A história da argentina Macarena Gelman

Macarena Gelman: “Eu fui um presente roubado”

Na noite dessa segunda feira a TV Cultura apresentou no programa Sangue Latino a entrevista de Macarena Gelman, uma produção da TV Brasil, onde ela apresentou um relato de sua vida. Veja aqui um vídeo com três minutos do programa e a seguir a íntegra da entrevista com o jornal El País.

Seus pais biológicos foram seqüestrados em Buenos Aires em Agosto de 1976 trazidos para o Uruguai, como parte da Operação Condor, e mortos. Ela recém-nascida foi colocada na porta dos pais adotivos. Apenas 23 anos mais tarde, a neta do poeta Juan Gelman soube de sua verdadeira identidade

Macarena nasceu uma segunda vez quando ela tinha 23 anos. A vida plácida e apolítica que ela levou na sua Montevidéu nativa foi completamente interrompida quando a mãe confessou que ela não era sua filha e descobriu que foi uma criança roubada, arrancada dos braços dos pais sequestrados, torturados e assassinados pela ditadura da Argentina, e dada a quem ela acreditava ser seu pai, um policial uruguaio. Essa notícia mudou sua vida e sua consciência. Desde então, soube das torturas e desaparecimentos, horrores repressivos, e também soube que ela era um produto de tudo isso. 

 Macarena descobriu que seu avô passou anos procurando por ela e se chamava Juan Gelman. Pela Internet soube que ele era um poeta muito importante e como seus pais verdadeiros é um argentino também, que viveu e ainda vive auto exilado no México e de lá alegou o direito de recuperar a neta cuja infância nunca pode desfrutar.
Macarena se esforçou para mudar o seu nome. Hoje leva o sobrenome Gelman Garcia como seu verdadeiro pai, como sua verdadeira mãe, mas manteve o seu nome, que lhe deu sua dedicada mãe adotiva.

Procura os restos mortais de sua mãe e  apóia publicamente em seu país a luta pela revogação da lei de anistia que dá cobertura legal à impunidade. Chegou participar da fracassada tentativa de desenterrar o cadáver de sua mãe em um lugar equivocado. Contar sua história se tornou para ela uma ferramenta para romper a silenciosa cumplicidade.

– Como te deram a notícia de que era filha de outro?

“Minha mãe que me disse. Meu pai havia morrido há quatro meses atrás e ela me contou que meu avô estava procurando por mim. Na verdade, toda minha família biológica estava me procurando. Meus pais biológicos tinham 19 e 20 anos. Eram argentinos. Eles viviam em Buenos Aires. O seqüestro foi em 24 de Agosto de 1976.

-Sua mãe teria agora 51 anos.

Não sei se ela chegou a completar 20 anos. A última vez que a viram foi em 22 de dezembro, e eu fui deixada na casa dos pais que me criaram em 14 de janeiro de 1977. Ela faria 20 anos em 6 de Janeiro. Enfim, seqüestraram e os levaram a um centro de detenção clandestino chamado Automotor Orletti. Lá eles permaneceram. Meu pai foi morto em 1976, final de setembro ou outubro. E minha mãe foi transferida para o Uruguai numa operação que foi chamada de Operação Condor. Ela estava grávida de sete meses e meio, quando foi seqüestrada.

– Você sabia o que era a Operação Condor?

-Naquele momento não, mas foi a primeira coisa que me interei. Porque quando minha mãe me informou que eu não era sua filha biológica, disse-me também, se eu quisesse saber mais eu teria que falar com o bispo Pablo Galimberti, que era a pessoa que meu avô tinha contatado para se relacionar conosco. Segundo o que eu soube mais tarde, meu avô sabia que meus pais eram muito devotos e seria a melhor maneira de abordar a minha família adotiva. Minha mãe havia dito ao Bispo Galimberti que eu não sabia de nada, na verdade, ela e meu pai tinham planeado dizer-me a verdade naquele mesmo ano, em 2000. Mas nunca o fizeram. Meu pai morreu de câncer quatro meses antes do encontro com o bispo.

– Você nunca suspeitou de nada, nenhuma indicação de que seus pais não eram realmente seus pais?

Não, absolutamente nada.

– Você ficou chateada com a notícia? Você ficou brava com sua mãe?

Tanto nesse momento como depois, eu sempre achei que a verdade era melhor do que qualquer outra coisa. Como eu dizia, minha mãe foi transferida para cá em Montevidéu. Era Novembro de 1976, conforme descobri. Nós tivemos algum tempo juntos, pelo menos até 22 de dezembro. O parto foi aqui. Presumivelmente no hospital militar, mas ninguém confirmou. Disseram-me que nasci em 01 de Novembro. É a data mais provável. Além disso, quando me deixaram na porta de meus pais, deixaram um pequeno bilhete com a data de nascimento. Presumo que não seja mentira, mas também não tenho toda a certeza do mundo sobre o assunto. Depois de 22 de dezembro, a última data que nos viram juntas, mais nada se soube até 14 de janeiro, o dia em que me deixaram na porta da casa de meus pais. Segundo eles, naquela noite a campainha tocou, abriram a porta e encontraram uma cesta com um bebê e um pequeno bilhete. Era eu.

-Um presente real.

Sim, um regalito [risos]. Um presente que havia sido roubado de algum lugar. De minha mãe não se ouviu falar mais nada. Foi confirmado que ela foi trazida para o Uruguai, e parece que também a mataram, mas não há nenhuma informação de onde ela está enterrada. Calcularam que havia sido enterrada no Batalhão 14, mas a busca não deu resultados.
* * *
Naquele 24 de agosto de 1976 que Macarena menciona com precisão, os militares argentinos invadiram a casa do jornalista e escritor Juan Gelman, muito procurado pela extrema direita de seu país. Porém Gelman já havia partido ao exílio. Em vez disso, os militares levaram o seu filho Marcelo e sua esposa, Maria Claudia Garcia, grávida. Isso salvou sua vida, que mais tarde se tornaria um poeta que receberia vários prêmios e acarretaria toda aquela dor que destila em sua poesia. Sua vida desde então tem sido uma busca incessante de si próprio, de seu jovem filho e sua esposa com o bebê a ponto de nascer. Treze anos depois do fatídico seqüestro recuperaram o corpo de Marcelo, encontrado deitado em um tanque de cimento e areia. Ainda não foram encontrados os restos de Maria Claudia.

– Você resistiu em algum momento de conhecer a verdade?

Não, nunca. Então eu chamei o Bispo Galimberti e a primeira coisa que ele me contou foi a história da Operação Condor, que consistia na coordenação das forças repressivas na América Latina. E assim começou toda a história. Ele me disse tudo o que meu avô tinha sido capaz de descobrir. O que sabia. Que, a fim de confirmar a minha identidade teria que fazer um teste de DNA, coisa que eu sabia perfeitamente lidar [era estudante de bioquímica e trabalhava em um hospital].  E, bem, ele disse que seria melhor começar a abordar meu avô, num primeiro momento, não diretamente, mas com alguma cautela, por um tempo. Sempre através do bispo. Conseguiu-me uma pasta com fotos do meu avô. Eu logo descobri que tinha havido uma campanha pública internacional de grande porte para me localizar, que teve o apoio de muitas pessoas, mas eu não sabia de nada.

– Como é possível?

Eu não sei, porque a campanha naqueles dias foi tremenda. Claro, foi no tempo quando papai morreu e eu era totalmente outra coisa, mas apareciam cartas abertas de meu avô com o então presidente Julio Maria Sanguinetti. Cartazes. Ele tinha dado muita publicidade ao assunto.

– E nunca tinha notado?

Não, nunca. Eu devo ser a única que não entendeu. Porque todos os meus amigos tinham ouvido algo da campanha, menos eu [risos]. Como são as coisas às vezes! Era ridículo eu não ter ouvido nada. Ademais, não sabia quem era meu avô. Foi a primeira vez que ouvi seu nome. E, claro, desde logo eu tive a preocupação de contatá-lo imediatamente, meu avô e sua esposa viajaram para Montevidéu e nos conhecemos. Foi em Fevereiro de 2000, quando se tornou conhecido oficialmente o meu paradeiro.

– Você estava com medo de toda esta situação nova em sua vida?

Sim, muito. Um monte. Eu conheci meu avô e nós concordamos em fazer o teste de DNA. Não fazia sentido ficar com a dúvida. As análises apuradas tiraram todas as dúvidas: uma chance de 99,99% que eu era sua neta. Durante o tempo enquanto aguarda o resultado eu interagia muito com meu avô.

– Suponho que, como resultado de tudo isso conheceu um monte de novos familiares.

Sim. Agora eu tenho também uma avó paterna que mora em Buenos Aires. Eu tenho um primo e uma tia em Buenos Aires, também do meu pai. E eu tenho um avô e um tio na Espanha, Barcelona, ​​pela minha mãe. Há também primos de meus pais, amigos… Tenho tentado conhecer a todos que eu posso. A verdade é que foi muito rica como experiência e também aporte de dados para reconstruir a história. A idade de meus pais na época era uma idade em que se gasta mais tempo com os amigos do que com a família. Portanto, a melhor fonte foram os amigos. Foi muito legal a esse respeito. Tem-me apoiado muito porque representaram o papel da minha família, em muitos casos.

– E como tem vivido tudo isso sua família adotiva?

-A verdade é que é uma família pequena, então quando eu falo sobre a minha família adotiva, eu só falo da minha mãe, com quem eu vivo hoje. Além de aceitar o fato de que não era sua filha, ela deu toda a colaboração na minha investigação, no sentido de não me causar dor. Pelo contrário. Sempre me apoiava em tudo que eu queria fazer. Ela fez o mesmo no julgamento de filiação, que terminou em 2004, sendo o mais difícil.

-Por que tinha de ser muito doloroso a ela?

É claro. Porque ela sempre teve uma atitude de acompanhar-me, em vez de questionar-me. Ela ainda sente um grande apreço pelo meu avô Juan Gelman. É maior. Ela  agora tem 76 anos e sua saúde está muito delicada. Eu acho que tudo isso tem sido muito influente.

– Será que o jeito que ela deu a notícia ajudou? Como foi?

“Um dia ao entrar em casa encontrei-a chorando. Perguntei o que se passava. Ele disse que precisava falar comigo, mas não podia fazê-lo naquele momento porque eu tinha que voltar ao trabalho, que seria melhor quando voltasse com mais tempo. Ela chorava tanto que eu decidi ficar. Eu perguntei e perguntei e ela só chorava. Ela mal conseguia falar. Eu perguntei se tinha a ver com o papai com ela e respondeu-me que era com todos os três. E então eu não sei porque, eu nunca tinha suspeitado, mas diante de seu silêncio e lágrimas, perguntei: “Eu não sou sua filha?”. E ela respondeu: “Quem lhe disse?”. Foi aí que percebi o que eu tinha falado.

-Então, de alguma forma, mesmo inconscientemente, você sabia.

Parece que terei de aceitar que sim. Depois me contou como cheguei à sua casa, e que não sabia de onde eu vim até o momento que este homem que dizia ser meu avô entrou em contato com ela. Obviamente, eu comecei a chorar. Eu não entendia o que estava acontecendo em minha cabeça.

-Você disse antes que, como resultado de tudo isso está intimamente relacionado com o seu avô. Gostou?

Sim. Eu estava com um medo terrível na primeira vez, e eu imaginei que teria um monte de dúvidas. Mas a partir daí foi tudo uma avalanche. Havia decisões a tomar em um contexto histórico e político em que ainda se negava a existência de crianças roubadas no Uruguai. A questão dos desaparecidos era sempre deixada para trás. Aqui se negavam a maioria das coisas.

– E até então nunca havia se incomodada sobre esses assuntos?

-Não. Nem tinha qualquer filiação política. Eu não estava interessada em política partidária, mas era ativa em uma união de estudantes. A lei de anistia não permite que os responsáveis ​​por crimes da ditadura sejam investigados. Mas este governo tem feito muito para permitir todas as investigações abertas.

-O problema é que é uma lei aprovada por referendum.

-O governo considerou que o caso de minha mãe não devia ser incluído na lei. Mas, apesar disso, o processo judicial foi arquivado, o que meu avô apresentou em 2002 e eu pedi para reabrir em fevereiro deste ano, foi novamente arquivado com base nesta lei. Fechando assim as portas para a investigação a nível judicial.

Portanto, você começou a dar publicidade à sua história.

Não, isso é muito recente. Eu não tinha começado a falar com a imprensa até este ano. Porque agora é quando foi provado o que aconteceu comigo e com muitas pessoas tem muito a ver com estes dois países. Isso aconteceu. Foi muito cruel. Aconteceu durante uma ditadura, e para mim o roubo de crianças não tem explicação. Agora eu sei que o roubo de crianças era muito comum na Argentina e no Uruguai.

-A colaboração da ditadura uruguaia com a Argentina foi muito estreita

Sim, e você tem que lutar pela verdade para que isso não aconteça novamente. É a causa de muitas pessoas.

Por Gabriela Cañas
© EL PAIS, SL

Luis Nassif

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador