A falsificação da história por um historiador, Por Anita Leocadia Prestes

A falsificação da história por um historiador

Por Anita Leocadia Prestes

Do Observatório da Imprensa

Estamos diante de um livro, escrito por um historiador [REIS, Daniel Aarão. Luís Carlos Prestes. Um revolucionário entre dois mundos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014], que poderia ser usado em sala de aula de um curso de História como modelo para os estudantes do que não deve ser um trabalho de historiador. Para E. Hobsbawm [HOBSBAWM, Eric. Sobre a História; ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.286-287], o historiador deve ter um compromisso com a evidência e, portanto, escrever uma História não só apoiada em documentos como também baseada na comparação do maior número possível de fontes documentais que lhe permitam obter os elementos necessários para uma aproximação confiável dessa evidência. Caso contrário, o historiador ficará sujeito a reproduzir e difundir informações falsas, assim como interpretações errôneas e parciais da realidade que pretende retratar.

Nada disso é considerado por D. A. Reis. No seu livro, não se apresentam as fontes documentais das afirmações veiculadas. Em notas, presentes no final da obra, são citados livros ou arquivos de maneira genérica (por exemplo, “Fundo PCB no Arquivo da Internacional Comunista”, no qual existem milhares de documentos), deixando, portanto, o leitor privado da possibilidade de consultar o documento ao qual o autor se refere. Dessa forma, o leitor é induzido a aceitar como verdades indiscutíveis afirmações cuja origem dificilmente poderia ser comprovada.

Tal metodologia adotada por D. A. Reis, marcada pela incompetência e a irresponsabilidade do pesquisador, contribui para que nos encontremos diante de um texto repleto de erros factuais e de informações falsas, assim como de análises supostamente psicológicas de Prestes e dos demais personagens retratados no livro, embora não conste que o autor possua formação de psicólogo.

Entre inúmeros erros, constantes da obra de D. A. Reis, para citar apenas alguns – se fossem listados todos, seria necessário escrever outro livro –, pode-se apontar, por exemplo, o de antecipar o episódio da campanha da “Reação Republicana” de Nilo Peçanha de 1921-1922 para o ano de 1919 (p. 26), quando foi eleito presidente da República Epitácio Pessoa. Outro exemplo: o autor afirma que os dirigentes comunistas

Ramiro Luchesi e Fragmon Carlos Borges foram assassinados (p. 347), no início dos anos 1970, quando na realidade faleceram de morte natural; da mesma maneira, escreve que o general Miguel Costa já teria falecido em março de 1958 (p.279), sem indicar quando, o que só veio a ocorrer em dezembro de 1959; também afirma que, em março de 1990, entre as quatro irmãs de Prestes, só Lygia restara viva (p. 480), enquanto, na realidade, Lúcia faleceu em 1996 e Eloiza em 1998. Em diversos pontos da obra, o autor cita documentos constantes dos anexos no livro A Coluna Prestes, de A. L. Prestes, mas a referência incluída na bibliografia é de outro livro da mesma autora (Uma epopeia brasileira: a Coluna Prestes).

Em diversos momentos, D. A. Reis, que se considera entendido nas obras dos clássicos do marxismo, ao abordar a luta constante de Prestes tanto contra o oportunismo de direita quanto contra o oportunismo de esquerda, lhe atribui posições centristas (p. 330, 333, 358, 437), revelando desconhecimento dessa temática no marcos da teoria marxista. Segundo tal interpretação, V. I. Lenin, que sempre combateu os desvios de esquerda e de direita no seio dos movimentos socialistas e comunistas, teria sido um político de centro…

No que se refere às legendas das fotos reproduzidas no livro, verifica-se que inúmeras estão erradas: o tenente Victório Caneppa, carcereiro de Prestes (à época diretor da Casa de Correção), é apresentado como sendo o diplomata Orlando Leite Ribeiro, amigo de Prestes; a foto da formatura de Prestes no Colégio Militar (aos 18 anos) figura como se fosse da formatura da Escola Militar (aos 22 anos); as fotos de Anita, filha de Prestes, não correspondem às datas que lhes são atribuídas; o retrato da mãe de Prestes, tirado em Londres, em 1936, é atribuído ao período do exílio no México; etc.

Estamos diante de um texto eivado de fofocas, mexericos, intrigas e mentiras, em que se reproduzem as invencionices da viúva de Prestes, assim como de antigos dirigentes do PCB e de comandantes da Coluna Prestes, que viraram inimigos de Prestes. Este foi o caso de João Alberto Lins de Barros, autor de memórias publicadas três décadas após a Marcha, em que revela ressentimentos por seu antigo comandante haver se tornado comunista. Da mesma maneira, vários ex-dirigentes do PCB, em depoimentos prestados ao autor do livro, recorrem à falsificação dos fatos para justificar seus ressentimentos por Prestes ter rompido, em 1980, com a direção do partido da qual faziam parte.

Trata-se de um livro anticomunista, cujo objetivo é a desqualificação de Prestes, da sua mãe, de suas irmãs e também da sua esposa, Olga Benario Prestes; a desqualificação dos comunistas em geral. O autor tem a canalhice de tentar desmoralizar minha mãe, ao afirmar que ela teria abandonado um filho em Moscou (p.171, 205, 495), como se Olga fosse capaz de semelhante gesto. Os documentos citados – e pior ainda, o autor não cita documento algum, mas apenas o “Fundo PCB no AIC” – não são verdadeiros, pois conheço a documentação da Internacional Comunista, inclusive a pasta referente a Olga. Se alguém, em algum lugar, afirmou tal coisa a respeito de Olga, é mentira; conheci muitos amigos e amigas da minha mãe da época em que ela viveu em Moscou e a afirmação do autor é mentirosa.

O anticomunismo, disfarçado sob a capa de uma suposta objetividade histórica, é revelado a cada página da obra de D. A. Reis, tanto através das numerosas informações falsas que divulga quanto da repetição de juízos de valor questionáveis. Assim, a adoção por Prestes de posições políticas em que, incompreendido, ficou só, e as derrotas, enfrentadas por ele e pelos comunistas durante sua longa vida, seriam episódios desmerecedores da sua trajetória como homem público e revolucionário, que se empenhou na conquista de um mundo sem explorados e exploradores, sem oprimidos e opressores.

Ao rebater os juízos de valor adotados por D. A. Reis, vale lembrar William Morris, o revolucionário inglês do final do século XIX, cuja biografia constitui o primeiro trabalho importante de E. P. Thompson [THOMPSON, E.P. William Morris; romantic to revolutionary.Londres: Merlin Press, 1977]. Conforme foi assinalado por Josep Fontana, W. Morris, em 1887, “ao comemorar uma dessas grandes derrotas coletivas”, escreveu:

A Comuna de Paris não é senão um elo na luta que teve lugar ao longo da história dos oprimidos contra os opressores; e, sem todas as derrotas do passado, não teríamos a esperança de uma vitória final. [MORRIS, William.Why we celebrate the Commune of Paris. Commonweal, 3, n. 62, p. 89-90, Mars 1887, apud FONTANA, Josep. A história dos homens. Bauru, SP: EDUSC, 2004, p.490]

Também Paul Eluard, o poeta da Resistência francesa, pronunciou-se a respeito das derrotas:

Ainda que não tivesse tido, em toda minha vida, mais do que um único momento de esperança, teria travado este combate. Inclusive, se hei de perdê-lo, outros o ganharão. Todos os outros. [ELUARD, Paul. Une leçon de morale, prefácio, em Ouvres complètes. Paris: Gallimard, 1984. II, p. 304,apud FONTANA, Josep. Obra citada, p. 490]

Embora os intelectuais a serviço dos interesses dominantes, comprometidos com a preservação do sistema capitalista, como é o caso de D. A. Reis, empreendam todo tipo de esforços para desmoralizar e destruir a imagem de lutadores pelas causas populares, como Luiz Carlos Prestes e Olga Benario Prestes, não o conseguirão, desde que as forças democráticas e progressistas se mantenham alertas e atuantes na preservação do legado revolucionário desses homens e mulheres que deram a vida por um futuro de justiça social e democracia para toda a humanidade.

***

Anita Leocadia Prestes é doutora em História Social pela UFF, professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes (www.ilcp.org.br)

Redação

15 Comentários

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  1. Os vitoriosos governam, os

    Os vitoriosos governam, os frustrados escrevem livros. Mas há uma diferença. Quando a direita e os militares estavam no poder os escritores de esquerda se esforçavam para desfazer as mentiras e os mitos divulgados pela ditadura, recorrendo à ciência e à objetividade para enfraquecer um regime brutal. Na atualidade, os escritores de direita se limitam a produzir mentiras e mitos com a finalidade de derrubar um governo legitimamente eleito. Simples assim. 

  2. Não sou historiador nem

    Não sou historiador nem especialista no período e assunto. Mas até onde sei a partir do espaço vizinho da sociologia, Daniel Aarão Reis é um historiador muito conhecido e respeitável. 

    1. Pois é

      Primeiro vê-se que realmente você não é historiador nem especialista no período. A professora Leocádia todavia, é. Em segundo lugar, se o infeliz historiador  foi respeitável algum dia, doravante e por razões auto-evidentes, deixa de sê-lo.

  3. Onde está a honestidade?

    Infelizmente estamos cheios de “historiadores” desonestos, em geral anticomunistas, cujo “rigor intelectual”, baseia-se em juízos deduzidos de fontes secundárias, terciárias, quartrnárias e até de  Mesa Branca!….Um horror essa patologia social!

  4. A denúncia é grave

    Escrever uma biografia ou um livro histórico biográfico é uma tarefa muito difícil, arriscada. E se publicada com muitos e graves erros, estes se espalham. Nem todos os que leram o livro do  Arão Reis vão tomar conhecimento desta ampla correção de Anita Leocadia e, fatalmente, terão em suas  mentes o texto apontado como equivocado e desonesto do famoso historiador. O que pode ser feito? Entrar na Justiça para pedir que se recolha os livros? Até nosso lerdo Judiciário se manifestar a favor ou contra o livro, terá se passado um tempo imenso, o estrago para os estudantes de História do Brasil já terá consequências. Pelo fato do Brasil ter uma Justiça que, na maioria das vezes, demora a dar respostas, sempre fui a favor de biografias que, no mínimo, consultem o biografado ou familiares do biografado (quando contemporâneos) antes de chegar ao público. Todo cuidado é pouco. E, a julgar pelo diz a filha e professora, aqui os descuídos foram muitos. A denúncia é grave.

  5. Será que Anita não percebe …

    Que ela também não é a pessoa mais adequada para desancar autor? Como filha  de Prestes e defensora dos ideais comunistas, é totalmente parcial na sua avaliação. Ela não gostou do trabalho do Daniel Reis. Tem todo direito de não gostar. Mas daí querer atribuir ao autor posições “anticomunistas” e objetivo deliberado de prejuducar a imagem de seu pai, é um erro tremendo. Esta fazendo justamente aquilo que tanto critica no autor, porém com sinal invertido. Ou seja. Simplesmente tomando partido do prestismo, sem nuenhum pudor. Deixe que os outros avaliem. Deixem que alguem mais “distante” aponte os erros e acertos do livro.

    1. Hã?

      Ela citou as fontes. Ela demonstrou que o infeliz pode ter compromisso com muita coisa, menos com a verdade. E que pudor ela deveria ter? Deixar um infeliz qualquer mentir como se não houvesse amanhã, em nome de uma suposta “neutralidade”? Não sei em que mundo você vive, mas certamente não é um que seja intelectualmente brilhante.

      1. O “infeliz” a que vc s refere

        O “infeliz” a que vc s refere tem seu nome gravado na história da luta contra a ditadura, Leider Lincoln. Pode até ter se equivocado, pesquisado em fontes dúbias e por isso ser criticado, mas nunca por ser “infeliz”.

  6. Algumas reflexões

    Que tempo são estes? Como uma pessoa que, a se acreditar no que sobre ele se escreveu, foi já respeitável, troca nome e reputação pela fama fugaz e rápida, tornando-se apenas mais um canalha em busca das luzes da ribalta? Daqui por diante certamente conseguirá resenhas favoráveis na Veja _mas a Veja está agonizando_, conseguirá talvez espaço mo nosso jornalismo, mas este também é decrépito e já emana o mofo das carruagens e máquinas de escrever. 

    Não vêem pessoas como o historiador que escolheu a fama ao custo da desonra, que existem buscadores? Que qualquer pessoa que de fato estude o período poderá ler este artigo indexado em que se expõe uma falta de equilíbrio e veracidade que também o é de princípios e caráter? Que a obra dele servirá apenas para propaganda ideológica barata e que esta mácula, em tempos de internet, nuvens e indexadores jamais sairá?

    Tudo isso pelos pecados de Esaú e Fausto? Vale a carreira de uma pessoa tão somente um prato de lentilhas? Por vaidade. Sou ateu, mas não consigo não pensar no Eclesiastes. Que vida amarga a deste senhor, que vida amarga. Tenho pena de gente assim.

    Em não muitos anos _a onda neocon já ouve o som do rochedo_ o que restará a sujeitos tais como este historiador, o famoso sociólogo, o famoso geógrafo e o economista agora radicado em Miami? Uma desonra dfria e deprimente que, com a Internet, não pode mais ser lavada, estando sempre a mostra para qualquer um que deseje vê-lo. 

    São mentes pequenas que fazem uso do quase direito de ser canalha, mas se esquecendo que os tempos são bem outros. Repita uma mentira um milhão de vezes, caso se queira mas, diferente do passado, há o Google. E o que ficará será somente a desonra.

  7. historia e ficção

    A responsabilidade pela divulgação de informações pela editora na publicação de livros considerados historicos e não de ficção, e pelo revolucionario historiador, suposto divulgador de fatos reais e nao novelescos, informações que contrariam outras fontes consideradas de confiança. Material que poderia formar opiniões. QUE PERIGO! Não podemos confundir responsabilidade pela divulgação de informacões pélo simples  Controle de informações. Para muitos o desejo ‘e de continuar a divulgar o que interessa da forma  que interessa sem responsabilidade e se for contrariado e’ censura, privação da livre imprensa. PRECISAMOS DE MUDANÇA URGENTE! 

  8. Uma pena

    Sei o quanto a professora Anita Prestes é ciosa de tudo relativo à vida de seus pais. Quando do lançamento do filme “Olga”, lembro que ela também teceu críticas ao roteiro. Igualmente criticou a célebre edição da Revista de História da Biblioteca Nacional, de janeiro de 2012, que trouxe na capa uma das mais belas imagens do Cavaleiro da Esperança, na minha opinião. Ainda não li o livro do Prof. Daniel A. Reis, mas o conheço e já li outras de suas obras e nunca percebi esse “anticomunismo” do qual ela fala.  Pesquisar sobre a vida de um homem que realmente viveu e lutou muito, errou e acertou repetidas vezes não é algo simples. Uma pena tudo isso, tenho os dois, Daniel e Anita, como meus mestres.

  9. Impressionante, a Anita!

    Ter sobrevivido a tudo aquilo de terrível no passado e ainda estar atenta aos acontecimentos destes dias, que pessoa extraordinária! 

    Na Wikipedia consta inclusive que em 2009, graças aos vazamentos do mensalão, os jornais confundiram Anita Leocádia Prestes com outra Anita Leocádia – noticiando que ela teria recebido R$ 620 mil em nome do deputado Paulo Rocha. Diz a Wikipedia que a Anita em questão foi absolvida da acusação de lavagem de dinheiro. Espero que a Anita Prestes tenha sapecado uma ação por danos morais contra os jornais apressados em falar mal dela.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Anita_Leoc%C3%A1dia_Prestes 

    Para este blog foi trazida uma narrativa resumida de como foi decidida pelo STF o encaminhamento de Olga Benario para a Alemanha, apesar de estar grávida, e sem que a Alemanha tivesse pedido sua extradição.  

    https://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/a-historia-do-julgamento-de-olga-benario

     

    2 fotos de Anita Leocádia Prestes podem ser vistas em

    https://twiki.ufba.br/twiki/bin/view/UFBAIrece/Literario

    Com relação ao que Anita diz do livro de Daniel Aarão Reis sobre seu pai, imagino que o autor vai ter muito trabalho para alguma réplica. 

  10. Mais um efeito manada

    Anita, deu uma bela porrada no Aarão. Justa ou não.

    Aí, vem o bando e diz: “Já que etá podendo, também quero dar a minha”.

    Ambos são Professores e Doutores da UFF, com muita proximidade de temas de trabalho e de pesquisa.

    Se conhecem, bem.

     

    Anita carrega um nome famoso e uma história de vida incomum.

    Aarão, também, tem uma história de vida, de luta política, com sacrifícios e perdas pessoais.

     

    É briga de “cachorro grande”.

    Acredito que alguns estão preparados e bem informados para emitir opinião sobre a disputa.

    A maioria não está, mas assim mesmo emite opinião, definitiva e arrasadora, sobre o caráter do Aarão.

     

    Esse é mais um dos muitos episódios, semelhantes, que ocorrem nesta página.

    E têm “sócios” desse blog que condenam, veementemente, quando ocorre um linchamento físico.

    Linchamento moral pode, né? 

  11. historiador?

    Parabéns ao artigo de Anita Leocádia e também à memória do seu pai e sua mãe. Todavia desejo fazer um pequeno esclarecimento, extremamente oportuno e necessário. Não sou de extrema direita nem esquerda. Prefiro sempre a Democracia, mesmo com suas imperfeições do que as ditaduras, por mais bem intencionadas que digam ser. Vamos ser honestos e reconhecer que o marxismo (comunismo) está muito longe de ser uma forma de governo democrática. 

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