A entrevista do Blog com Temporão – 1

Resolver problemas do SUS apenas com gestão é visão romântica 

Por Bruno de Pierro
Da Agência Dinheiro Vivo 

Durante o discurso que fez na cerimônia de transmissão de cargo, no dia 03/01, José Gomes Temporão, ministro da Saúde no segundo governo Lula, afirmou que o país está longe de ter um sistema universal de saúde que seja considerado, por todos, patrimônio coletivo de grande valor, como ocorre no Canadá e em partes da Europa. Em seguida, explicou como a relação, confusa, entre grande mídia e saúde pública é um dos fatores que obscurecem a percepção da população, não auxiliando na tomada de consciência para a discussão de problemas reais.

Para exemplificar essa relação, utilizou as pesquisas que medem a qualidade do SUS (Sistema Único de Saúde). “Pesquisas não especializadas recentemente divulgadas, e metodologicamente frágeis, entrevistam duas mil pessoas e dão o veredito: a saúde vai mal. Por outro lado, o IBGE, ao entrevistar 340 mil pessoas durante a PNAD 2008, revela outro resultado. Ao perguntar aos usuários qual a sua avaliação do último atendimento procurado no sistema de saúde, obteve como resposta que 85% deles avaliaram o atendimento como bom ou ótimo”, disse.

Há pouco mais de um mês fora do governo, Temporão pode agora colocar um olhar de quem está de fora, sobre as questões mais urgentes do sistema de saúde brasileiro, que, para ele, caminha perigosamente para um processo de americanização. Em entrevista ao Brasilianas.org, por telefone, Temporão mostra-se preocupado com “certa reificação da gestão”. Segundo o ministro, imaginar que os problemas do SUS podem ser resolvidos apenas com gestão é alimentar uma “visão romântica”. “O subfinanciamento é um problema estrutural muito mais importante do que o problema de gestão”, analisa.

Além de um balanço sobre os principais pontos de sua gestão, a primeira parte da entrevista também dedica espaço para as fundações estatais, defendidas por Temporão. Diante da polêmica que se criou, principalmente com relação à proposta de contratações CLT, o ministro afirma: “Em prestação de serviços de saúde, [a estabilidade no emprego público] pode ser um fator de acomodação e de baixo desempenho”. Confira.

BrasBrasilianas.org – O senhor poderia fazer um balanço dos principais avanços do SUS na sua gestão e apontar quais os desafios que identifica para o próximo governo?

José Gomes Temporão – A saúde tem dimensões extremamente heterogêneas e diversificadas, mas eu destacaria, neste período referente ao presidente Lula, em primeiro lugar, o seguinte. Venho de uma geração de sanitaristas, que foi formada durante a ditadura militar; naquele período, 1970, nós desenvolvemos um conjunto de propostas, que foi desembocar no capítulo da saúde na constituinte.

Nesse processo, é muito claro o conceito de determinação social da saúde, ou seja, refutamos, veementemente, uma visão tecnológica da medicina. A saúde é socialmente determinada e tem a ver diretamente com a maneira como a riqueza é distribuída na sociedade por meio das várias classes sociais. A saúde é um reflexo direto do trabalho, da renda, da habitação, do acesso à cultura e à educação, nutrição, lazer, saneamento.

O governo do presidente Lula foi um governo que demarcou, em relação a outros governos, uma posição importante do ponto de vista da redução da desigualdade, criação de nova classe média, criação de empregos, acesso à moradia. Podemos falar hoje, com muito orgulho, que a desnutrição grave, no Brasil, é uma questão do passado. Isso tem um impacto na saúde bastante importante.

No caso da mortalidade infantil, vemos que ela vem caindo de maneira sustentável nas últimas décadas no país. Há uma relação muito estrita, de um lado com a oferta de redes de saúde, atenção básica, cuidados com o pré-natal e o parto, mas uma relação também muito sólida com o grau de escolaridade da mãe, o grau de informação que a família tem.  Então, dou exemplo de outras áreas que impactam diretamente no setor de saúde.

O segundo ponto é que, durante o governo Lula, nós estruturamos, de fato, a implantação de uma gigantesca rede capilarizada em todo o Brasil de atendimento à população, que começa, a partir dessa gestão, a se organizar no território. Refiro-me ao programa Saúde da Família, que durante 8 anos de governo cresceu 63% – 100 milhões de brasileiro são atendidos por 30 mil equipes em todo o Brasil.

Como é formada a rede capilarizada?

Ela se articula e se integra com um política nova, que é o SAMU [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência], que está próximo à universalização, ou seja, atender a todos os brasileiros, aquela ambulância que atende em casa. Tem também o Brasil Sorridente, que teve um crescimento gigantesco e hoje já atende 80 milhões de brasileiros, com atenção à saúde bucal. Há o Centro de Atenção Psicossocial, que é uma ruptura com o modelo asilar da atenção psiquiátrica – em 2002, 75% dos gastos em saúde mental era em hospitais, asilos e manicômios; hoje, 75% dos gastos em atenção à saúde mental são gastos em atenção comunitária. A internação existe, na crise, mas não como antes, quando as pessoas ficavam confinadas.

Cito também o Núcleo de Apoio da Família, que são áreas com especialistas, como nutricionistas, psicólogos, fisioterapeutas, e a Farmácia Popular, que deu muito acesso a medicamentos, principalmente de doenças crônicas. Então, há uma organização e estruturação dessa rede de atenção integrada no território. Tem também as UPAs [Unidades de Pronto Atendimento], integradas com os hospitais gerais de emergência, que, até 2013, teremos mil unidades de pronto atendimento 24 horas.

O terceiro destaque que dou é tudo o que tem a ver com saúde sexual e reprodutiva. Houve uma gigantesca ampliação do acesso aos métodos anticonceptivos. Em 2002, o governo federal distribuiu 8 milhões de cartelas de pílulas; ano passado, distribuímos 50 milhões. Sobre o acesso ao preservativo masculino, hoje o Brasil é o maior comprador mundial de camisinhas em todo o mundo. Só no ano passado foram 500 milhões de preservativos masculinos.

Outro ponto é a política de estimulo à proteção das mulheres em situação de abortamento, com uma discussão que eu diria que foi bastante importante, nos dois primeiros anos da minha gestão, em relação ao aborto. Destaco mais um ponto, que eu gostaria de chamar de complexo industrial da saúde. É uma coisa absolutamente inovadora, que é uma política social, fundamental para a melhoria das condições, mas ao mesmo tempo é um espaço econômico dos mais importantes no mundo hoje. Estou falando de 10% do PIB, de 10 milhões de empregos diretos no Brasil; a saúde atua em campos de tecnologia de fronteira, nanotecnologia, microeletrônica, novos materiais. E o ministério, em conjunto com o setor privado, o BNDES e os laboratórios públicos, iniciou um processo de internalização de novas tecnologias, de produção de novos insumos e medicamentos, através de parcerias público-privadas. Antes, isso era tratado apenas no âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia.

Alguns analistas dizem que o governo da presidente Dilma será de gestão, enquanto que o do presidente Lula foi mais voltado para a política. O senhor acredita que os problemas que ainda persistem na área da saúde são de caráter gerencial? Como o senhor estabeleceu relação com outros ministérios?

A obrigação de todo gestor público é usar melhor os recursos que dispõe. Eu fico um pouco preocupado com certa reificação da gestão como paliativo para todos os problemas, numa palavra que eu odeio, choque de gestão. Acho que essa questão, que chegou atrasada no setor público, já está sendo revista e repensada no setor privado. Claro que você sempre pode, e deve, buscar o melhor arranjo organizacional para gastar melhor; no caso da saúde, contratar melhor, comprar melhor, racionalizar os serviços, usar a tecnologia da informação para que o cidadão possa ter acesso a consultas feitas com mais rapidez. Tudo isso é possível e deve ser feito.

Agora, imaginar que você vai resolver o problema do SUS apenas com gestão, ou, colocando melhor, os problemas de desigualdade, falta de cobertura, baixa qualidade, apenas imaginando que você pode usar melhor os recursos e obter resultados perceptíveis na ponta pela população, eu acho que é uma visão romântica. Essa equação não se resolve assim; ela se resolve tratando gestão e financiamento como prioridades no mesmo nível de igualdade. Diria até que o financiamento é o grande problema, o subfinanciamento é um problema estrutural muito mais importante do que o problema de gestão.

Sim, mas recentemente a presidente Dilma disse que não há clima para a criação de um novo imposto, como a CPMF, para financiar a saúde. Ela disse, ainda, que a limitação de recursos é uma forma de conhecer a capacidade gerencial de um ministro.

Bom, a partir dessa frase, então eu tive um desempenho estupendo, porque se você ver o relatório de gestão, o que nós fizemos com os recursos escassos, tivemos um desempenho extraordinário. Mas acontece que desempenho extraordinário tem que ser percebido dependendo da ótica de quem o vê e o analisa.

Estou muito preocupado com a visão do cidadão que precisa de atendimento lá na ponta, de qualidade e de acesso, além de remédios mais baratos, serviços melhores e profissionais mais bem remunerados, alegres e satisfeitos com o trabalho que estão desenvolvendo. E isso não está acontecendo, e um dos principais fatores de impedimento desse processo é a asfixia crônica do SUS, que existe desde 1990, quando foi criado. Percebo, e aí estou falando agora como professor da Fiocruz, que estamos caminhando perigosamente para uma americanização do sistema de saúde brasileiro. Há uma degradação lenta e continua do setor público e uma colocação do setor privado, como se o mercado de planos de saúde pudesse dar conta dessa realidade.

Vamos na contramão do que acontece na Inglaterra, por exemplo, onde a medicina está mais socializada.

Veja os Estados Unidos, que é um paradigma da medicina corporativa. Quando você pega as duas principais referencias públicas no mundo, Inglaterra, como a referencia positiva, e EUA, como a referencia negativa, os EUA gastam 17% do PIB em saúde, e a Inglaterra, 8%. E os indicadores de saúde e de satisfação da Inglaterra são muito superiores aos dos EUA. O presidente Barack Obama enfrenta uma séria resistência do estado médico para implementar mudanças. E o Brasil já tem a resposta para enfrentar o problema, que é o SUS. E fragilizá-lo é paradoxal, porque você estaria indo na contramão do que se discute hoje no mundo, que á a maior superioridade dos sistemas universais do acesso igualitário para garantir saúde e equilibrar, do ponto de vista financeiro, a qualidade e o acesso.

Sobre o modelo de fundações estatais, defendido exaustivamente pelo senhor, em que ele se difere das organizações sociais estaduais e por que não deve ser considerado privatização da saúde pública?

A principal diferença entre uma organização social e uma fundação estatal é que esta última é um ente público, e a outra é ente privado. Na organização social, você transfere a um ente privado a gestão de um serviço ou uma rede.

Mas por que a fundação estatal não foi para frente na sua gestão?

Por vários motivos, mas basicamente pela reação das corporações e os trabalhadores, que se colocaram contra, com um falso discurso de que isso significa privatização. Na realidade, é o contrário. Em muitas situações, o setor público está privatizado por interesses profissionais; a fundação estatal visa a garantir que os serviços de um hospital, ou rede, continuem público, mas com uma administração com critérios a partir de personalização da gestão, indicadores de desempenho.

A grande polêmica foi com relação ao contrato de CLT. Ao meu ver, a estabilidade no emprego público é altamente positiva em determinadas carreiras de Estado, como o judiciário, a Receita Federal, o Polícia Federal, órgãos de fiscalização e controle e agências reguladoras. Agora, em prestação de serviços de saúde, pode ser um fator de acomodação e de baixo desempenho. Então, a fundação estatal vem para resolver uma série de problemas. Não consegui fazer a proposta avançar no governo federal, mas ela foi adotada e avança com sucesso em muitos estados brasileiros, como Pernambuco, Bahia, por meio do Jaques Wagner, no Rio de Janeiro, no Espírito Santo.

Como se resolveria os problemas em ralação aos repasses de recursos, transparência?

Isso é um problema, realmente. Mas a fundação, sendo pública, é submetida a todos os controles do CGU, do TCU. Todos os princípios da administração pública são preservados. O caso das organizações sociais é distinto, porque elas recebem, através de um contrato de gestão, recursos públicos, mas são entidades privadas. Então tem toda uma diferença, e deve haver uma discussão acadêmica e política sobre o que seria melhor.

Mas uma coisa curiosa que queria chamar atenção é que, na ponta, os prefeitos, os secretários de saúde estão desesperados, buscando uma maior eficiência dos serviços. A própria presidente coloca, temos que fazer mais com os recursos que temos. Dentro da atual estrutura da administração pública, impossível. Todos os estudos e indicadores recentes do Banco Mundial mostram isso, deficiência brutal dos hospitais públicos, caros e ineficientes, os profissionais não cumprem a carga horária, pois são muito mal remunerados. Não tive praticamente nenhum apoio nessa batalha, o Congresso Nacional não apressou a matéria, engavetou, mas me consola, sim, o fato de que o tema prosperou em vários estados e municípios.

O senhor falou de municípios e estados. Nos últimos anos, a União diminuiu sua participação nos gastos com saúde. Em 1980, os gastos eram de 75% e, em 2005, 49%; enquanto que os municípios e estados saíram de 25%, em 1980, para 51% em 2005. Isso não deveria ser revertido?

Precisamos colocar um novo olhar nesta questão. Em 1988, nós tivemos uma redistribuição de recursos financeiros, de fontes de recursos, para estados e municípios, e isso tem que ser levado em conta. De fato, quando você analisa o orçamento do Ministério da Saúde, em relação ao percentual do PIB e outros gastos, é evidente que a própria pressão da população e do gestor, na ponta – os prefeitos hoje, que são obrigados pela lei a gastar 15% das suas receitas, não tem nenhum município com mais de 50 mil habitantes que não esteja gastando de 20% a 25%.

Com os estados, por outro lado, ocorre diferente: a maioria cumpre os 12% que estabelece, mas muitos não cumprem, pela falta de regulamentação do que é gasto com saúde. É a história da Emenda 29 – a União se sentiu confortável dentro da regra que foi aprovada em 2000, ou seja, de que o governo federal corrija o seu orçamento a partir da variação nominal do PIB, isto é, o gasto do ano anterior corrigido pela inflação, mais o crescimento econômico. Isso é, evidentemente, insuficiente.

Um dado contundente do IBGE mostra que, no Brasil, só 40% dos gastos em saúde são públicos, e 60% são gastos das empresas e das famílias. Enquanto as famílias de classe média que tem planos de saúde gastaram, em média, R$ 1.400 per capita/ano, o SUS gastou algo equivalente a R$ 600 per capita/ano. Mas também se deve considerar que o SUS tem encargos em torno de todas as campanhas de vacinação, transplantes, acesso a medicamentos de doenças crônicas, tratamento retroviral para quem vive com AIDS, tudo isso onera o SUS. 

Clique aqui e acesse a segunda parte da entrevista com José Gomes Temporão.

Luis Nassif

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador