A entrevista de Jango a John Dulles

Jornal GGN – Na quarta-feira, 2 de dezembro, a Folha de S. Paulo publicou uma entrevista inédita de João Goulart para o historiador americano John Dulles. A conversa aconteceu em 15 de novembro de 1967, quando Jango estava em Montevidéu (Uruguai). O documento estava esquecido na Universidade do Texas e nunca tinha vindo a público no Brasil.

Leia a íntegra da entrevista inédita de Jango ao historiador John Dulles

Da Folha de S. Paulo

A Folha publicou nesta quarta-feira (2) uma entrevista inédita de João Goulart, o Jango, feita pelo historiador americano John W. Foster Dulles (1913-2008).

O depoimento, realizado em 15 de novembro de 1967 em Montevidéu, foi encontrado na Universidade do Texas e estava desconhecido desde então.

João Goulart no exílio no Uruguai, em cena do documentário ‘Dossiê Jango’, de Paulo Fontenelle

ENTREVISTA DE JOHN W. FOSTER COM JANGO EM 15/11/1967

João Goulart disse que estava em Cingapura quando recebeu a notícia da renúncia de Quadros. De Cingapura ele foi a Paris, onde os meios de comunicação com o Brasil eram bons. Goulart disse que tinha passado um ou dois meses fora do Brasil. De Paris, ele falou ao telefone com muitas pessoas no Brasil.

De acordo com Goulart, Auro de Moura Andrade não foi eleito pelo Congresso para o cargo de primeiro-ministro do Brasil durante o regime parlamentar. Goulart disse que o nome de Santiago Dantas foi submetido ao Congresso e analisado por ele. Goulart descreveu Crockatt de Sá como um assessor que ele tinha para assuntos trabalhistas.

Goulart disse que não há no Brasil nenhum sentimento contra o povo dos Estados Unidos. O Brasil quer que os latino-americanos tenham independência em suas discussões. O Brasil quer que os brasileiros, e isso inclui as classes populares, comandem seu próprio destino.

O Brasil sente que já houve por vezes um excesso de interferência por parte dos Estados Unidos. Embora o povo brasileiro não seja contra o povo dos Estados Unidos, pode se dizer que os governos dos Estados Unidos cometeram erros com relação à América Latina.

Sob John Kennedy, os Estados Unidos recuperaram sua perspectiva positiva da América Latina. Os Estados Unidos tiveram então uma política correta, uma que estava em comunhão com o povo. Kennedy era favorável à autonomia dos governos da América e era a favor dos benefícios sociais para a população.

Após a morte de Kennedy, três governos constitucionais na América Latina foram depostos. O governo constitucional do Brasil foi deposto. O governo constitucional da Bolívia foi deposto. O governo constitucional da Argentina foi deposto.

Goulart disse que é verdade que os governos militares possuem algumas vantagens. Mas o povo é democrático. Os Estados Unidos falam muito sobre democracia. Mas os Estados Unidos deveriam permitir a democracia.

Goulart disse que um excesso de liberdade é prejudicial. Mas disse que um excesso do oposto também é prejudicial. O Brasil poderia dar grande ímpeto ao processo democrático. Existe uma ligação entre os governos da América Latina e o governo dos Estados Unidos. Os Estados Unidos precisa do apoio do povo da América Latina.

Tanto Goulart quanto o povo da América Latina pensam que o povo dos Estados Unidos é bom e admiravelmente ativo. Não se deve confundir o povo dos Estados Unidos com os grandes grupos econômicos norte-americanos, que são repudiados pelo povo da América Latina.

Goulart disse que em seus esforços para promover reformas estruturais, ele fez concessões demais a grupos políticos no Brasil. A finalidade dessas reformas estruturais era promover a independência do Brasil, o desenvolvimento do Brasil e o bem-estar do povo brasileiro. Essas reformas são tratadas nas mensagens de 1963 e 1964 que Goulart enviou ao Congresso.

A mensagem de 1963 menciona todas as reformas. Estas foram reformas em prol da independência, do desenvolvimento, do bem-estar do povo e da justiça social. A justiça social não era algo no sentido marxista ou comunista.

O Brasil possui grande potencial. Mas uma reestruturação se faz necessária. Existe no Brasil um grupo pequeno e rico. As massas brasileiras são analfabetas, pobres e vivem em grande miséria.

Hoje a luta está sendo levada adiante de modo inteligente pela Igreja Católica. O povo latino-americano não tem tendências comunistas. O Brasil é católico em sua maioria avassaladora. O Brasil possui a maior porcentagem de população católica no mundo. O Brasil é o principal país católico do mundo.

Hoje, com o uso amplo de rádios e televisores, o povo pobre vê as condições melhores que existem em outros lugares. O grande problema é a justiça social. Não é um problema de comunismo. Mas a insatisfação pode se converter em revolta se as condições não melhorarem. 92% da América Latina se encontra na condição mais precária possível.

Goulart é a favor da concessão do direito de voto aos analfabetos. O analfabetismo não é culpa deles. As pessoas que podem ser chamadas a pagar impostos (e que são chamadas a fazer outra coisa –a palavra usada não está clara em minhas anotações) devem ter o direito de votar.

Goulart disse que, paralelamente à extensão do sufrágio aos analfabetos, os analfabetos devem ser ensinados a ler e escrever. Disse que durante seu governo foram criadas escolas populares para essa finalidade. O programa foi descrito como comunista pelos inimigos do regime. Chegaram a ser montadas escolas de alfabetização em praças públicas.

O ministro da Educação, Paulo de Tarso, foi tachado de comunista e sofreu muito devido ao que fez. Paulo Freire, que também sofreu pelo que fez, é um idealista. Ele é uma espécie de missionário, muito progressista. Seu crime foi tentar combater o analfabetismo. Quando mencionei o MEB, Goulart disse que a Igreja Católica ajudou muito com o programa de combate ao analfabetismo. Ajudou patrocinando aulas que eram ministradas pelo rádio. Goulart disse: “Meu governo deu a maior ajuda” a esse movimento. Goulart disse que, devido à ajuda dada por seu governo aos programas de rádio de aulas de alfabetização, Dom Hélder Câmara ficou muito amigo dele.

Houve uma campanha para envenenar a opinião pública contra “meu governo”. Goulart disse que a imprensa estava contra seu governo. Ele acrescentou que a imprensa tem problemas financeiros e é influenciada por grandes grupos empresariais. Os produtos de empresas estrangeiras são anunciados na mídia de comunicação. A maior firma de relações-públicas, ou agência de publicidade, no Brasil é a McCann-Erickson, uma empresa americana. As empresas americanas no Brasil tanto manufaturam produtos no Brasil quanto recebem royalties por produtos produzidos no Brasil.

Goulart disse que seu governo foi acusado de ser um governo incapaz. Mas apontou para a participação de homens como Celso Furtado e Waldir Pires (que tem apenas 33 ou 34 anos e foi o procurador geral da República). Esses homens hoje são professores de universidades na França, tendo conquistado seus cargos em concursos competitivos. Waldir Pires, que está na França há um ano, conquistou seu posto de professor sem dificuldade, tendo ficado em primeiro lugar.

Com relação às remessas de lucros para o exterior, Goulart mencionou que a lei que afeta isso foi aprovada pelo Congresso e que o regulamento foi emitido pelo Executivo. Ele disse que um teto de 10% é um teto alto. É mais alto que os de outros países que têm tetos. O teto na Índia é de 8% a 9%. Existe no Brasil uma questão relativa à avaliação do capital original.

A regulamentação da lei de remessas de lucros no Brasil causou grande perturbação para o governo Goulart. As empresas estrangeiras reagiram mal. Goulart disse que o Brasil queria que parte do capital estrangeiro fosse como o capital nacional. Ele disse que o capital estrangeiro deve cooperar com o povo brasileiro. Disse que, quando o capital estrangeiro chega e depois retorna por completo de onde veio, não há vantagem para o Brasil – pelo contrário, o fato de todo o capital partir prejudica o Brasil.

Goulart disse que todo o capital estrangeiro deve ser bem recebido, mas deve colaborar. Não é interessante se ele vem simplesmente para especular e depois retorna integralmente ao exterior. Goulart disse que o capital estrangeiro é “absolutamente útil”. Que ele deve ajudar o país para onde vai.

Mencionei o nome de Amauri Kruel. Goulart disse que Kruel tinha feito recentemente um discurso no Congresso em que disse que a revolução de 1964 foi feita com a finalidade de dar liberdades ao povo, mas que, como resultado da Revolução, houve a suspensão das liberdades. A Revolução, disse Kruel, foi para garantir liberdades, não para suprimi-las. Não foi feita para cancelar eleições. A Revolução foi traída, segundo as palavras de Kruel, conforme elas nos foram ditas por Goulart.

Goulart nos disse que as declarações que estava nos dando não eram declarações que deveríamos atribuir a ele. Disse que nos estava dando seus pontos de vista para ser prestativo; que suas opiniões representam seus sentimentos pessoais. O que eu deveria fazer era investigar e ver se suas opiniões estavam certas ou erradas.

Goulart disse que Djalma Maranhão antes era prefeito de Natal. Ali ele criou escolas em espaços públicos. Algumas dessas escolas foram construídas com materiais muito baratos. Essas escolas em Natal usavam o sistema de ensino de Paulo Freire.

Redação

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  1. John Dulles é filho do

    John Dulles é filho do celebre Secretario de Estado do governo Eisenhower John Forster Dulles, autor de uma biografia de Getulio Vargas, VARGAS OF BRAZIL.

  2. Conheci Djalma Maranhão

    Conheci Djalma Maranhão pessoalmente, como todos os moradores de Natal. Era um prefeito fora de série. Acho até que foi ele o primeiro a permitir que o comércio abrisse as portas à noite também durante todo o mês de dezembro. Via nisso duas ações importantes: o povo teria mais motivação pra sair de casa e ser feliz, com as ruas enfeitadas, e um palanque bem no centro da cidade com apresentação de músicas variadas, inclusive folclóricas; o comércio ganharia mais por poder vender mais. Foi uma alegria geral para o natalense. Eu era uma menina, mas lembro de tudo isso.

    Djalma estava parte do seu dia de trabalho andando pelas ruas. Cheguei a vê-lo cercado de moleques, meninos desocupados, quando ouviam do seu prefeito a importância de estudar. Com pouco dinheiro no cofre, pra albetizar a meninada Djalma se valeu de um homem muito culto, Moacir de Góis – pai de Moacir Goes, produtor teatral -, que foi seu secretáriod e educação. As aulas eram ministradas em qualquer canto, como próxima a uma praia. Escolas artesanais, onde tinha quadro-negro, assentos e mesas, e professores, claro. “De PÉ NO CHÃO TAMBÉM SE APREND A LER”, nome do programa porque a meninada poderia assisitr às aulas do jeito que quisesse, inclusive de pé no chão. 

    Após muitos anos fora de Natal, voltei e vi nas televisões locais alguns arquivos de pessoas ligadas a Djalma, que denunciam Aloísio Alves, pai de Henrique alvez, à época governador do RN, quem lutou para que Djalma fosse preso e expulso da política. Aloísio tinha inveja de Djalma, e sabia que logo seria substituído por ele, não apenas pela cmpetência, mas por ser um homem deveras simpático e atuante. Nesse arquivo também é contada por uma assessora de Djalma na Prefeitura, em 1964, como se deu a saída dele do quadro político local. Os policiais chegaram, comandados pelo General Burnier, exigindo a renúncia de Djalma como prefeito, o que ele não aceitou, de pronto. Terminou no Rio, e do Rio, com a ajuda de Dinarte Mariz, um arenista convicto, porém amigo pessoal de Djalma, chegou à Embaixada do Uruguai, de onde seguiu para aquele país, lá morrendo, segundo seus amigos, de tristeza e saudade.

    Nesse mesmo vídeo vê-se o depoimento de Luiz Maranhão, irmão de Djalma, em que ele diz: “O mais absurdo foi que meu irmão jamais quis ser comunista. Eu, sim, era comunista, e mantinha com meus companheiros um esconderijo para nos encontrarmos todas as semanas”. Luia Maranhão nunca foi suspeito de ser comunista, por isso se livrou da prisão.

    Algum grande escritor brasileiro poderia escrever um livro, no qual fossem declinados todos os nomes de todos os grandes personagens da nossa história cultural que foram impedidos de prosseguirem atuando em favor da nossa sociedade por serem considerados comunistas por aqueles infelizes militares, acolhidos por infelizes civis. Por exemplo: Santiago Dantas, Wladir Pires, Djalma Maranhão, etc, etc, etc,,,, Talvez uns 10 volumes fossem poucos para concluir as informações. Isso ajudaria muito aos jovens, ou não-jovens, que mereciam conhecer melhor a vida brasileira, como sofreu decadência, em função dos atos dos ditadores.

  3. João Goularte foi um homem

    João Goularte foi um homem digno, um estadista que infelizmente teve sua trajetória interrompida pelos abutres americanos em conluio com o o que há de pior na política brasileira.

    O general castelo branco (minúsculo mesmo) foi escolhido pela CIA para comandar o golpe devido seu estilo submisso e bajulador com os E.U.A, já com os seus irmãos brasileiros foi duro e impiedoso.

    Foi uma pena, poderiamos estar 50 anos a frente, talvês, hoje fossemos a nação mais desenvolvida do planeta.

    João Goularte queria reforma agrária, educação e desenvolvimento industrial para o pais, mas os coxinhas f.d.p, não permitiram, como sempre fazem. Aliás nestas últimas eleições, mostraram que estão mais vivos que nunca.

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