Aldo Fornazieri
Cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política.
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Mandela: o último e o primeiro líder

As Batalhas da Modernidade Ocidental
 
Os estudiosos da modernidade ocidental costumam dividi-la em alguns períodos. A modernidade tem sua origem identificada aos descobrimentos, ao Renascimento e à invenção da prensa. Do ponto de vista político, porém, a modernidade é mais precisamente assimilada ao Tratado de Westfália, ocorrido em 1648, após a Guerra dos Trinta Anos, que tinha nos conflitos religiosos sua causa imediata. O Tratado de Westfália deu origem ao moderno sistema internacional e reconheceu o princípio da soberania do Estado-Nação, independentemente do Império e do poder religioso. Começa ali um período de guerra entre reis em busca de conquistas e afirmações de soberanias estatais. Este período se estende até 1789, quando eclode a Revolução Francesa, dando início a guerra entre povos ou nações. O século XIX se caracterizou por conflitos desta natureza. No fim da Primeira Guerra Mundial e com a Revolução Russa, surge um novo período, marcado pelo conflito entre ideologias – comunismo, nazi-fascimo e democracia liberal. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o conflito ideológico se reveste de um confronto bipolar entre as duas superpotências. Já o fim da Guerra Fria marca o triunfo da forma liberal-democrática de organização política. Toda essa era da modernidade ocidental é recortada também por uma série de outros conflitos que se traduzem em guerras de conquista, guerras de independência, guerras civis etc.
 
É razoável supor que a cada um desses períodos da modernidade ocidental corresponde uma tipologia específica de liderança política, relacionada às causas e motivações centrais dos conflitos inerentes a esses períodos. Assim, nas guerras entre governantes (reis, de modo geral), surgiram figuras como Fernando de Aragão, Henrique VIII, Elizabeth I, Lutero, Calvino, Oliver Cromwell, Guilherme de Orange, Luis XIV, entre outros. Em regra, esses líderes tinham como foco de suas lutas a afirmação e o desenho das fronteiras dos seus Estados Nacionais e a efetivação de seu poder soberano. Questões religiosas e liberdades civis (em alguns casos) também motivaram conflitos desse período.
 
A Revolução Francesa eclodiu sob o estandarte da Liberdade, Igualdade e Fraternidade. A tomada da Bastilha, a execução de Luis XVI, o jacobinismo, a Primeira República Francesa e as guerras revolucionárias francesas que foram movidas contra outros países aterrorizaram as casas reais européias. As reações restauracionistas que se seguiram, principalmente até 1814, não passavam do estertor das monarquias. Surgia um novo tipo de líder, cujo protótipo foi Napoleão Bonaparte – um chefe militar de um povo na luta contra outros povos. Os valores da revolução já anunciavam um universalismo futuro, que ganharia formas concretas no século XX. Este universalismo foi percebido pelo jovem Hegel quando viu Napoleão em Iena e o identificou como “o Espírito do Mundo a cavalo”. George Washington, Lincoln, Simão Bolívar, San Martim, Bismark, Garibaldi, Mahatma Gandhi e Nasser foram alguns dos principais líderes no período das lutas entre nações ou de guerras civis.
 
O conflito ideológico, iniciado pela Revolução Russa, opôs visões de mundo antagônicas sobre a organização da sociedade e do Estado, sobre a economia e sobre os valores. As idéias foram o combustível que incendiou corações e mentes de milhões de pessoas que se mobilizaram e pegaram em armas para defendê-las. Líderes fortes e carismáticos se colocaram à frente das mobilizações, das batalhas e das guerras. Provavelmente, as batalhas ideológicas protagonizaram o período mais sangrento da história. Destruição, fome, massacres, campos de concentração e horror foram marcas desse período. Lênin, Stalin, Hitler, Mussolini, Churchill, De Gaulle e Roosevelt foram os principais colossos das batalhas ideológicas. No período da Guerra Fria pode-se destacar Kruchev, John Kennedy e Mao Ste Tung.
 
A África do Sul e Mandela
 
Com o final da Segunda Guerra, mas mais especificamente com o fim da Guerra Fria, pode-se dar por concluído o período histórico da maturação e formação do Estado-Nação, embora ainda persistam tarefas inconclusas a esse respeito. Os Estados e as nações não se desenvolvem no mesmo ritmo e de forma igual. A África foi a última fronteira do colonialismo e é a última fronteira da afirmação dos Estados Nacionais. A África do Sul sofreu duas ondas colonizadoras: a primeira, iniciada por volta de 1652, promovida pelos holandeses, mas com a participação de colonos de outros países baixos e da Alemanha e França. Massacres, extermínios de nativos e tentativas de escravização marcaram este domínio. A segunda se iniciou em 1795 quando os ingleses ocuparam a Cidade do Cabo, no contexto da Guerra Anglo-Holandesa. A brutalidade da dominação não foi diferente, levando, inclusive, a duas guerras contra nativos, conhecidas por Guerras dos Boers. Vencidas as guerras pelos britânicos, e embora a independência só viesse em 1961, já início do século XX iniciou-se a adoção de medidas que levaram ao apartheid. A Lei da Terra de 1913, que estabeleceu áreas segregadas para os nativos, determinou que os negros, com a população de dois terços, ficassem com apenas 7,5% da terra. As proibições de casamentos mistos, os confinamentos a bairros e cidades e as demais segregações vieram com o tempo. Perduraram até 1994, quando Mandela venceu as eleições.
 
Depois de ser um dos líderes do pacífico Congresso Nacional Africano, em 1961 Mandela cria a “Lança de Uma Nação”, braço armado da luta contra o apartheid e se torna seu primeiro comandante em chefe. Preso em 1962 é condenado à prisão perpétua dois anos depois. A luta de Mandela foi contra a segregação racista, pela liberdade, pelos direitos humanos dos negros e pelo fim das injustiças cometidas pelo regime branco contra o seu povo. Ao lutar pelos direitos e pela emancipação do seu povo, Mandela foi um líder nacional, tornando-se o chefe de um povo. Neste aspecto, faz parte da mesma tipologia de líderes inaugurada pela Revolução Francesa. Ao chegar à presidência da República, refundou a nação, soube unir o povo, evitando o apelo à vingança e a uma possível guerra civil. Desta forma, pela história de sua luta, pela ascensão à presidência e pela dimensão da sua liderança, pode-se dizer que Mandela foi o último grande líder de povos e da consolidação de nações.
 
Um Novo Tipo de Líder
 
Mas Mandela não foi apenas um líder nacional. Com o fim da barbárie da Segunda Guerra Mundial, os Estados Nacionais haviam chegado à conclusão que era necessário iniciar a construção de um novo tipo de direito, que seria um direito, não dessa ou daquela nação, mas um direito da humanidade. O resultado desta consciência foi o surgimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O preâmbulo da Declaração reconhece a existência de uma Humanidade comum a todos e dos direitos iguais e inalienáveis como fundamentos da liberdade, da justiça e da paz no mundo. Abria-se assim uma nova fase da história, com outro fundamento ético. Fundamento não mais adstrito a causas de um governante, de um Estado, de uma nação, de um povo ou de uma ideologia. O fundamento ético passou a ser universal, pertencente a toda humanidade. Isto configurou o surgimento de novas causas e de novas formas de lutas, assimiladas às causas humanas universais. O surgimento da Globalização alargou ainda mais a consciência do caráter universal das grandes causas do século XXI.
 
Matanças, subjugação e segregação foram os métodos usados pelos brancos para negar a humanidade dos negros. Por isso, aspectos importantes da luta e das causas de Mandela tinham essa dimensão humana universal. Tal como Martin Luther King, a luta de Mandela foi uma luta pelo direito à humanidade dos negros, negado pelo segregacionismo, pelo apartheid e pelo não reconhecimento dos direitos civis dos negros norte-americanos. Ambas as situações representavam a violação de vários artigos da Carta de Direitos da ONU. Luther King e Mandela são os primeiros líderes de uma nova era, na qual as causas fundamentais não são mais apenas nacionais, mas de toda a humanidade.
 
A especificidade de Mandela consistiu em combinar uma causa nacional com uma causa universal, o que lhe conferiu admiração e apreço de todos os povos da terra. Ele e Luther King se tornaram símbolos da luta por valores universais da liberdade, da justiça e da igualdade. Como as tarefas de construção de Estados Nacionais estão, no fundamental, concluídas, e como as ideologias do século XX são uma página virada, os grandes líderes do século XXI serão aqueles que comandarão as causas universais.
 
Efetivar e universalizar praticamente os Direitos do Homem será uma das grandes batalhas deste século. Na medida em que os atuais líderes permanecem ainda presos à esfera das causas nacionais, são líderes de pouca envergadura. As causas da humanidade estão postas sem que líderes percebam a ocasião. Neste contexto, Mandela foi uma grande exceção.
 
*Aldo Fornazieri – Cientista Político e Professor da Escola de Sociologia e Política.
Aldo Fornazieri

Cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política.

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