Ditadores tinham conhecimento da tortura

Fonte: BBC e Arquivos da Ditadura
Por JNS
 
 
 
Foi só quando o carro embicou no pátio do Arquivo Nacional, no Centro do Rio, e o corre-corre da imprensa se amontoando ao seu redor começou – “Chegou!” – que as dúvidas sobre se o coronel reformado Paulo Malhães de fato apareceria se dissiparam.
 
Aos 76 anos, Malhães foi carregado do carro para a cadeira de rodas que havia solicitado para comparecer à audiência pública da Comissão Nacional da Verdade (CNV), cercado de fotógrafos e cinegrafistas
 
O ex-agente do Centro de Informações do Exército (CIE) chegou acompanhado da esposa, vestindo um terno bege e um óculos escuros de aro dourado – que fez um repórter ao meu lado comentar que parecia o ex-ditador líbio Muammar Khadafi.
 
Outra repórter arriscou puxar uma entrevista – “Você não se arrepende?” – gritou, mas a cadeira de rodas era empurrada às pressas para a sala de depoimento, que seria fechada à imprensa. Malhães nem olhou para trás.
 
Desde que a CNV foi criada, em maio de 2012, apenas quatro agentes da ditadura haviam aparecido nas convocações para depor em audiência pública, e apenas dois haviam confirmado a prática, ou a existência, de tortura.
 
Malhães se tornou o quinto a depor e o primeiro a admitir a participação em tantos crimes.
 
Em depoimento que durou mais de duas horas, ele confirmou que torturou, matou e ocultou cadáveres de presos políticos na ditadura militar.
 
Casa da Morte
 
Na audiência pública, a CNV apresentou o que se sabe sobre a Casa da Morte de Petrópolis, um centro clandestino mantido pelo regime militar no início da década de 1970.
 
Malhães era um dos agentes ativos no centro de tortura – cujo nome vem da fama de que ninguém saía dali vivo. A única sobrevivente é Inês Etienne Romeu, presa e torturada por seis meses em 1971.
 
Foi graças à sua memória e perseverança que a existência da casa veio à tona, em 1981. Ela tem graves sequelas neurológicas desde que foi agredida em casa em 2003, em um crime que nunca se esclareceu. Foi aplaudida como uma heroína na audiência na parte da manhã.
 
De tarde o público se dissipara. O coronel concordara em depor, desde que fosse a portas fechadas. Mas logo no início da sessão, surpreendeu a todos mudando de ideia e admitindo a entrada da imprensa. A primeira frase que ouvi ao entrar foi: “Como faço com tudo na vida, eu dei o melhor de mim naquela função.”
 
Contou ter estudado documentos dos serviços secretos britânico, americano e israelense no início da carreira. Hoje, diz ser um estudioso de orquídeas. “Cheguei a fazer tortura quando comecei. Depois, evoluí”, disse a princípio. Deu a entender que evolução fora passar à tortura psicológica.
 
Ele tirara os óculos escuros e agora parecia apenas um senhor apagado de 76 anos, os cabelos escovados para trás, a barba grisalha, os ombros tronchos meio caídos para a frente.
 
A CNV apostara na vinda de Malhães porque nas últimas semanas ele mostrara uma súbita abertura a entrevistas.
 
Ele fez revelações com riqueza de detalhes aos jornais O Globo e O Diae à Comissão Estadual da Verdade no Rio. Disse que foi ele quem deu uma solução final ao corpo do deputado Rubens Paiva, desenterrando-o de uma praia do Rio para lançá-lo no mar, ou em um rio – ele deixava em aberto.
 
Mas no depoimento à CNV, desmentiu a “verdade” que recém-revelara sobre Rubens Paiva – e confirmou muitas outras.
 
Malhães não quis dar nomes a seus comparsas nem números a suas vítimas.
 
Mas disse ter torturado “uma quantidade razoável” de pessoas, ter matado “alguns” e confirmou ter mutilado corpos para impedir sua identificação caso fossem encontrados.
 
 
 
“Naquela época não existia DNA. Quais são as partes que podem identificar um corpo? Arcada dentária e digitais”, afirmou, explicando que portanto os dentes eram quebrados e o topo dos dedos, cortados.
 
“Eu cumpri o meu dever. Não me arrependo”, disse ele.
 
Malhães agora ocupava a cadeira do interrogado, microfones dispostos à sua frente, e do outro lado da mesa estavam os membros da CNV, com José Carlos Dias e Rosa Cardoso conduzindo as perguntas. Sua esposa estava na cabeceira da mesa, e sem mexer a cabeça alternava o olhar entre o marido e seus interrogadores.
 
Eles lhe mostraram fotos de pessoas que, acredita-se, foram assassinados ou desapareceram depois de passar pela Casa da Morte. O coronel alegou não reconhecer as fotos. Disse que nenhuma daquelas pessoas passou por suas mãos.
 
“Essas pessoas que vocês estão citando eram guerrilheiros, eram luta armada, não eram pessoas normais. Não foram presos porque jogavam bolinha de gude ou soltavam pipa.”
 
Argumentou que hoje as pessoas não conseguem entender quais eram os problemas enfrentados, e que a verdade precisa ser “informada”.
 
“Quantos morreram? Tantos quanto foram necessários.”
 
“Não sou sentimental!”
 
Dias e Cardoso faziam uma pergunta atrás da outra, muitas vezes cortando suas respostas pela metade. Malhães esboçou alguma impaciência mas permaneceu calmo, sempre tratando-nos por “senhores”.
 
Guerrilheiras mulheres, ele disse que via como se fossem homens. Mas “eu tinha verdadeiro pavor de interrogar as mulheres e, vamos dizer, gays, para não usar a palavra que se usava naquele tempo.”
 
Isso porque mulheres ou homossexuais, segundo o coronel, preferiam morrer a revelar os nomes dos amantes ou maridos. Já os homens falariam depois de duas ou três horas. “Você ‘ganhar’ uma mulher é uma coisa, assim, de outro mundo”, disse, sem precisar a que método de interrogatório se referia.
 
E Rubens Paiva? Perguntado novamente sobre a operação para encontrar a cova do deputado e sumir com seu corpo, notícia que teve ampla repercussão na semana passada, Malhães agora disse não ter sido ele quem executou a missão, embora tenha recebido a tarefa inicialmente.
 
“Eu só disse que fui eu porque eu acho uma história muito triste quando a família passa 38 anos querendo saber o paradeiro. Eu não sou sentimental, não. Mas tenho as minhas crises.”
 
A versão a jornalistas teria sido dada “para pôr um ponto final na história”.
 
Mas no depoimento ficou claro o incômodo de Malhães com a repercussão das matérias do Globo e do Dia, ambas baseadas em longas entrevistas que deu em mais de um dia a repórteres dos dois veículos.
 
“O defeito do jornalista é que eles são ávidos por novidades. Se ligassem os fatos não publicariam algo errado”, criticou, dizendo ter sido vítima de reportagens “fundamentalmente maliciosas”, disse.
 
Por isso, estaria agora procurando falar em forma de parábolas – “como fazia Cristo” – para que cada um pudesse interpretar suas palavras da sua forma.
 
Culpa
 
Ao fim do depoimento, depois de confirmar seus crimes, Malhães foi empurrado na cadeira de rodas de volta para o carro, de volta para a rua, de volta para casa.
 
“Mas deixou entrever o calvário pelo qual sua família começa a passar após ter começado a tornar públicos seus crimes.
 
Quando Dias insistiu para que falasse sobre os corpos que descaracterizava, ele se negou a informar quem ele havia “feito”. Disse não ter medo de vingança, mas de sanções aos seus filhos.
 
“Seus filhos não têm culpa do pai que têm”, disse Dias.
 
“É. Também concordo. Mas isso não é verdade. Eu tenho cinco filhos e oito netos. Com essas reportagens que saíram, eles estão sofrendo sanções”.
 
“Mas sofreriam mais se soubessem – ‘meu pai cortou os dedos e cortou o pescoço de fulano de tal’, ou então de uma pessoa cujo nome eles não sabem? Que diferença faz?”, insistiu Dias.
 
“Muita. Essa pessoa também tem família.”
 
Ao fim da sessão, não foram permitidas perguntas à imprensa. Os jornalistas recolheram os microfones da mesa e alguém pegou uma caneta, perguntando se Malhães a havia usado. Na dúvida, passou um paninho. “Tenho nojo desse cara.”
 
Dias ressaltou a importância do depoimento, principalmente por Malhães ter sido uma figura de alto escalão no regime militar.
 
“Acima dele, todos os degraus naturalmente tinham conhecimento da tortura. Era uma política de estado, usada para combater os que se opunham ao regime.”
 
Segundo Dias, poucas vezes o Brasil teve uma confissão como esta, com um torturador não apenas admitindo mas também justificando a prática de torturar aqueles que considerava o inimigo.
 
“Mas eu não diria que ele foi corajoso. Acho até que ele foi um exibicionista, mostrando todo esse caráter mórbido que está presente no caráter dele.”
 
Geisel investigou e confirmou abuso nas prisões a pedido de Castello Branco
 
Elio Gaspari | Arquivos da Ditadura
 
Os primeiros casos de tortura em quartéis e prisões ocorridos durante o regime militar, ainda em 1964, não foram punidos, apesar das claras evidências levantadas em apurações conduzidas pelo próprio Exército.
 
Já em 2 de abril daquele ano, portanto no dia seguinte ao golpe, o líder comunista Gregório Bezerra foi amarrado quase nu à traseira de um jipe das Forças Armadas e arrastado pelas ruas de Recife (PE). Em seguida, foi espancado com uma barra de ferro, em praça pública, por um oficial do Exército. Episódios parecidos ou piores repetiram-se em diversas cidades de Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul.
 
Após as primeiras denúncias, o regime chegou a se movimentar. O presidente Castello Branco designou Ernesto Geisel, então chefe do Gabinete Militar, para coordenar as investigações. Geisel viajou pelo país e elaborou um relatório que, apesar de tímido, admitia a prática de sevícias contra os opositores. Mesmo assim, nada aconteceu.
 
O jornalista e escritor Carlos Heitor Cony foi pioneiro. Denunciando violências em artigos no Correio da Manhã, recebeu sua primeira ameaça no dia 14 de abril de 1964.
 
Também no Correio da Manhã o repórter Marcio Moreira Alves sustentou uma campanha revelando a existência de tortura nos porões. A série seria reunida em seu livro Torturas e torturados, lançado em 1966.
 
Em um exemplar do livro, que fazia menção ao relatório de Geisel, o futuro general-presidente anotou: a investigação do militar não puniu ninguém, mas teve “ao menos o mérito de paralisar a tortura”. Inibiu, pois foram poucos os novos casos durante o governo Castello Branco, mas não paralisou. E como nenhum torturador foi punido, ela sobreviveu.

 

 

Redação

8 Comentários

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  1. Enquanto isso Dirceu mofa na

    Enquanto isso Dirceu mofa na cadeia , agora , na segunfa fase do golpe …a tortura togada . A ditadura continua … a ditadura togada …

  2. Não se fala dos torturadores cubanos?Por que existe este tabu?

     A tortura é abominável.  A Tortura não só ocorreu no Brasil. Em Cuba houve muita tortura, mas não se fala dos torturadores cubanos. Aliás , até hoje a tortura não foi abolida de Cuba. No Brasil, a tortura continua sendo praticada em delegacias longe dos olhos do povo. O simples fato de termos presidios superlotados já caracteriza um tipo de tortura. Sobre a tortura de menores na antiga Funabem não se fala.  Sobre a tortura e exterminios de jovens no extinto presídio de menores no Instituto  Muniz Sodré- RJ tambem não se fala;mas o caso foi parar na ONU, na decada de setenta. Este casos não interessam a Comissão Nacional da Verdade,porque tortura de pobre não dá ibope nem voto. Tambem falar da tortura em Cuba não é elegante para quem foi acolhido e treinado na ilha da tortura e do paredon. Quando a esquerda brasileira vai quebrar este tabu e começará a condenar a tortura de forma ampla geral e irrestrita em toda parte do mundo? O torturador de Cuba não é diferente do torturador do Brasil, ambos cometeram crimes contra a humanidade.

    1. Você é muito bem informado.

      Você é muito bem informado. Só por curiosidade, será que você não quer compartilhar com os coitados desinformados suas fontes, e esclarecer de onde você tirou a informação segura de que há tortura em Cuba?

      1. esquerdinha doída

        auhauhauha não é do conhecimento geral as mortes e abominações q aconteceram na ditadura de Cuba. Mas dê uma pesquisada q vc acha, amigo! INFORME-SE antes de questionar com cinismo 🙂

        abrass

    2. nosense total!

      Não entendi; você quer que a comissão da verdade do Brasil apure torturas em Cuba?? Por favor não subestime a inteligencia alheia ao fazer propaganda fascista aqui tá!

  3. A lei da anistia tem que ser

    A lei da anistia tem que ser anulada. Não é possível uma figura dessas continuar impune, confessando mortes, torturas, mutilação de corpos.

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