O apanhador no campo do sentido – Vol.10, por Gustavo Conde


Foto: Ricardo Stuckert

O apanhador no campo do sentido – Vol. 10

Por Gustavo Conde

[Continuação]

Lula gerencia os sentidos

Nada mais bem-vindo, portanto, que a leitura comentada de um fragmento de seu discurso, como reza a tradição ensaística. Tomemos um trecho que faz parte do primeiro comício pelas ‘Diretas Já’ em São Paulo, na Praça Charles Müller, datado de novembro de 1983:

“É bem verdade que, às vezes, falar não resolve nada. Mas se falar não resolve, ficar de cabeça baixa em casa resmungando com a mulher resolve menos ainda. Por isso, a gente vai continuar chamando todos vocês, todos em praça pública. Vamos mostrar a essas autoridades, vamos mostrar à opinião pública brasileira que nós, trabalhadores, que os intelectuais, que os pequenos empresários, que os profissionais liberais, e que os estudantes, e que as donas de casa, e que o movimento sindical, e que milhões de desempregados desse país, e que milhões de boias-frias, são muito mais fortes do que a força das metralhadoras, do que a força dos canhões. E vamos conquistar as eleições diretas nesse país. Pra acabar com a fome, pra acabar com o desemprego e pra garantir a cada um de nós o direito à sobrevivência, o direito a voltar a sorrir, o direito a voltar a conversar, o direito a encontrar com os companheiros.” 

Pontuemos, preliminarmente, características gerais de sua fala. Lula evoca, neste fragmento, um conjunto de questões importantes para o Brasil e para a América Latina de improviso, com precisão, memória e desembaraço. Vai enfileirando os dados, as necessidades comuns do povo brasileiro e o esgotamento da ditadura militar (é sua estratégia de organização do discurso).

Seu uso da sintaxe é único. Ele reitera argumentos através de sequências sintaticamente gêmeas e vai sobrepondo uns aos outros de maneira a formar um tecido coeso e linguisticamente consistente. Ou: o discurso de Lula transmite, através de sua organização sintática, um sentido de força. É trançado, é amarrado e ritmicamente reiterativo.

Essa reiteração que acelera e desacelera o discurso é uma das características mais interessantes da competência discursiva de Lula. Essa técnica tem larga tradição na prática da oratória, mas Lula a eleva à categoria de arte – e é claro que ele faz isso espontaneamente e de maneia inata, o que torna todo o protocolo ainda mais impressionante e impactante.

Observemos trecho a trecho:

“É bem verdade que, às vezes, falar não resolve nada. Mas se falar não resolve, ficar de cabeça baixa em casa resmungando com a mulher resolve menos ainda.”

Lula inicia sua fala, colocando em xeque o gesto mesmo de ‘falar’. Ele sabe e antecipa sua própria desconfiança dos protocolos de produção de sentido, respondendo a si mesmo antes mesmo de se lançar ao tecido argumentativo propriamente dito. Não é trivial.

Com esse dispositivo, ele ‘ganha’ a plateia. Ele se solidariza por antecipação às angústias existenciais de vozes outras que atravessam toda a audição dotada de pretensões persuasivas. Ele – ou sua máquina internalizada e espontânea de esculpir sentidos – sabe o que está fazendo, pois ‘forra’ a percepção do seu outro com cifras de assertividade, cumplicidade, antecipação e tom confessional, tudo isso em apenas uma frase.

É impressionante. Mas é, justamente, impressionante, porque assim é a fala do povo. A fala real e espontânea de um ‘espécime humano’ que nasce da coletividade e da profusão infinita de interações toma forma institucional com esta personagem épica, não apenas da política brasileira, mas da cultura brasileira.

Lula é maior que a política. Ele extrapola toda e qualquer classificação. É polifônico. É personagem e autor ao mesmo tempo. Como em Dostoievski, suas personas internas tomam corpo e assumem o discurso, produzindo um efeito coletivo que encurrala seu interlocutor ao mesmo tempo em que o seduz.

Sua fala avança e adentra o período seguinte: “Mas se falar não resolve, ficar de cabeça baixa em casa resmungando com a mulher resolve menos ainda”. Como enunciador, ele dispensa de maneira definitiva a tergiversação tão característica do discurso político. Ele opta pela franqueza. Mas não é uma franqueza tecnicamente impressionista: ele constrói esse efeito de franqueza com base nos valores linguísticos consagrados na cultura popular.

Qual seja: o exemplo pessoal e intrasferível, a saber, o relato de uma suposta rotina doméstica, cara a todos aqueles que levam uma vida simples de trabalhador.

Destaque-se aqui a fonte de tanta eficiência persuasiva: é sua própria vida e sua própria prática de vida que subsidia seu discurso político. Seus hábitos simples, conhecidos por todos, investem o período aqui arrolado de profunda legitimidade e caráter. Quem ouve Lula, sabe que ele vivencia, no seu dia a dia, exatamente aquele universo familiar das eventuais queixas domésticas paralisantes – que demandam atenção e espírito crítico.

A elegância da espontaneidade

É interessante lembrar, neste momento, a imagem de Lula carregando sua caixa de isopor na praia, ao lado de sua esposa Marisa Letícia. Essa imagem constitui parte da origem de seu sentido político. Ela é iconográfica e reverbera em toda a chave posterior de sua produção discursiva, configurando assim um poderoso tecido semiótico que subjaz a sua existência.

O fragmento da fala de Lula acima ainda traz outra informação importante. O sentido de ‘resmungar’ é relevante, porque é uma palavra de inserção popular. Lula tem o domínio dos registros populares – porque viceja no tecido popular – mas desdobra e gerencia esse uso de maneira cirúrgica, sem desperdiçar palavras e sem verborragias.

Eis um traço relevante na dicção de Lula: ele consegue ser elegante dentro da verbalização selvagem das ‘palavras de ordem’ sociais. O verbo de Lula é iguaria, não o feijão com arroz que ele tanto gosta, posto que estamos na dimensão da metáfora crítica – aposto que Lula diria “que iguaria ‘que nada’, eu quero meu ovo frito com gema mole”.

[Continua]

Aqui, os links do ensaio:

O apanhador no campo do sentido – Vol.1

O apanhador no campo do sentido – Vol.2

O apanhador no campo do sentido – Vol.3

O apanhador no campo do sentido – Vol.4

O apanhador no campo do sentido – Vol.5

O apanhador no campo do sentido – Vol.6

O apanhador no campo do sentido – Vol.7

O apanhador no campo do sentido – Vol.8

O apanhador no campo do sentido – Vol.9

O apanhador no campo do sentido – Vol.10

O apanhador no campo do sentido – Vol.11

O apanhador no campo do sentido – Vol.12

O apanhador no campo do sentido – Vol.13

 
Redação

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  1. A competência discursiva

    A competência discursiva de Lula tem fundamento em dois alicerces:

    A necessidade e a coragem.

    A necessidade profunda que a miséria evidencia

    A coragem de falar, apesar da fraqueza que a miséria traz.

      

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