilidade do modelo de gestão por programas está nesse intrincado relacionamento programas-organizações (fins e meios). A concepção de modelos efetivos de gestão por programas demandará uma avaliação precisa da capacidade das organizações envolvidas em alcançarem os resultados propostos, que implicará, por sua vez, na implementação de planos de melhoria institucional centrados na geração de resultados. Não obstante, a gestão por resultados requer foco (a gestão intensiva de uma carteira prioritária de programas), mecanismos e instrumentos de acompanhamento e avaliação dotados de centralidade, seletividade e temporalidade e modelos contratuais de pactuação de resultados baseados em incentivos claros.

O último elemento da nova administração para o desenvolvimento é o plano de gestão, espaço que liga os objetivos do plano de desenvolvimento e seu desdobramento em programas aos resultados concretos na medida em que busca alinhar as organizações para o alcance dos resultados visados. Esse esforço impõe instrumentos e uma estrutura de incentivos que atue tanto na perspectiva horizontal (promovendo o alinhamento de organizações) quanto na perspectiva vertical (promovendo o alinhamento de sistemas centrais de gestão, usualmente relativos à organização governamental e à gestão das atividades de suporte relacionadas a recursos humanos, orçamento, finanças, compras e logística). Na perspectiva das organizações, a preparação institucional para o desenvolvimento requer a reorientação de estratégias, estruturas, processos, pessoas e sistemas de informação vitais ao alcance dos objetivos de desenvolvimento em bases eficientes. O espaço do plano de gestão constitui, dessa forma, uma complexa e abrangente agenda de transformação da gestão (em níveis microorganizacional e macrogovernamental) que mescla elementos tradicionais da consolidação burocrática em bases profissionais e democráticas (tais como recomposição da força de trabalho, estruturas e processos basais do Estado) e elementos inovadores voltados ao desempenho, à flexibilidade, ao foco no cidadão e ao controle social, tudo isto de forma orientada para os resultados visados.

Os requisitos originalmente definidos por Motta para uma nova administração para o Desenvolvimento permanecem válidos: orientação para resultados, modelos orgânicos de gestão e comprometimento valorativo dos atores envolvidos. Mas ainda hoje a construção de uma disciplina que incorpore esses preceitos não é uma tarefa simplória nem modesta, mas um desafio que deve ser sistematicamente buscado e experimentado, tanto no sentido de se afirmar como corrente de pensamento a respeito dos processos de transformação do Estado, quanto no sentido de proporcionar instrumentos para sua implementação. Mas essa discussão está apenas se iniciando e este trabalho buscou, de alguma forma, contribuir para seu desenvolvimento.

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