No caldeirão do Levante, por Walnice Nogueira Galvão

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Só para lembrar: a República de Chipre é uma ilha que fica naquele finzinho de Mediterrâneo denominado Levante, onde se acha encravada entre Turquia, Síria, Líbano e Israel, países situados a pouco mais de 100 km de suas praias. A apetitosa locação não é de tranquilizar ninguém, pois não?

Como se não bastasse, a ilha, que regula com metade de Sergipe, consta de duas partes. O terço norte é turco e os dois terços ao sul são gregos, sendo que a capital, Nicosia (e não Nicósia, como costumamos dizer), é dividida ao meio, com muro, barreiras de arame farpado, controle policial de passaporte e outras amenidades do mundo moderno. O brasileiro mal refreia o susto ao ver os sacos de areia das barreiras tendo estampado o dístico “Café do Brasil”. A bela cidade velha deteriorou-se devido à divisão e às consequências da guerra civil, ainda exibindo marcas de balas e de bombardeio. Chama a atenção uma bandeira turca do tamanho de um campo de futebol gravada nas colinas que circundam a cidade, por isso visível a partir de qualquer ponto.

Dominada durante 400 anos pelos turcos, como parte integrante do Império Otomano, seguiu-se o protetorado da Inglaterra, cujo fim só foi decretado em 1960. Restou da época anterior uma considerável colônia turca e frequentes atritos étnicos. A ilha reivindicou e não conseguiu integração à Grécia, mas, após quatro anos de guerra civil e invasão pelo exército turco, com muito sangue derramado, acabaria por ganhar reconhecimento em 1974 como República de Chipre.

A parte grega é indiscutivelmente grega, pela língua, pela culinária, pelos hábitos, pela aparência física. Em meio à deliciosa comida grega, destacam-se produtos que já eram excelentes quando mencionados por Homero, como o mel, a onipresente coalhada de ovelha e cabra, o azeite de oliva, as azeitonas, o famoso queijo halumi, sem esquecer o vinho.

Chipre é um daqueles assentamentos do Mediterrâneo que já viram de tudo. Uma pedra esculpida no museu de Paleopafos acusa 6 mil anos de idade e por aí deduz-se o resto. Já foi colonizada pelos creto-micênicos, pelos fenícios, pelos assírios, pelos persas, pelos gregos, pelos romanos, pelos bizantinos, pelos egípcios, pelos venezianos. É anterior à guerra de Tróia e entre os episódios de sua história está a conquista por Ricardo Coração-de-Leão, quando capitaneou a Terceira Cruzada rumo à Terra Santa ali vizinha, vendendo-a depois aos Templários, que a repassaram aos franceses da casa de Lusignan, fundadores da dinastia cipriota que reinaria por séculos.

Hoje a ilha não tem rival para vilegiatura entre os europeus, que ali mantêm casas de veraneio, atraídos pela população amigável e cordial, bom clima, céu sem nuvens, mar alto de azul cobalto e praias de água verde esmeralda, belas paisagens áridas cobertas de oliveiras e do célebre pinheiro esguio e vertical, o cipreste, ali nativo como seu nome indica, e típico de todo o Levante. Flores cobrem as terras, onde se colhem figos e romãs – frutos imemoriais, já mencionados na Bíblia. Fartura de cítricos, até para exportação. Imponentes e numerosos sítios arqueológicos, incluindo anfiteatros com vista para o mar. Mas as últimas décadas assistiram à fulminante americanização, com McDonald´s e Starbucks por toda parte, e à afluência dos russos, agora tangidos de seu balneário predileto graças aos distúrbios na Criméia. Rica em minério de cobre, do qual deriva seu nome, explorado desde a Antiguidade, também é o nome de um perfume e o berço de Afrodite, além de ter sido palmilhada pelo apóstolo São Paulo, o evangelizador, sobretudo em Pafos. História é o que não lhe falta.

Hoje parte da União Europeia, a República de Chipre dá exemplo de avanço ecológico com sua adesão às fontes renováveis e não poluentes de energia. Campos de lindos moinhos eólios somam-se à abundância de tonéis brancos que cobrem os telhados dos edifícios, tocados a energia solar.

Em meio a esse paraíso, somos lembrados do caldeirão do Levante pelo som dos aviões decolando para ir bombardear o Estado Islâmico ali pertinho, a partir de duas bases militares que os ingleses conservam desde os tempos do protetorado. 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

5 Comentários

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  1. Depois de ler já comecei a

    Depois de ler já comecei a fazer as malas para ir ao Chipre. Ótimo texto. Já estive lá muito tempo atrás e a descrição corresponde ao que consigo recordar. Obrigado.

  2. Chipre, Falklands/Malvinas, ONU e Futebol

      Porque esta comparação ?

      Chipre é uma ilha pequena mas reflete um pouco das loucuras do século XX, ainda em ação, pois desde o Tratado de Zurique, promulgado em 1960, quando o Reino Unido declarou Chipre independente, a Inglaterra exigiu ( como forma de controle do Canal de Suez ) a manutenção de duas areas “soberanas” na ilha, sediando bases militares: Akrotiry e Dekhelya.

       Após a invasão turca de 1974, a ONU estabeleceu uma “nova” soberania – uma linha de aproximadamente 1,0/3,0 milhas de largura que atravessa toda a ilha, inclusive cortando a capital NIcósia ao meio, guardada por “capacetes azuis” da ONU, já há alguns anos os setores desta linha, são divididos: o 1. é argentino; 2. multinacional, mas com prevalência de tropas argentinas e britanicas, e engloba Nicósia, o 3. britanico, o 4. hungaro, eslovaco

        A sede do contingente argentino, o “Campo San Martin” (setor 1), é vizinho da sede do contingente britanico da UN, e varias vezes, no decorrer dos anos, alem de patrulharem juntos, britanicos e argentinos jogam uma bolinha, jogos em qque sempre as “Falvinas” são lembradas, inclusive o orgão do Minstério da Dfesa britanico que administra Akrotiry e Dekhelia, a SAB ( Sovereing Bases Areas), é o mesmo que é responsavel pela base da RAF nas “Falvinas”, Mount Pleseant.

         O tempo passa, séculos tambem, e o colonialismo do passado, ainda resiste.

  3. Mediterrâneo

    Excelente descrição. Recomendo a Sicilia também. Além de uma historia repleta, como Chipre, as belezas do Mediterrâneo e a excelente cozinha idem, neste momento a Ilha esta bem calma, sem bases militares, ao que me consta. Nem na mafia se fala mais. 

    1. Todas possuem

        Todas ilhas mediterraneas tem uma ou mais bases da NATO.

         1. Sicilia: ( 2 ) – Naval Air Station da US Navy de Sigonella, e parte do aeroporto Birghi, em Trapani, sede de um dos Comandos NATO de Alerta antecipado e vigilância, desdobrado da base NATO Geilenkirchen na Alemanha.

         2. Sardenha: NATO Air Base de Decimomannu – sede de um dos mais completos centros de treinamento em guerra eletronica da NATO, e um de seus “poligonos de tiro”, onde anualmente a NATO realiza o exercicio Eletronic Meet Warfare.

         3. Chipre: NATO RAF de Akrotiry e Dekhelia

         4. Malta: NATO – HAFMED ( Quartel General das Forças da NATO no Mediterraneo), em Floriana, mais a estação naval NATO/USN, cedida pela Royal Navy, no Porto de La Valleta, aliás o governo maltês, no inicio de 2014, exerceu pressão sobre a NATO/Conselho da Europa, para que o HAFMED  retira-se de seu território,  as negociações prosseguem.

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