Segurança pública como questão política, por Edson Teles

Do blog da Boitempo

Segurança pública como questão política
 
por Edson Teles

Temos assistido à repetição de um forte discurso de alerta sobre a violência urbana, gerando o medo e a necessidade de medidas “fortes” para conter a situação de insegurança vivida nas grandes cidades. Reduzir a idade penal para conter a presença dos adolescentes no crime; encarceramento em massa da população com aumento das penas; aquisição de armamentos novos e mais eficazes para as polícias militares; investimento em tecnologia de vigilância da população, criação de batalhão de policiais preparados para impedir manifestações de rua; uso de forças armadas para patrulhamento de espaços civis precarizados com a ausência do Estado.

Não há dúvida de que a considerada população vitimizada de fato sofra com a ocorrência constante de crimes, dos mais corriqueiros e leves aos mais trágicos e horríveis. E nesta sociedade agressivamente machista, especialmente as mulheres têm sido alvo desta aparente desordem das cidades.

Contudo, há a produção de eficientes máquinas de controle social fundamentadas no discurso da violência urbana e na legitimação de políticas de uso da força na segurança pública, o que têm alimentado uma violência desmedida e histórica por parte de agentes do Estado. Ano após ano, em continuidade à lógica de combate ao inimigo interno institucionalizada durante a ditadura pela doutrina de segurança nacional, o Estado de Direito não tem obtido resultados positivos no incremento da capacidade de uso da força por parte dos equipamentos de segurança pública. Além de pouco modificar o quadro da forma de vida vulnerável dos grandes centros urbanos, as informações publicizadas indicam o aumento constante da violação de direitos por parte dos aparatos e agentes do Estado, com destaque para o crescimento das cifras de brasileiros assassinados por ações de instituições de segurança.

São chacinas operadas por policiais e com apuração muito lenta, quase inexistente, pelos órgãos de justiça. A autorização da ação violenta nas periferias contra os jovens atingiu seu ápice de legitimação com a discussão e aprovação parcial na Câmara Federal da redução da maioridade penal. Não é preciso tornar-se lei a definição social e biológica do “inimigo”, mas é suficiente que o discurso social e das instituições assim o considerem.

Parece esquizofrênico, mas quanto mais o Estado é violento, mais o quadro social se apresenta como de crise produzida pela violência urbana e mais se autoriza o investimento na capacidade de uso da violência por parte das políticas de segurança pública. Parece-nos que tal quadro não é o resultado de falhas ou má execução destas políticas. Ao contrário, há neste processo a eficaz produção de uma sociedade de controle, disciplinamento e punição, produzindo o cidadão domesticado e manso, para que assim ele seja ainda mais produtivo sem tomar em suas mãos a própria potência de agir politicamente. Do ponto de vista da eficácia desta política de segurança pública é mais importante uma situação de violência urbana do que de relações harmoniosas e ordeiras.

Parece haver um cálculo da aplicação da força por parte do Estado, dando à sua ação um aspecto teatral e espetacular, com o objetivo de produzir essencialmente dois efeitos práticos.

O primeiro seria a disseminação do terror, mobilizando uma opinião pública com a sensação de vulnerabilidade e alimentando o jogo do medo mantido pelo Estado, o que institucionalmente e em larga escala ocorre ao menos desde a ditadura. Neste contexto, pouco importa se as polícias têm a imagem de eficientes ou de serem completamente desestruturadas. O segundo efeito é o de mostrar para a população que a força aplicada será sempre que necessário acima da legalidade. Nesta prática de segurança pública a lei funciona como um parâmetro de medida da violência vinda dos agentes do Estado para aqueles que saírem da normalidade social e política.

Exemplo trágico deste modelo foram as chacinas de Osasco e Carapicuíba, levadas a cabo por policiais agindo no formato dos antigos esquadrões da morte dos anos 70 e contando com a impunidade – resultado da conivência das ouvidorias, da própria polícia e do judiciário com os crimes do Estado. Se a grande mídia tenta colar a ideia de um evento abusivo por parte de alguns policiais, a modificação da cena dos crimes e de destruição de provas praticadas por policiais que atenderam as ocorrências mostra a cumplicidade do sistema aomodus operandi. Segundo recente relatório da ONU (de outubro de 2015), ocorre no país uma política sistemática de “limpeza” dos centros urbanos sob a aparente justificativa de preparar as cidades para os mega eventos esportivos (Copa do Mundo e Olimpíadas). No caso de Osasco, a demora e os recorrentes “erros” nos procedimentos de apuração estão produzindo o terreno para que não se coloque em risco a política atual de segurança.

Assim, cria-se o cidadão de bem, pacífico, trabalhador (ou proprietário) e ordeiro, e o vagabundo, vândalo, louco, drogado, arruaceiro, o indivíduo fora das bordas que delimitam o possível autorizado pela ordem. Desta forma, a combinação do jogo do medo com a percepção de uma força acima das leis, a segurança pública em prática no país visa demonstrar que o aparato jurídico é insuficiente para proteger os cidadãos.

É por estas razões que campanhas pela diminuição da maioridade penal ou pelo recrudescimento das leis são vitoriosas mesmo quando não atingem seu objetivo aparente e discursivo. Não é necessário alterar a menoridade ou aumentar a pena por determinado crime, pois a pauta conservadora de seus debates já criam um imaginário e legitimam a ação violenta e violadora por parte do Estado.

A legitimação da violência do Estado não parece ser um engano ou falha do Estado de Direito, mas sim a ação política de uma sociedade do controle e do bloqueio de suas potências criativas e transformadoras.

dossiÊ violência policial

Confira o dossiê especial “Violência policial: uso e abuso“, no Blog da Boitempo, com artigos, reflexões, resenhas e vídeos de Slavoj Žižek, Ruy Braga, Luis Eduardo Soares, Mauro Iasi, Christian Dunker, Gabriel Feltran, Maurilio Lima Botelho, Marcos Barreira, Antonio Candido, Mouzar Benedito, Jorge Luiz Souto Maior, José de Jesus Filho, Raquel Rolnik, Guaracy Mingardi, Silvio Luiz de Almeida, Marcelo Freixo, Ciro Barros, Maria Lúcia Karam, Pedro Rocha de Oliveira, David Harvey, Vera Malaguti Batista, Laurindo dias Minhoto e Loïc Wacquant, entre outros.

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Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

Redação

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  1. Talvez seja a violência o

    Talvez seja a violência o problema brasileiro que mais abre caminho para que o discurso conservador avance entre a classe média e os setores populares. 

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