Saúde Mental e a Arte Insensata em BH

A experiênciade Belo Horizonte no tratamento da Saúde Mental

Modelo mineiro estabelece vínculo sólido entre saúde mental e cultura, e reconhece em suas políticas públicas a importância das artes para o tratamento.

Por Bruno de Pierro, no Brasilianas.org
Da Agência Dinheiro Vivo

“Nem todo paciente de saúde mental é um Bispo do Rosário (1909-1989), mas grande parte tem uma enorme habilidade para a produção artística”, brinca Rosemeire Silva, coordenadora de Saúde Mental da Secretaria de Saúde de Belo Horizonte, ao falar sobre o destino das obras produzidas por pacientes da rede de saúde mental da cidade. Referência para os jovens artistas que expõe na Mostra de Arte Insensata, realizada desde 2008 na capital mineira, o artista plástico sergipano é considerado um dos principais nomes da Arte Contemporânea brasileira. Diagnosticado esquizofrênico, fez da pintura a porta de entrada para o convívio social de que todo paciente de saúde mental tem direito.

Em 2012, a mostra, que é bienal e já virou política pública, chegará a sua terceira edição. Nela, é levado a público todo o material produzido pelos usuários dos Centros de Convivência e dos Centros de Referência em Saúde Mental, conhecidos como CERSAMs – apenas outra denominação para os Centros de Atenção Psicossocial, os CAPS. Há desde exposições de artes plásticas visuais, até uma programação cultural, com grupos de música e teatro formados por pacientes, apresentando-se ao lado de artistas de renome. Ao mesmo tempo, funciona o Mercado Maluco, com todo o artesanato que foi produzido nos centros. “A mostra é um grande encontro dos usuários com a cidade, pois se trata de um evento cultural aberto, que tem a intenção de estabelecer um diálogo, mudando o cenário de exclusão que ainda ameaça o doente mental”, afirma a coordenadora.

Diferente de São Paulo, a gestão dos CERSAMs em Belo Horizonte é feita pela prefeitura, e não por Organizações Sociais. Há convênios com o terceiro setor na gestão das casas e na contratação de monitores para os Centros de Convivência, pois são profissionais que não fazem parte do quadro da Saúde, como músicos e pintores.  

Para Rosemeire, o paciente deve ter à disposição uma pluralidade de serviços. “Não é apenas CERSAM, terapia e remédios; faz parte de um bom tratamento, por exemplo, o acesso ao cinema, quando distribuímos ingressos. E não se trata de salas específicas para doentes, mas sim seção de cinema normal, aberta para a população”. A Secretaria de Saúde compra ingressos e os entrega para usuários dos serviços de saúde mental. “O cinema é importante para a formação sensível do cidadão e para o enriquecimento do mundo interior de cada um. Não oferecemos só remédio, mas também tinta, papel e passeio”, completa.

Rede em formação

A política de Saúde Mental de Belo Horizonte começa a ser montada em 1993, de acordo com as novas diretrizes da reforma psiquiátrica, que traz novos dispositivos para substituir o modelo dos hospitais psiquiátricos. Naquele momento, a cidade tinha aproximadamente 2.200 leitos psiquiátricos e cinco hospitais psiquiátricos, sendo três privados e conveniados ao SUS e dois públicos. O fervor da luta antimanicomial chega ao município, e uma rede substitutiva começa a ser pensada.

Quase 19 anos depois, a rede ainda não está completamente formada, mas já produziu importante efeito de transformação. Dos cinco hospitais, apenas os dois públicos ainda funcionam, totalizando cerca de 200 leitos. O processo de desativação deles ocorre, mas é dificultado pelo fato deles atenderem todo o Estado mineiro, e não apenas Belo Horizonte. Assim, é preciso que os demais municípios desenvolvam suas redes, para que possam atender a demanda. Em Belo Horizonte, a maioria dos pacientes de transtornos mentais são atendidos nos outros dispositivos da rede.

A capital mineira conta com nove CERSAMs. Desse total, sete tem atendimento 24h durante todos os dias da semana. Os outros CERSAMs – um de álcool de drogas e outro infanto-juvenil – devem, ainda este ano, passar a funcionar 24h, tornando-se atendimentos de nível III, como os CAPS.

Todos os 147 Centros de Saúde da cidade possuem equipes especializadas em Saúde Mental, com pelo menos um psicólogo, e em 58 centros há a presença de psiquiatras. Nos centros, a atenção é direcionada para aqueles pacientes que não precisam mais de cuidados tão intensivos, e já não necessitam de visitas constantes aos CERSAMs. Nesses ambientes eles também encontram suporte de profissionais da Saúde da Família, que, no total, somam 555 equipes atendendo 80% da população de BH.

Os profissionais da Saúde Mental (psicólogos e psiquiatras), além de atenderem, reúnem-se, uma vez por semana, com equipes da Saúde da Família, para capacitá-los a lidar com o usuário dos centros que é portador de transtorno mental. Estas reuniões são chamadas de Encontros de Apoio Matricial – uma estratégia que está consolidada na rede de Belo Horizonte.

O município também conta com nove Centros de Convivência, de acordo com as nove regiões administrativas do território. “Percebiamos que os usuários tinham a vida regida pelos hospitais psiquiátricos: ou eles estavam dentro ou fora do hospital. Eles viviam excluídos de todos os espaços da vida social, e mesmo quando fora do hospital, a vida se restringia a ir a consultas e voltar para casa”, conta Rosemeire.

Foram configurados espaços de convívios capazes de oferecer, aos pacientes, recursos próprios da área da cultura. Os profissionais responsáveis pela condução dessas atividades são, portanto, artistas plásticos, músicos, atores, bailarinos e artesãos, numa clara influência do trabalho da psiquiatra Nise da Silveira. “Usamos a arte para criar condição para que as pessoas estabeleçam outras relações de identidade entre eles mesmos, para fazer do momento de convívio um momento mais interessante”, explica Rosemeire. Além disso, a rede conta também com as 24 Serviços Residenciais Terapêuticos, que são moradias onde vivem usuários que estavam abandonados em hospitais psiquiátricos.

Foi desenvolvida uma Política de Inclusão Coletiva dos usuários. Rosemeire conta que, há 12 anos, alguns usuários da rede, estimulados e incentivados pelo movimento da luta Antimanicomial, começaram a se organizar em grupos de produção, constituindo uma cooperativa. A partir dessa experiência, a Secretaria de Saúde do município criou, em 2003, uma política de apoio político e financeiro a essa iniciativa. A cooperativa foi batizada de Associação de Trabalho e Produção Solidária, mas é conhecida como Suricato, em referência ao pequeno animal nativo do sul da África, considerado o mamífero mais solidário do planeta.

Em relação ao atendimento de emergência, principalmente nos momentos de crise, a rede tem o Serviço de Urgência Psiquiátrica Noturno, em parceria com o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) e com os CERSAMs, que acolhe, todas as noites, os pacientes que são trazidos pelo SAMU ou pela Polícia Militar. No dia seguinte, a pessoa é inserida no CERSAM do seu território, de acordo com seu projeto de tratamento.

Existem também serviços específicos para a atenção à criança e ao adolescente. Além do CERSAM infanto-juvenil, há nove equipes complementares de atenção à saúde mental da criança e do adolescente, formada por um psiquiatra infantil, um fonoaudiólogo e um terapeuta ocupacional. Eles trabalham no Centro de Saúde e também atendem nos CERSAms, em parceria com os psicólogos. Há, ainda, oficinas, chamadas de Arte da Saúde, que ficam na comunidade e contam com monitores auxiliando. O aparato é completado com mais duas equipes de Consultórios de Rua.

Rosemeire diz que a rede está sendo ampliada. A expectativa é que quatro novos CERSAMs-ad sejam criados nos próximos anos. Há a necessidade também de mais um CERSAm infantil; leitos em hospitais-gerais, principalmente para os casos de abstinência e de intoxicação aguda por álcool e outras drogas; e pelo menos mais duas equipes de Consultório de Rua e duas casas de acolhimento para idosos. Nesse momento, está sendo construído um novo CERSAM, para ser inaugurado ainda em 2012.


 





Luis Nassif

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