A correlação de forças dentro de uma metrópole

Sugerido por Assis Ribeiro

Da Carta Maior

A chave-mestra das catracas

Saul Leblon

Uma metrópole é uma correlação de forças dominada pelo poder das corporações imobiliárias e do capital financeiro. 

São eles que formam o ‘gabinete sombra’, a verdadeira ‘mãos invisível’ que reduz essa segunda natureza, a grande obra de arte da humanidade, que são as cidades, a um ajuntamento comatoso disciplinado por catracas.

Obras, planos, licitações, enfim, arranjos e negócios pouco ou nunca identificáveis com as urgências de seus habitantes. 

entrevista de Ermínia Maricato a Rose Spina, da revista Teoria e Debate, publicada em Carta Maior, merece um olhar atento.

É esclarecedora de como essa usina de exclusão captura os espaços e interdita as melhores intenções.

Ora convertendo-os aos seus desígnios; ora anulando-os; ora destruindo-os com tudo o que tem em cima. Gente, favelas, urgências, esperanças, clamores… 

Leis, planos e códigos desprovidos de uma contrapartida de forças que os sustentem, diz a arquiteta que ajudou a implantar o Ministério das Cidades e o Estatuto das Cidades, serão fraudados pelo poder prevalecente que ‘organiza’ o destino da metrópole à revelia de seus cidadãos.

O cartel que modela os preços, prazos e partilhas nas licitações do metrô tucano, há 16 anos, não constitui, portanto, um ponto fora da curva. 

Tampouco representa uma singularidade do ciclo Covas-Serra-Alckmin. 

Outros exemplos de subordinação do poder público à régua dos oligopólios podem emergir. 

A mídia conservadora caça um contrafogo capaz de amenizar os fundilhos irremediavelmente flambados de seus líderes in pectore. 

Poderá até encontra-lo, ou produzi-lo; tem experiência no ramo. 

Não importa. 

O decisivo a reter é que o intercurso entre tucanos e oligopólios desidrata, adicionalmente, a pele ideológica com a qual o neoliberalismo e seu jogral midiático se apresentavam à sociedade como escudeiros dos interesses gerais da população.

Guardadas as proporções, assiste-se a uma pequena ‘queda da bastilha’ bandeirante, até então ferreamente defendida pela mídia isenta.

Durante anos a fio, prescreveu-se ao país – ainda se prescreve — um regime miraculoso à base de Estado mínimo, livre concorrência e mercados autorregulados.

Dieta que nem eles praticavam, vê-se agora.

Nem poderiam.

A concentração planetária do capital na forma de grandes oligopólios é a marca do nosso tempo.

Um traço que vem sendo exacerbado, desde a crise de 2008, com a reestruturação das grandes corporações e a sua redistribuição em escala mundial.

Embala-as um novo degrau de realocação estratégica que redistribui etapas da produção, mas concentra as instâncias do comando tecnológico e financeiro. 

A economia brasileira, a única, ao lado da chinesa, a ampliar o mercado de massa nos últimos anos, ademais de prever investimentos bilionários em infraestrutura e petróleo, é um alvo cobiçado da partilha dos grandes oligopólios globais.

Estar no olho do furacão dessa cavalgada de gigantes tem um custo.

A captura desabrida de todas as instâncias de representação do interesse coletivo pela ganância privada é um deles.

Outro: a demonização midiática de tudo o que exale o mais leve aroma de regulação do mercado pelo interesse público. Desde a exploração de reservas de petróleo, à alocação de médicos em áreas desassistidas.

A mercantilização das cidades é outro filão da disputa.

Expandir a esfera pública multiplicando espaços e serviços regulados pelo escrutínio da população; ou sufocá-la no torniquete de muitas voltas dos interesses particularistas?

Essa é a disputa entranhada em pedra, cal, asfalto e licitações.

Quando o prefeito Fernando Haddad decide fazer dos corredores exclusivos de ônibus (220 kms até dezembro), o alicerce da ordenação viária da cidade, está cometendo uma heresia contra o cuore dominante.

Quando sanciona uma assembleia consultiva popular de 1.125 representantes de bairros, na razão de 1 por 10 mil habitantes, envereda em pecado capital contra licitações amigáveis .

Quando acena com contrapartidas progressivas para novos empreendimentos imobiliários e planeja adensar o centro da capital com moradia popular, atinge um núcleo duro da disputa. 

Quando argui a matriz de remuneração do transporte urbano em sua totalidade – e aventa a transferência recursos dos detentores da frota individual para a coletiva, está devolvendo à cidade um poder de comando que afronta o vale tudo dos mercados.

Quando os protestos contra a lambança no metrô exigem, como nesta 4ª feira, uma gestão da rede com forte representação de funcionários e usuários, ameaça de morte o biombo das aparências tucanas. 

Como se vê, nada aqui remete a nostalgia de uma volta à pequena escala ou à renucleação pastoril das grandes aglomeração urbanas do século XXI.

Nem poderia.

A lógica da concentração capitalista evidenciada nas licitações do metrô tucano é irreversível.

Trata-se de um impulso sistêmico, global, imiscível, como água e óleo, com ideais de harmonia e estabilidade.

Essa é a mãe de todas as catracas.

A chave capaz de liberar as roletas não está na busca de escalas menores do que as já alcançadas pelo capital.

Mas, sim, na criação de outra, maior, que as subordine na sua abrangência e capilaridade.

Mais democracia: eis a chave-mestra de todas as catracas.

Aquela capaz de abrir, inclusive, a porta atrás da qual neoliberais e oligopólios nivelam diferenças com superfaturamento.

O jogo é pesado. Vence-lo não será obra da boa vontade. Requer uma correlação de forças construída com afinco, na qual as ruas, como preconiza Ermínia Maricato, terão papel decisivo. 

Sem ilusões, porém: restarão impotentes as marchas, sem uma contrapartida de organização, projeto e institucionalidade que repactue a prerrogativa da cidadania sobre a mercantilização desvairada.

Luis Nassif

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