Aparência e realidade (4), por Sérgio Sérvulo da Cunha

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Aparência e realidade (4)

por Sérgio Sérvulo da Cunha

Não consegui esgotar, nos três últimos editoriais, o tema relativo à aparência do golpe: aquilo que se faz para disfarçar um golpe de Estado.

O que se faz para disfarçar um golpe se confunde, em parte, com o que se faz para justificar um golpe. E, aí, já se adentra a anatomia do golpe: o que é realmente um golpe de Estado?

Em outubro de 1945, a materialidade dos fatos indicava ter havido um golpe: os militares, utilizando a força, puseram Getúlio para fora.

Mas, se acrescentarmos um elemento teórico ao conceito de golpe, diremos que em 1945 não houve golpe, porque o mandato de Getúlio era ilegítimo. De fato, em 1937, Getúlio se perpetuara no poder, ao rasgar a Constituição e colocar em seu lugar um papelucho. Assim, em 1945 o objetivo dos militares era restaurar o regime constitucional, como de fato se fez em seguida, com a Constituição de 1946.

Contudo, o que significa “ilegítimo”? Na sua carta aos brasileiros, em agosto de 1977, meu saudoso professor Gofredo da Silva Telles explicava a diferença entre legitimidade e legalidade. Mas, quando se passa a depender de conceitos jurídicos e filosóficos, as coisas se embaralham, e os interessados se põem a desfilar teses opostas. Se é possível demitir um governo ilegítimo, por que não também um governo antipático, ineficiente, ou corrupto? Então, o Direito passa a ser visto como formalidade, o voluntarismo entra em cena, e, seja quem veste uma farda (como em 1922) ou uma toga (como em 2016), entende de exorbitar de seus poderes, para salvar o país.  

A história brasileira revela a latência do golpismo. E o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, ressaltando que a Constituição é um pacto, mostra que o país não pode ter um pacto constitucional durável, se as suas elites não aceitam ser limitadas por nenhum pacto.

Suponhamos que, em 1945, Getúlio tivesse ido aos tribunais, e que estes resolvessem julgar conforme a legalidade. Ele seria reposto na presidência.

Nenhum juiz diria que a “Constituição de 1937” era uma ficção, tecida exatamente para legitimar o regime nascido do golpe. Muito mais do que se imagina, movem-se os juízes pelo poder das palavras, mesmo que elas sejam ocas. Até hoje os livros e manuais de Direito se referem à Constituição de 1937, à Constituição de 1967, e à Constituição de 1969, como se verdadeiras constituições fossem.

Nos conselhos aos governantes, atribuídos a Confúcio, se recomendava que, ao assumir o poder, mudassem o nome das coisas. A partir daí, se acharia que as coisas estavam sendo realmente mudadas. Isso – mesmo que não tenha sido realmente dito por Confúcio – serve para ilustrar a apropriação política, tanto do poder da linguagem, quanto do prestígio dos sábios.

O historiador Alfredo Bosi lembra que “em 1556, quando já se difundia pela Europa cristã a legenda negra da colonização ibérica, decreta-se na Espanha a proibição oficial do uso das palavras ‘conquista’ e ‘conquistadores’, que são substituídas por ‘descubrimiento’ e ‘pobladores’, isto é, colonos”.

Dirigindo-se aos seus subordinados, Goebbels exigia que usassem o adjetivo “criminosos” para qualificar os anos que iam de 1918 (após o tratado de Versalhes) até 1933 (quando Hitler tomou o poder). Em 12 de fevereiro de 1942, anotava em seu diário o chefe da propaganda nazista: “Dei instruções ao nosso Ministério para que prepare dicionários para as zonas ocupadas onde será ensinada a língua alemã. Sobretudo eles deverão contar com uma terminologia conforme nossa moderna concepção de Estado. Deverão ser especialmente traduzidas as expressões nascidas do nosso dogmatismo político. Essa é uma forma indireta de propaganda, da qual espero resultados muito bons”.  Não custa lembrar que os nazistas ascenderam ao poder pelas urnas, e que Hitler foi apoiado pela maioria dos alemães.

Esconder a realidade faz parte do marketing político, e faz parte daquilo que, hoje, já podemos identificar como o marketing do golpe. Se compararmos os golpes de 1937, de 1945, de 1954, de 1955, e de 1964, notaremos algumas alterações na gramática do golpe, uma sofisticação na sua estratégia.

Note-se a argúcia de 1964. Declarando-se vaga a cadeira presidencial, devia-se escolher um novo presidente, nos termos da Constituição, que continuava em vigor. Portanto, como falar em golpe, se os procedimentos tinham sido corretos?

Saber se, em determinada conjuntura, houve golpe ou não, exige mais do que simplesmente ler os jornais.

Sérgio Sérvulo da Cunha é advogado, autor de várias obras jurídicas. Foi procurador do Estado de São Paulo e chefe de gabinete do Ministério da Justiça.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

2 Comentários

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  1. “Não custa lembrar que os nazistas ascenderam ao poder p/ urnas”

    NÃO É FATO, embora o “Heil Hitler” o seja.

    Hitler não foi eleito diretamente nem seu partido tinha maioria no Parlamento, mas manobrou este último truculentamente (como também nas ruas) até criar uma situação onde um Hindenburg (o presidente eleito) doente e oposicionista de Hitler, , por razões estranhas (talvez para acalmar a situação vigente), o nomeou chanceler pouco antes de sua morte.

    Ao assumir o cargo, rapidamente e por decretos até inconstitucionais, dizimou a oposição, estabeleceu uma ditadura, usurpou a posição do morto e autodenominou-se o “fuhrer” a quem os alemães deveriam mais lealdade que à própria Alemanha.

    Portanto não culpemos a democracia por Hitler e pelo nazismo. Mas podemos culpar o povo alemão por sua passividade e cumplicidade.

    Alguma semelhança neste nosso florão?

     

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