O Batalhão de Suez

A FEB no Oriente Médio – O Batalhão Suez
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FONTE: Revista de História da Biblioteca Nacional | 01/02/2007
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O Brasil no deserto 
por Fabiano Luis Bueno Lopes 

O manual do expedicionário brasileiro em Suez – distribuído em 1956 – trazia informações úteis para os soldados que se juntariam às tropas de paz da ONU em território egípcio: “Nosso Batalhão seguirá para o Oriente Médio.(…) Os povos de lá, na maioria, são árabes e israelenses. Eles têm muitas diferenças entre eles e infelizmente andaram se guerreando, ultimamente. Por causa do Canal de Suez, os ingleses e franceses entraram na briga também. A Força Internacional das Nações Unidas vai se colocar no meio de todos, para evitar combates.” Em sua maioria jovens em torno dos 20 anos, os soldados brasileiros tinham a responsabilidade de manter a paz em uma região extremamente conturbada, assolada por conflitos bélicos. De 1957 a 1967, foram dez anos de missão no calor escaldante do deserto, patrulhando as fronteiras entre tempestades de areia e minas terrestres. Hoje, poucos se lembram dos integrantes do Batalhão Suez, ganhadores do Prêmio Nobel da Paz em 1988, ao lado das Forças de Paz da ONU.

Além de Israel e Egito – os dois países envolvidos diretamente na guerra –, grandes potências mundiais, como Inglaterra, França, Estados Unidos e União Soviética, tinham interesses em jogo na região. A iminência de um conflito de grandes proporções levou a ONU a convocar a Assembléia Geral e o Conselho de Segurança para tentar controlar as atividades bélicas na região. A Primeira Força de Emergência das Nações Unidas (I FENU, ou, no original, UNEF I – First United Nation Emergency Force) seria formada em 1956.

Um dos motivos dos desentendimentos que gerariam o conflito foi a nacionalização do Canal de Suez pelo presidente egípcio Gamal Abdel Nasser em 1956, atitude que prejudicava os interesses franco-britânicos, além de restringir a navegação israelense pela passagem. O local é ponto estratégico para a economia mundial, fazendo a ligação marítima mais curta entre vários países da Ásia, da África e da Europa. Apoiado pela União Soviética, Nasser assumiu uma postura totalmente contrária às pretensões de várias nações ocidentais, entre elas os Estados Unidos. Em retaliação, França e Inglaterra formaram uma espécie de coalizão com Israel e atacaram o Egito.

Por tratar-se de um momento delicado da Guerra Fria – a disputa entre União Soviética e Estados Unidos pela liderança política e econômica mundial –, a ONU agiu prontamente para impedir maiores conseqüências entre os beligerantes: tropas de paz foram enviadas para a região. O Brasil foi um dos dez países convidados a participar da missão, juntamente com Canadá, Noruega, Finlândia, Índia, Colômbia, Dinamarca, Indochina, Suécia e Iugoslávia.

Juscelino Kubitschek, então presidente, aceitou prontamente a indicação, tratando de convocar o Exército para integrar as tropas internacionais. O Brasil tinha fortes interesses estratégicos na missão. As intenções de JK com relação à política externa tornaram-se claras: a participação na tropa de paz era uma oportunidade de projetar o Brasil no cenário internacional – ambição que o país perseguia com afinco na época.

Ao longo de dez anos, o governo brasileiro enviou vinte contingentes de tropas para a região, num total aproximado de 6.300 militares. Cada grupo permanecia na região por cerca de um ano. A cada seis meses, metade do efetivo era trocada. Na época, a imprensa apelidou o destacamento brasileiro de Batalhão Suez, alcunha pela qual os integrantes da missão ficaram conhecidos e identificam-se até hoje. A referência a Suez se deve à atuação das tropas de paz no conflito que se seguiu à nacionalização do canal. O apelido facilitava a identificação do contingente brasileiro, vinculando-o ao conhecido ponto na região. O nome oficial do grupo era menos atraente: 3º Batalhão pertencente ao 2º Regimento de Infantaria do Rio de Janeiro. No decorrer do conflito, outros quartéis seriam usados para formação, instrução e treinamento de tropas em estados como São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Minas Gerais e Paraná, entre outros. 

Na maioria das vezes, as forças brasileiras foram enviadas para o Oriente Médio em navios de transporte de tropas da Marinha – as viagens duravam cerca de 40 dias. No decorrer dos anos de conflito, alguns contingentes foram levados em aviões da Força Aérea Brasileira (FAB). Quando chegavam ao Egito, os soldados brasileiros se deparavam com um ambiente totalmente hostil. O agressivo clima do deserto – muito seco e quente de dia e frio à noite – era algo totalmente novo para o brasileiro, assim como os hábitos alimentares e as práticas culturais dos habitantes da região. Apesar disso, as tropas se adaptaram surpreendentemente bem às condições, executando suas missões com sucesso. A simpatia, o companheirismo e a amizade demonstrados pelos membros do Batalhão Suez conquistaram o apreço da população local.  Os bons olhos com que os brasileiros eram vistos facilitariam o andamento da missão.

O clima de incerteza, o desgaste provocado pela tensão da guerra e a situação de miséria que assolava a região punham em xeque o moral das tropas. Muitos soldados sofriam intensamente – segundo descrição de alguns veteranos – por causa da distância e das saudades da família e do Brasil. Escreviam longas cartas para suas famílias e poesias em que expressavam seus pesares.

O contingente brasileiro ficava ao longo da fronteira entre Israel e Egito, sobretudo na região da atual Faixa de Gaza. As atividades consistiam em patrulhar e vigiar a região fronteiriça com a preocupação de evitar violações da Linha de Demarcação de Armistício (LDA). O objetivo das forças de paz da ONU era manter o cessar-fogo estabelecido entre Egito e Israel no fim da guerra de 1956. Uma das incumbências dos soldados brasileiros era a vigilância contínua de cerca de 50 quilômetros de fronteira por meio de Postos de Observação – guaritas improvisadas no deserto – para garantir a tranqüilidade necessária na região. Nossos soldados também acompanharam as retiradas de tropas de ambos os lados e desarmaram minas que haviam sido enterradas durante os conflitos, serviço de extrema periculosidade e que exigia grande conhecimento técnico.

O Batalhão Suez permaneceu em território então pertencente ao Egito, travando contatos mais freqüentes com os povos árabe e palestino. Israel não permitiria a entrada de tropas internacionais em seus territórios, embora concordasse com a missão.

Além de enviar soldados, o Brasil contribuiu com alguns armamentos e equipamentos militares, entre eles o famoso FNM – caminhão produzido pela hoje extinta Fábrica Nacional de Motores –, bastante usado na missão. Durante os anos de atuação da Força de Paz da ONU, dois generais brasileiros comandaram as operações: Carlos Paiva Chaves (de janeiro a agosto de 1964) e Sizeno Sarmento (de janeiro de 1965 a janeiro de 1966).

A missão no Oriente Médio durou cerca de 10 anos, e seu final foi dramático. Em 1967 eclodiu a Guerra dos Seis Dias: Israel solicitou a retirada das tropas da ONU e invadiu o Egito. No dia 5 de junho, às 9 horas da manhã, jatos Mirage – de fabricação francesa – do exército israelense cortaram o espaço aéreo egípcio lançando um ataque devastador, que aniquilou boa parte das defesas inimigas. O combate ocorreu simultaneamente em outras frentes. Problemas de comunicação e uma demora na tomada de decisão do secretário-geral da ONU geraram desentendimentos quanto à retirada das tropas brasileiras. O Campo Rafah, local onde os homens do Batalhão Suez estavam concentrados, ficou no meio do fogo cruzado. Durante dois dias e duas noites eles tiveram que rastejar pelo chão para não serem atingidos. No episódio, um cabo brasileiro morreu, vítima de um disparo. Chamava-se Adalberto Ilha de Macedo.

Na volta ao Brasil, a grande maioria dos militares que integraram a Força de Paz foi desligada do Exército. Permaneceram somente os profissionais. Apesar da experiência de um ano na missão, do contato com outros exércitos, com novas tecnologias e práticas militares – em geral mais modernas –, estes homens foram simplesmente lançados na vida civil. Segundo alguns veteranos, não houve por parte do Exército ou do governo qualquer preocupação em oferecer oportunidades ou assistência aos ex-combatentes. Na época jovens sem experiência profissional, eles teriam grande dificuldade em retomar a vida. Algum tempo depois, ex-servidores da ONU, heróis de guerra, foram encontrados em situação econômica bastante complicada, uns doentes e outros até mesmo em situação de mendicância.

Ao longo dos anos, os ex-soldados passariam a se reencontrar e se organizariam em grupos. Os veteranos do Batalhão Suez buscam até hoje manter contato com antigos colegas que viveram as mesmas experiências e os mesmos dramas, com o objetivo de rememorar e propagar suas memórias. Desses encontros surgem associações preocupadas em divulgar as lembranças por meio de comemorações, criação de símbolos, monumentos, museus e homenagens. 

Hoje em dia existem várias associações de veteranos de forças de paz da ONU espalhadas pelo Brasil, com uma certa interação entre elas. As entidades têm, principalmente, um caráter de confraternização e reivindicação do reconhecimento público e social. Na falta de incentivos externos, enfrentam grandes dificuldades para atingir seus objetivos.

Uma das características marcantes neste tipo de organização é a identificação com o Exército Brasileiro e a própria ONU. Mesmo após anos de desligamento efetivo, continuam estabelecendo alguns contatos. Grande parte dos rituais comemorativos continua reproduzindo as práticas militares do Exército e fazendo menções à instituição internacional à qual um dia serviram.

Poucos sabem, mas o Brasil tem participado, ao longo dos anos, de grande parte das forças de paz da ONU. Atualmente, as tropas brasileiras atuam em oito missões, a mais famosa delas no Haiti. Após a missão no Oriente Médio, o Brasil participou de muitas outras forças de paz enviando tropas, como, por exemplo, no Congo, em Angola, em Moçambique e no Timor Leste, entre outras. Em 1988, os Boinas Azuis da ONU – como são conhecidos os integrantes das forças de paz – receberam o Prêmio Nobel da Paz, motivo de orgulho para os veteranos da Missão Suez. 

Em 2006 foi comemorado o cinqüentenário da formação do Batalhão Suez. A participação do Exército Brasileiro no conflito no Oriente Médio é, ainda hoje, um tema pouco estudado e negligenciado pela historiografia nacional. Os livros didáticos e os manuais educativos do país não costumam fazer qualquer menção ao assunto. Idosos, muitos deles passando por dificuldades financeiras, os ex-soldados hoje lutam para obter o reconhecimento do país e por uma velhice digna de seus feitos.

FABIANO LUIS BUENO LOPES é doutorando em História na Universidade Federal do Paraná e autor da dissertação de mestrado “Batalhão Suez: história, memória e representação coletiva (1956-2000)”, defendida em 2006 na mesma universidade.

Luis Nassif

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