Entrevista com Milton Santos, de 1998

Por Assis Ribeiro

Do Vermelho.org

Entrevista Milton Santos: O negro como uma coisa

Em junho de 2001, o Brasil perdeu um de seus intelectuais mais ativos, perspicazes e certeiros na crítica. O geógrafo Milton Santos tem ampla obra sobre a questão urbana, a pobreza, a globalização e a questão racial. 

Nesta edição especial sobre a questão do negro, a Fórum faz uma homenagem ao professor, reproduzindo um trecho de uma entrevista com ele publicada em 1998, no site vermelho.org.br.

A gente está acostumada a pensar o Brasil como um país ocidental… 

Milton Santos – É, somos todos brancos!… (risos)

O que é o Brasil? 

Milton Santos – É um país como qualquer outro e, também, um grande país, uma grande cultura. E nós, contraditoriamente, admitimos que só há grandes culturas no Norte.

Quais elementos têm o Brasil e a América Latina que serviriam de indícios para desenvolvermos uma alternativa a essa “globalização”? 

Milton Santos – O que temos de forte na América Latina e no Brasil, em particular, é a idéia de futuro. E é justamente esse sentido de futuro que falta à Europa. Os europeus – os filósofos – falam muito em futuro, mas não crêem nele o bastante, porque é um continente que necessita ter medo todos os dias. Quando não tem medo, inventa. Há um século, a Europa é assim. E a América Latina é o contrário – é o continente do arrojo, do bandeirismo, da disposição de abrir novos caminhos. Creio que é por aí. 

Outro dado importante é o fato de fazermos várias revoluções ao mesmo tempo, o que não é incorporado, ainda, pela epistemologia das Ciências Sociais. No caso da América Latina, fizemos ao mesmo tempo a revolução demográfica, a revolução urbana, a revolução industrial, a revolução sexual. Todas concomitantemente. E os parâmetros que utilizamos são os europeus, onde tudo é devagar, tudo é lento e onde, por isso mesmo, as organizações têm um peso forte, porque elas são capazes de comandar de alguma forma a evolução. No nosso caso, as organizações são menos capazes desse comando da evolução – exatamente por essa soma, essa superposição de revoluções na vida social. Como a organização é incapaz de comandar pacificamente, pelo consenso, então você tem sempre a brutalidade no governo. No caso do Brasil foi a brutalidade do regime militar e, agora, a brutalidade deste regime civil. Quer dizer, temos uma brutalidade sucedendo a outra. A brutalidade é sempre presente, porque não se leva em conta essa dinâmica da sociedade e não se busca uma forma de organização da vida política que acompanhe tal dinâmica social.

Fazemos várias revoluções, mas não conseguimos completar uma revolução democrática. Temos o passado convivendo (e até atrapalhando) com os que querem o futuro. 

Milton Santos – Creio que sim. E isso tem que ver com o caráter das nossas classes médias. Apenas quem quer as mudanças são os pobres, pois a classe média quer se manter com seus privilégios. Os direitos não interessam à classe média – a classe média não pede direitos, porque ela prefere ir pelo canal dos privilégios.

É difícil não perceber, dentro dessas contradições sociais, uma contradição racial. A questão do negro é uma questão de raça ou de classe? 

Milton Santos – São as duas coisas. Eu tendo a pensar que é mais uma questão de raça mesmo…

O Brasil é um país racista, não? 

Milton Santos – É, também é isso. Mas além de ser racista, a sociedade se organizou na base do escravismo e de sua memória. A idéia do outro como uma coisa, que era uma idéia oficial, continua vigente no Brasil atual, onde os negros ainda são coisas. Não importa se eles tenham uma melhoria financeira, econômica ou cultural.

Luis Nassif

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