A desilusão de Jorge Amado com o comunismo

Jornal GGN – Matéria da BBC Brasil fala sobre a relação de Jorge Amado com o comunismo, sua prisão, seu exílio e o livro que começou, mas não chegou a terminar, pois se desiludiu com a ideologia depois que Joseph Stálin promoveu a matança e a exploração dos trabalhadores na antiga União Soviética.

O manuscrito também tem uma história interessante. Com medo de ser preso ao voltar para o Brasil, Jorge Amado confiou todos seus pertences (com vastas provas de suas atividades comunistas) a três mulheres.

Só muitos anos depois, em 2011, o acervo chegaria às mãos da professora Tânia Regina Oliveira Ramos, que leciona na universidade federal catarinense.

Da BBC Brasil

Romance inédito de Jorge Amado ‘foi abandonado por desilusão com o comunismo’

Aline Torres

“O relógio discordava dos móveis da sala, antigos e pesados, um relógio pequeno e moderno, presente que Dalva recebera no último aniversário.” Essas são as primeiras linhas de um romance inédito de Jorge Amado (1912-2001), batizado com dois títulos – Agonia da Noite e São Jorge dos Ilhéus.

Ambos acabaram sendo os nomes de duas outras obras posteriores do escritor, que não se assemelham em nada com o romance perdido.

A obra inacabada passou mais de sete décadas na clandestinidade e atualmente vive silenciosa no Departamento de Literatura e Memória da Universidade Federal de Santa Catarina. Para a atual guardiã da obra, Jorge Amado teria se desiludido com a ideologia comunista e nunca quis rever os manuscritos.

No auge da militância política, em 1941, Jorge Amado se exilou em Buenos Aires a pedido do PCB (Partido Comunista Brasileiro) para escrever a biografia de Luís Carlos Prestes.

Cinco anos antes, Prestes e sua companheira Olga Benário haviam sido presos pelo governo de Getúlio Vargas, após a ANL (Aliança Nacional Libertadora), movimento que liderava, ter sido ser posta na ilegalidade.

O livro escrito às pressas foi uma tentativa fracassada de libertar o casal. Primeiramente, foi publicado em espanhol – os exemplares eram negociados clandestinamente no Brasil -, até que a edição foi proibida na Argentina e queimada por ordem do governo de Juan Perón. A primeira edição brasileira saiu em 1945, com o título O Cavaleiro da Esperança, reeditado pela Companhia das Letras.

O que apenas pouquíssimas pessoas sabem é que na mesma época o autor baiano escreveu um romance introspectivo com 76 páginas e deixou o trabalho aos cuidados de uma companheira de ideologia no Uruguai, para evitar uma possível prisão no retorno ao Brasil por causa do conteúdo, considerado altamente revolucionário.

Agonia da Noite ou São Jorge de Ilhéus narra as doze horas de vida de doze personagens. O enredo fala da espera por um sinal de luta para iniciar um levante comunista. O cenário, uma sala e um rádio e o temporal que não dá trégua.

A ação se passa na cidade de Estância, em Sergipe, terra natal de Alina Paim, escritora feminista e militante do PCB que dedicou sua principal obra, Estrada da Liberdade, ao amigo Jorge Amado.

Na obra incompleta de Jorge Amado, não há um personagem principal. O texto intimista descreve anseios, sentimentos e esperanças dos homens e mulheres:

“Quanto tempo estivera parado em frente à porta, irresoluto? Ele mesmo não sabia… Poderia ter sido um minuto, poderia ter sido uma hora. Porém, fosse um minuto ou uma hora, a verdade é que não fora tempo suficiente para que se decidisse. Sabia apenas que a chuva o molhara todo, que suas mãos pingavam e que, quando Lopes abrira a porta ele ainda não tomara uma decisão.”

O livro é apenas uma pequena parte do acervo deixado por Jorge Amado. A obra integra o conteúdo de uma mala com 1,4 mil documentos, guardados por três mulheres desde 1942: Rosa, Leonor e Tânia.

Rosa

Rosa é um codinome dado em homenagem a Rosa de Luxemburgo, comunista e revolucionária alemã assassinada em Berlim por paramilitares de direita em 1919. A Rosa-sem nome era uma judia polonesa, que vivia em Porto Alegre com o marido Isaac Scliar e as filhas, Esther e Leonor.

Ferrenha ativista do comunismo, Rosa foi deportada com a família pelo governo brasileiro para o Uruguai em 1929. Dois anos depois, os Scliar voltaram para o Brasil – foram morar em Livramento, na fronteira gaúcha.

Rosa abandonou a família para seguir um amante que conhecera no Uruguai e a causa vermelha. Esther tinha cinco anos; Leonor, dois.

Ainda no Uruguai, ela foi visitada pelo camarada Jorge Amado, que, segundo ela, estava ansioso para voltar ao Brasil, mas temeroso de ser preso. Deixou com ela a mala com seus documentos, que comprovam o trabalho partidário.

As filhas de Rosa cresceram em Porto Alegre. Esther, como a mãe, se tornou militante ativa, filiada à Juventude Comunista do PCB. Foi uma grande pianista e compositora e, aos 51 anos, se suicidou. Leonor virou poeta e acadêmica de Letras.

Leonor e Tânia

Após muitos anos, Rosa procurou a filha Leonor Scliar-Cabral em busca de reconciliação. Contou sobre a atividade comunista e entregou uma mala, deixada aos seus cuidados em 1942 por Amado.

Leonor guardou em segredo o vasto material até os seus 82 anos. Em 2011, entregou seu tesouro à professora Tânia Regina Oliveira Ramos, que leciona na universidade federal catarinense.

“Para ela não importava o Jorge Amado. Os documentos são a memória afetiva da mãe. Tanto que ela me pediu: ‘Se algum trabalho acadêmico for publicado, gostaria que fosse dedicado à minha mãe'”, conta Tânia.

Desejo cumprido pelas dissertações de mestrado de Roberta de Fátima Martins e Thalita Coelho, ambas orientadas por Tânia.

Paixão Comunista

Jorge Amado começou a escrever Agonia da Noite/São Jorge de Ilhéus no auge do fascínio pelo comunismo. Em 1939, o jornal literário carioca Dom Casmurro  prometia o lançamento em breve. O que nunca ocorreu.

Tânia acredita que o autor tenha tentado finalizar a obra durante o exílio, mas se desmotivou. Com a matança e a exploração dos trabalhadores promovida por Joseph Stálin, na União Soviética, ele teria se desiludido com a ideologia comunista e nunca quis rever os documentos da mala.

Desde o seu primeiro livro, O País do Carnaval, escrito aos 18 anos, Jorge Amado cortejou o ativismo comunista, refletindo as inquietações da sua geração na busca por um sentido que acabou sendo fornecido pela ideologia política, alicerçada na crença de um mundo mais justo.

Acusado de ter participado da chamada Intentona Comunista, o movimento criado por Prestes, Amado chegou a passar dois meses na cadeia no Rio de Janeiro.

Cacau, sua segunda obra, foi um livro panfletário e a edição foi imediatamente apreendida pela polícia. O escândalo virou sucesso, a edição se esgotou em um mês e foi traduzida em dez idiomas.

O quarto livro de Amado, Jubiabá, o transformou num escritor admirado internacionalmente. Por isso, correu longe a notícia da sua prisão.

Capitães de Areia, de 1937, tem narrativa fortemente socialista. Pedro Bala, líder dos meninos órfãos pelas ruas de Salvador, é preso, foge, mete-se em greves de estivadores, até que se converte em militante proletário. O livro foi publicado após a implantação do Estado Novo, apreendido e teve exemplares queimados em praça pública. Nesse ano, o autor foi preso novamente por subversão.

Pesquisa

Aos 29 anos, aclamado pela crítica, odiado pela direita e autor de sete livros, Jorge Amado partiu então para o exílio na tentativa de libertar Prestes e sua companheira e o transformar em um herói latino-americano – pela biografia que se propunha escrever.

Entretanto, o romance não foi publicado a tempo e Jorge Amado foi novamente preso ao voltar para o Brasil – mas sem a mala, que comprovaria vastamente sua atividade comunista. Sem provas, foi solto com a ordem de se apresentar semanalmente no Dops (Delegacia de Ordem Política e Social) em Salvador.

Com a legalidade do PCB após a queda de Getúlio Vargas, em 1945, o escritor concorreu e venceu as eleições para deputado federal por São Paulo. Seu mandato, no entanto, foi cassado como consequência da aliança do Brasil com os Estados Unidos.

Resolveu se refugiar no exterior. Primeiro em Paris, depois na então Tchecoslováquia, quando escreveu um relato de viagens pelas regiões da União Soviética que percorreu para mostrar a febril atividade dos povos para reparar os danos causados pela guerra.

Exaltou o esforço pela implantação do socialismo, bem como a política em prol da paz mundial. A obra, no entanto, trouxe amargura, por causa de sua decepção com a política de Stálin na URSS.

Acervo em risco

A professora Tânia guardou segredo sobre os arquivos de Amado durante anos – temia perder seu tesouro.

O Comitê de Direito Autoral da Universidade Federal de Santa Catarina dizia que a posse do acervo era ilegal, e que ela deveria entregá-lo. Isso em pleno centenário de Jorge Amado, em 2012.

Tânia teve que batalhar sozinha pelo conteúdo da pasta. Descobriu através do CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e dos cinco maiores especialistas nas obras do baiano que não estava fazendo nada errado.

Finalmente, em 2014, teve coragem e entrou em contato com Myriam Fraga, então diretora da Fundação Casa de Jorge Amado, vice-presidente da Academia Baiana de Letras, que morreu em fevereiro deste ano.

“Fui tratada como extrema gentileza. A Myriam mostrou uma gratidão pelo acervo estar aos cuidados de uma pesquisadora e protegido na universidade”, disse Tânia, que foi convidada para palestra na fundação em agosto do ano passado.

Tânia foi acompanhada de Thalita Coelho, que catalogou e descreveu os 1, 4 mil documentos para dissertação do seu mestrado Entre Esparsos e Inéditos: a mala de Jorge Amado, e Ailê Gonçalves, que apresentou como trabalho de conclusão da graduação O (In)visível no Acervo Jorge Amado.

Sem os fantasmas, Tânia se sentiu à vontade para comentar em sala de aula sobre o presente que recebeu de Leonor Scliar-Cabral. Assim, o jornalista Emerson Gasperin, seu aluno de pós-graduação, ficou sabendo do acervo e publicou sobre a descoberta do livro inédito num jornal de Santa Catarina, na semana passada, dando nova vida à obra.

Jorge Amado escreveu, em sua autobiografia Navegação de Cabotagem, que os segredos do partido morreriam com ele. A profecia não será mais possível.

Redação

13 Comentários

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    1. É oito…

      E Caetano e Gil. Prestes foi trabalhar para Getulio, que mandou sua mulher para o fuzilamento nazista. Neste episódio não foi somente Amado quem se decepcionou, muitas outras figuras se dsligaram da filiação do partido comunista.Mas toda década nasce mais e mais destes “anticapistalistas”. Vejam a situação atual depois de quase 70 anos. Assim como Amado ou Niemayer, os atuais “socialistas anticapitalistas” tem uma existência regada a muito dinheiro. Coisas de comunistas (ou socialistas)  brasileiros.

    2. A culpa sobrou para o Comunismo.

      O Stalin matou o povo e o Jorge ficou com raiva do Comunismo. Parece aquele cara que era corno feliz, até deparar-se com  a jovem e bela esposa no sofá na sala de sua própria casa com o amante. Ficou revoltado e, num espasmo de extrema violência, vendeu o sofá!!

      Assim são as nossas exxquerdas volúveis.

       

  1. Interessante…

    É muito curiosa e contraditória essa desilusão e reviravolta ideológica de Jorge Amado. Penso que é um produto existencial dos apaixonados com pouca formação política, histórica e filosófica.

    Com Oscar Niemayer, por exemplo, não aconteceu o mesmo.

     

  2. Os livros da fase vermelha do Jorge Amado…

    …são muito bons. A trilogia Subterrâneos da Liberdade e Seara Vermelha, embora datados e quase panfletários, são na minha modesta opinião de leitor superiores ao caça-níqueis da fase posterior. 

  3. Amado largou o comunismo…

    Jorge Amado abandonou o comunismo quando percebeu que o comunismo estava matando o seu talento literário. Ele só despontou como grande escritor a partir de Gabriela, Cravo e Canela, após abandonar o realismo socialista.Depois ficou rico e viu que bom mesmo era o capitalismo.

    Alguém me explica porque todo comunista que eu conheço é rico? Jorge amado, Neruda, Saramago…

    1. “Alguém me explica porque

      “Alguém me explica porque todo comunista que eu conheço é rico? Jorge amado, Neruda, Saramago..”

      É simples.

      Porque são pessoas inteligentes.

  4. Não bate.

    Essa interpretação não bate muito. Antes do relatório Kruschev Stalin era unanimidade entre os comunistas de todo o mundo, e até de intelectuais não comunistas (H. Arendt, por exemplo, fazia referências elogiosas a Stalin na primeira edição de As origens do totalitarismo, depois é que mudou de interpretação). Nem mesmo os comunistas sabiam dos tais crimes, na verdade superdimensionados pela historiografia não comunista (melhor dizer, anticomunista do Ocidente), como o demonstram os estudos que hoje vêm sendo publicados. Tenho a impressão que a leitura da Profa. carece de rigor filológico. O abandono do projeto tem cara de ter outras motivações, que precisariam ser melor investigadas.

  5. Contra qual das matanças

    Contra qual das matanças Jorge Amado se revoltou? Desde o início a burocracia soviética foi a maior matadora, tanto de russos, quanto de comunistas, quanto de outros da esquerda (só uma lembrança da Guerra Civil Espanhola). Ou era cego ou muito cínico. 

  6. Comunismo é utopia, só sendo

    Comunismo é utopia, só sendo muito ingênuo para crer que não.

    Em todos, repito, TODOS os países comunistas sempre havia ao menos uma casta privilegiada, com acesso a regalias, benesses e até mesmo luxos proibidos aos demais cidadãos.

    Sem contar o fato de ser um regime antidemocrático. Afinal, é a “ditadura do proletariado”. E ditadura é ditadura.

  7. Refazer informações no artigo “A desilusão de Jorge Amado…

    Caro Luiz,

    Somente hoje, 23/09/2017 tomei conhecimento de seu interessante artigo “A desilusão de Jorge Amado com o comunismo” e deparei-me com algumas informações que necessitam ser esclarecidas:

    1. Ferrenha ativista do comunismo, Rosa foi deportada com a família pelo governo brasileiro para o Uruguai em 1929. Dois anos depois, os Scliar voltaram para o Brasil – foram morar em Livramento, na fronteira gaúcha.

    Quem foi deportada para o Uruguai foi Rosa e não a família. Como Rivera só é separeda de Livramento por uma rua, até o divórcio de meus pais, a família residiu sempre em Rivera. Minha irmã Esther estudava em Livramento.

    Somente meu pai, Isaac Scliar, minha irmã, Esther e eu retornamos para o Brasil e fomos morar em Passo Fundo, na casa de minha tia, Rosa Kruter.

    2. Ainda no Uruguai, ela foi visitada pelo camarada Jorge Amado, que, segundo ela, estava ansioso para voltar ao Brasil, mas temeroso de ser preso. Deixou com ela a mala com seus documentos, que comprovam o trabalho partidário.

    Do Vale (novo companheiro de Rosa) e ela frequentavam a sociedade de apoio aos exilados políticos, em Montevidéu: ambos eram membros do PC do Uruguai..  Foi assim que entraram em contato com Jorge Amado: a mala foi entregue para ficar aos cuidados de AMBOS, quanfo Jorge Amado deixou o país.

    3. As filhas de Rosa cresceram em Porto Alegre. Esther, como a mãe, se tornou militante ativa, filiada à Juventude Comunista do PCB.

    Tanto a Esther quanto eu pertencemos à Juventude Comunista e, depois, ao PCB. Deixei a militância após o Relatório Krushev.

    4. Após muitos anos, Rosa procurou a filha Leonor Scliar-Cabral em busca de reconciliação. Contou sobre a atividade comunista e entregou uma mala, deixada aos seus cuidados em 1942 por Amado.

    Meu reencontro com minha mãe só aconteceu quando eu tinha 18 anos, quando visitei meus tios em Buenos Aires: ela foi ao nosso encontro. Depois que casei com Plínio Cabral, eu a visitei algumas vezes em Montevidéu e, numa dessas visitas, o Do Vale me entregou a mala.

    5.  “Para ela não importava o Jorge Amado. Os documentos são a memória afetiva da mãe. Tanto que ela me pediu: ‘Se algum trabalho acadêmico for publicado, gostaria que fosse dedicado à minha mãe'”, conta Tânia.

    Desejo cumprido pelas dissertações de mestrado de Roberta de Fátima Martins e Thalita Coelho, ambas orientadas por Tânia.

    Vamos desfazer um grande equívoco. A razão de eu entregar o acervo à Profa. Tânia foi puramente científica e cultural:  essa grande pesquisadora dirige um importante projeto para a preservação da memória literária e ninguém melhor do que sua equipe para classificar,  catalogar e zelar para que tais dados se prestassem à investigação pelos estudiosos do que aconteceu com Jorge Amado. O fato de que, por exemplo, tais dados inspirassem uma dissertação que versou sobre o gênero epistolar, resultando numa obra de ficção em que duas pessoas com o nome de Rosa e de Leonor se correspondem não significa que tais personagens tenham a mesma personalidade, os mesmos sentimentos, o mesmo discurso, ou sequer tenham vivido os mesmos episódios inventados e narrados nas cartas que os daquelas que são mencionadas como uma das guardadoras e a doadora da “mala de Jorge Amado”.

    Agradeço, desde já, se divulgar os esclarecimentos em sua página.

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