20 de maio, dia em que os índios reacenderam o sol com flechas em chamas

Por Fábio de Oliveira Ribeiro

Pouca gente tem conhecimento da importância desta data. Hoje faz exatamente 67 anos que ocorreu a primeira radio transmissão ao vivo da reação de índios brasileiros a um eclipse solar. O fato foi observado pelos irmãos Villas Boas durante a  Expedição Roncador-Xingu e reportado para o Rio de Janeiro que levou ao ar o relatório que eles fizeram do episódio.

Eis aqui alguns fragmentos da narrativa feita por Orlando e Cláudio Villas Boas:

“Há grande expectativa no eclipse total do sol amanhã. Da United Press recebemos dois radiogramas pedindo nossa atenção nas reações que possam ter os índios diante do fenômeno. Os despachos, informam  ainda, serão divulgados na edição extraordinária, se forem interessantes. Uma rede seria formada para a transmissão.

……………………………….

……………………………….

20 de maio de 1947, terça feira. Apesar do mau tempo da noite, amanheceu com um tempo muito bom. Sabíamos que o eclipse seria das oito e meia em diante, mas às oito entramos em contato com a nossa estação em Aragarças e esta, por sua vez, nos comunicou que estava com o Rio na escuta. Enquanto a nossa estação funciona, muitos índios  vem para a porta do rancho ouvir, mas não era preciso que viesse, estão acampados embaixo de uma árvores a menos de trinta metros do rancho. Nenhum deles podia sonhar com a surpresa que teriam dali a instantes. Nós três (Leonardo, Claudio, Orlando) observamos atentos todos os seus movimentos.

…………………………………

…………………………………

Às oito e quarenta os índios ainda sossegados conversavam calmamente conosco.

Daí em diante começa a confusão. Gritos, choros, discursos, correrias, flechas com fogo para acender o sol. Mulheres e crianças, todas brancas de cinza e provocando vômito com pedaços de pau. Alimentos jogados no rio. Pálidos, os índios corriam e gritavam que o sol ia morrer. Flechas e flechas untadas de resina e incendiadas foram lançadas para acender o sol. Um grande quadro de aflição.

……………………………………….

………………………………………..

Não acrescentamos nos nossos despachos, mas  anotamos, a preocupação e o ar de espanto dos sertanejos trabalhadores da Expedição. E a eles  desde ontem vínhamos falando e explicando o fenômeno do eclipse do sol.”  (A MARCHA PARA O OESTE, Villas Boas, editora Companhia das Letras, 2012, p. 250/251).

Esta foi a primeira vez na história do Brasil, talvez até na história mundial, que um fenômeno como este foi observado e imediatamente reportado via rádio para o grande público. Trata-se de um marco na história do jornalismo brasileiro, que ultimamente tem sido tão pobre e malvado quando se refere aos índios e à questão indígena. Espero que o espírito generoso, tolerante e pioneiro dos Villas Boas volte a inspirar os jornalistas brasileiros.

Uma última advertência. Antes de o leitor rir da atitude dos índios que atiraram flechas acesas para acender o sol, sugiro que ele veja ou reveja Sunshine (2007).

O filme de ficção científica de Danny Boile, que foi e continua a ser visto ao redor do planeta, tem um roteiro interessante. Num futuro próximo, o sol está morrendo. Uma expedição é enviada até o mesmo para atirar nele uma bomba nuclear com a finalidade de reativar as fusões nucleares em seu interior. Segundo os críticos do filme, Sunshine tem várias incorreções científicas http://en.wikipedia.org/wiki/Sunshine_(2007_film).  Alguns cientistas afirmaram que alguns milhões de bombas nucleares seriam necessárias para produzir o efeito sugerido no filme.  Seria tão impossível reacender o sol com uma bomba nuclear quanto com uma flecha acesa.

O relevante aqui não é necessariamente a impossibilidade do sol moribundo ou eclipsado ser aceso de uma maneira ou de outra, mas a ocorrência do mesmo tema e solução mágica em civilizações muito diferentes. Os índios observados pelos irmãos Villas Boas não tinham conhecimento de astrofísica e fizeram o que acreditaram ser necessário em razão do eclipse (provavelmente mais para acalmar suas mulheres e crianças do que por acreditarem que seria possível reacender o sol com uma flecha acesa).  A civilização ocidental produziu conhecimento de astrofísica suficiente para saber que o sol não morrerá rapidamente e que seria inútil atirar uma bomba atômica nele para reanimá-lo. Mesmo assim foi capaz de representar isto em termos artísticos com muito requinte e ao preço de uma pequena fortuna.

Assisti Sunshine quando foi lançado e ri bastante em razão de algumas de suas falhas científicas evidentes. Não riria da conduta dos indígenas que foi descrita no livro dos irmãos Villas Boas, pois acredito que é preciso respeitar uma cultura diferente da nossa (especialmente se a mesma ainda não desenvolveu os mesmos recursos científicos que o ocidente). Tenho certeza, porém, que alguns admiradores brasileiros da obra de Danny Boile acreditam que o filme retrata algo possível e rirão ao ouvir dizer que, durante um eclipse, índios brasileiros atiraram flechas para acender o sol. Foi por isto tomei o cuidado de fazer esta pequena digressão com a finalidade de preventivamente rir deles.  

Fábio de Oliveira Ribeiro

9 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. O grande Orlando Villas Boas

    Interessante o relato. Gostei. Sempre admirei o Orlando Villas Boas (e seus dois irmãos). Eram idealistas abnegados e humanos como poucos. Orlando era  simples, pratico e grande contador de “causos indigenas”, além de exemplo de funcionario publico.

    Foi assessor da Funai (antes, foi um dos fundadores desse orgão) durante o Governo Collor. Transcrevo (uma colagem do UOL de janeiro de 2000) uma notícia sobre sua desrespeitosa demissão. Deu pano pra manga, deixou muita gente indignada.

    ………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………..

    O sertanista Orlando Villas Bôas, 86, um dos fundadores da Funai (Fundação Nacional do Índio) na década de 60, foi demitido do cargo de assessor do órgão na última terça-feira.

    Ele foi comunicado da demissão por um fax enviado pelo presidente da Funai, Frederico Marés de Souza Filho. “Houve falta de consideração. Não questiono a demissão, que é uma prerrogativa do presidente, mas a maneira como foi comunicada”, disse.
    A justificativa apresentada no fax foi a necessidade de evitar acúmulo de benefícios -o sertanista vinha recebendo desde 99 uma pensão vitalícia concedida pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Na época, também foi agraciado o irmão de Orlando, Cláudio, que já morreu.
    “Os índios estão passando fome. Há 22 aldeias litorâneas totalmente desassistidas. Perto do que acontece com os índios, isso (a demissão) é ninharia”, afirmou Villas Bôas.
    Segundo ele, o acúmulo de benefícios “poderia ter sido resolvido com um telefonema”. “Eu abriria mão do cargo sem nenhum problema.” Segundo ele, o salário e a pensão têm valor semelhante, de “cerca de R$ 1.000”.
     

    1. Errata

      Corrigindo lapso, equívoco na informação: a demissão não aconteceu no Governo Collor e sim no Governo FHC que, pressionado pela imprensa e publico, fez um simulacro de retratação formal pela indelicadeza cometida.

      .

  2.  
    “Pálidos, os índios corriam

     

    “Pálidos, os índios corriam e gritavam que o sol ia morrer. Flechas e flechas untadas de resina e incendiadas foram lançadas para acender o sol. Um grande quadro de aflição.”

    Bela narrativa de um momento muito especial.

    O sol é tão importante para os seres humanos que lhe damos característcas nossas como nascer, morrer, esconder…

    Os índios brasileiros não tinham a sofisticação, digamos, científica dos maias, astecas e incas, mas tinham intuição forte. Lançavam flechas com fogo porque faziam analogia com fogueiras, provavelmente, baseada na cor e no calor produzido. Certamente, não foi a primeira vez que viram um eclipse, a tradição oral deve ter passado a informação de geração para geração e, como das outras vezes, a ação de “acender’ o sol funcionou perfeitamente, já que o astro rei revigorou-se. A novidade foi a presença de outros seres humanos, educados em outra cultura,mas com sensibilidade para compreender e narrar o acontecimento.

    Não creio que alguém possa rir da crença dos índios porque para chegarmos aos Newtons, Einsteins e Galileus, tivemos muitos pré-colombianos atirando flechas em direção ao futuro.

    PS. A citação de um filme, fez-me lembrar de outro , “2001, Odisséia no Espaço” de Kubrick. Na cena inicial, dois grupos de símios disputam o que resta de um pequeno reservatório de água (uma espécie de Cantareira),  o plano me trouxe a cabeça a lembrança de tucanos e paulistas. Mais quatro anos com eles, a volta a Idade da Pedra será inevitável. Caso evoluam em direção ao futuro, teremos uma Los Angeles como a retratada em “Blade Runner”, só que sem luz,  água e falida financeiramente. Os tucanos são exímios gestores,  especialíssimos em causar apagões.

    1. “o plano me trouxe a cabeça a

      “o plano me trouxe a cabeça a lembrança de tucanos e paulistas.

      Luiz, tucanos é possível generalizar. Paulistas não. Me inclua fora dessa. Agradecido.

      No mais, belíssima e significativa essa história/fábula sobre acender o Sol, postada pelo Fábio Oliveira.

       

       

  3. Errata – Villas Boas

    Num comentário (ainda não publicado) dei uma informação incorreta: Orlando Villas Boas foi desrespeitosamente demitido da Funai no Governo Collor.

    Nada disso. Foi no Governo FHC, em janeiro de 2000. Pressionado pela imprensa e opinião publica o Governo se retratou pela atitude inadequada. Pouco adiantou. Orlando não retornou à Funai e morreria pouco tempo depois.

  4. Eclipses

    Os eclipses sempre fascinaram os homens.

    O Isaac Asimov, exímio contista ganhou o prêmio que lhe lançou na carreira de escritor com o conto Nightfall, que era justamente um eclipse em um planeta de dois sois. Com dois sois os eclipses eram eventos milenares, assim o povo do planeta não conhecia a escuridão e da ocasião deste evento o caos que se manifestava destruia as civilizações que tivessem presentes, retornando tudo à idade das pedras.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador