Peça fundamental da dramaturgia de Plínio Marcos, “Quando as Máquinas Param”, escrita e dirigida por ele em 1967, ganha nova encenação, em cartaz no Teatro da Memória, em São Paulo, até 23 de outubro.
A ideia de remontá-la partiu dos atores Rodrigo Caldeira e Kelly di Bertolli. São eles que apresentam as contradições da vida de Zé e Nina, casal que habita um bairro da periferia de São Paulo e se vê mergulhado em uma crise depois que ele perde o emprego. “A peça mostra o quanto a relação de um casal é política”, aponta Bertolli.
“O texto impressiona pela quantidade de temas sociais que consegue abordar a partir da conversa de um casal. Fala de maioridade penal, de emprego, qualificação profissional e educação, de corrupção, de alienação, de indústria cultural”, enumera Caldeira.
No diálogo do casal operário, todas essas questões aparecem vinculadas a fatos do cotidiano, organizados, do início ao fim, em torno de um eixo principal: a procura de Zé por um emprego e as soluções planejadas após cada frustração nova. “Quando a peça começa, eles já atingiram seu limite. A máquina já parou e, por isso, também começamos imóveis. Eles já estão sem comida, sem trabalho, sem esperança. E isso vai piorando”, descreve Caldeira.
Confrontados com a recessão e o desemprego, Zé e Nina discutem alternativas para resistir: persistir na busca por um ganha-pão – em vez de perder tempo jogando bola com a garotada na rua -, aceitar a ajuda de parentes para obter trabalho e comida, ou mesmo recorrer ao sindicato para denunciar a maracutaia na seleção de candidatos para vagas abertas em uma empresa em Osasco. Nada parece funcionar. “É uma questão universal. Um homem pressionado a garantir a sobrevivência e sua mulher representando os desejos que todos temos de melhorar de vida e ter esperança. Mas é difícil ter esperanças quando o sistema é cruel e vai achatando, esmagando. Esse é um contraponto clássico”, define o diretor Leo Lama, filho de Plínio Marcos.
Conforme aponta Lama, o embate de um indivíduo frágil contra uma estrutura que supera em muito suas possibilidades confere caráter trágico ao texto. “O processo que Zé e Nina vivem culmina em uma tragédia anunciada, porque o sistema é feroz e cruel e, às vezes, não se consegue vencê-lo. Nesse sentido, é como Antígona: há uma lei [da qual não se pode escapar] e acontecerá uma morte no final”, compara.
Em “Quando as Máquinas Param”, a morte anunciada relaciona-se à expectativa de uma vida nova: no apogeu da crise, Nina revela sua gravidez, motivo de felicidade para o casal e de apreensão potencializada para Zé. O operário desempregado conclui que sua esposa deve fazer um aborto: “Quero livrar a cara dele dessa sacanagem de nascer pobre. Eu não quero que meu filho amanhã seja que nem eu, que só pego o pior”.
Ator em repouso
A montagem de Leo Lama dispensa cenário, adereços, efeitos de luz e uma movimentação ampla em cena. O que se vê são os atores praticamente imobilizados, dispondo unicamente da voz e da gestualidade da fala. É assim a metodologia do “ator em repouso”, desenvolvida pelo encenador desde 2006. “Essa perspectiva surgiu de um enfado em relação ao teatro com produções muito calcadas em efeitos e no excesso de linguagens no palco. Queria ver só o ator e seu corpo, de maneira a valorizar o texto e a dramaturgia. Assim foi surgindo uma linguagem poética”, explica.
O texto de Plínio Marcos, que prevê uma encenação naturalista – fundamentada na tentativa de reproduzir em cena a realidade direta da vida das personagens – entra em choque com a montagem predominantemente verbal, o que amplia os efeitos críticos. “Uma montagem naturalista pode dar uma conotação de texto velho. Na verdade o texto é velho, mas a condição do país também é velha. O próprio Plínio falava que suas peças estavam virando clássicos porque o país não muda”, analisa Lama.
O despojamento da cena exigiu redobrado esforço interpretativo dos atores, que procuraram em seu repertório pessoal de experiências e lembranças os elementos que os aproximavam dos dois trabalhadores. “Para nós, a realidade dos bairros operários é muito viva. Meu pai falava de forma muito parecida à de Zé”, explica Bertolli. Os atores fizeram mais de um mês de exercícios de laboratório para compor as personagens – uma imersão em que praticamente viveram juntos, passando o texto enquanto faziam tarefas cotidianas, como cozinhar e assistir a jogos de futebol na TV.
A montagem procura estabelecer-se, dessa forma, em um palco desnudado, por um lado, e em um desempenho consistente, por outro. “Quis afastar a questão do drama psicológico, já que não se trata apenas do sofrimento de um casal. É uma situação trágica universal. Não dá mais pra repetir a forma da choramingação de um sistema que é cruel. É preciso partir para outros lugares”, conclui Lama.
Trecho de Quando as Máquinas Param
Zé – Não vai dar pé, Nina.
Nina – O quê?
Zé – Essa jogada de eu ser motorista.
Nina – Não sei por quê.
Zé – Falta a grana.
Nina – Ora, que grana? O Zelito vai te ensinar.
Zé – Mas pra tirar a carta?
Nina – Minha mãe falou que empresta.
Zé – Não quero esmola. Ainda mais da sua velha.
Nina – Esmola, não. Dinheiro emprestado. Não sei por que você implica tanto com minha mãe.
Zé – Porque ela sempre me agourou. Acho até que fiquei assim de tanto ela me secar.
Nina – Você acha que minha mãe ia querer nossa desgraça?
Zé – Ela não queria nem que você se casasse comigo.
Nina – Ela só queria que a gente esperasse um pouco mais. Até você se firmar na vida.
Zé – A velha coroca queria era te fazer cansar de esperar. Se fosse esperar, até hoje a gente era noivo. Já íamos fazer bodas de prata de noivado. E nada de eu me acertar.
Nina – Não xinga a minha mãe, Zé.
Zé – Só estou falando a verdade. Ela que rogou praga na gente. Disse que eu não ia ser nada. Pimba, acertou na mosca. Praga de sogra seca até pimenteira.
Nina – Mamãe sempre gostou muito de você.
Zé – Claro! Porque eu dei fama de bidu pra ela. Me estrepei, ela está contente. Põe a boca no trombone pra anunciar: Não disse? Não falei? Não quiseram escutar, entraram bem.
Nina – A gente não está assim por culpa dela.
Zé – Estamos assim por minha culpa, então?
Nina – Minha é que não é.
Zé – Então é minha?
Nina – Não sei. Da minha mãe não é. (Pausa)
Zé – A culpa é da situação.
<Serviço>
Quando as Máquinas Param
Às quartas, às 20h30 (excepcionalmente, não haverá apresentação nesta quarta-feira, 18/9)
Até 23/10
No Teatro da Memória (Instituto Cultural Capobianco)
Rua Álvaro de Carvalho, 97 (metrô Anhangabaú)
Telefone: (11) 981 013 530
R$ 30
Produção: [email protected]
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