O povo-nação brasileiro – parte 2, por Carlos Ernest Dias

O povo-nação brasileiro – parte 2

por Carlos Ernest Dias

Dando continuidade ao exame proposto sobre o livro “O povo brasileiro”, de Darcy Ribeiro, como se trata de empreitada longa e complexa, hoje abordaremos apenas o prefácio e a introdução ao volume, pois aí encontram-se importantes elementos que explicam a trajetória que o levou a escrever este precioso livro.

Penso que todos nós brasileiros devemos compreender a dimensão dos prejuízos causados pela sequência de golpes de Estado que pontuam a história do país. No caso específico do golpe de 1964, sob a falácia do “combate ao comunismo”, o Brasil sofreu incalculáveis prejuízos de ordem humana, cultural e intelectual no que diz respeito ao conhecimento e amadurecimento de ideias sobre sua história cultural. Especialmente no período entre 1950 e 1964, houve grandes avanços nos estudos e diagnósticos que poderiam ter resultado em desenvolvimento, e faz-se imprescindível recuperar essa história, pois a descontinuidade da reflexão, de geração para geração, é um fato já percebido, argumentado e publicado por diferentes intelectuais como Alfredo Bosi[1] e Roberto Schwarz[2], entre outros, e isso tem relação direta com os recorrentes golpes que o Brasil coleciona. Essa descontinuidade tem relação igualmente direta com duas perguntas atualíssimas formuladas por Darcy no prefácio ao livro, referindo-se ao golpe de 1964: 1) Por que, mais uma vez, a classe dominante nos vencia? 2) Por que o Brasil ainda não deu certo?

Talvez não seja necessário dizer que a trajetória de Darcy Ribeiro está intimamente ligada à do educador Anísio Teixeira. Anísio, depois de afastar-se da vida pública durante o Estado Novo, a ela voltou em julho de 1952, por designação do Ministro Ernesto Simões Filho, como diretor-geral do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos. Como resultado das ações desenvolvidas por Anísio no INEP, é criado em 1955, já no governo JK, o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, o CBPE, órgão de pesquisas do Ministério da Educação, no qual Darcy coordenou um amplo programa de pesquisas socioantropológicas. Nesse período, como ele nos conta no prefácio, é que ele começou a escrever “O povo brasileiro”.

“Eu o concebia, então, como síntese daqueles estudos, com todas as ambições de ser um retrato de corpo inteiro do Brasil, em sua feição rural e urbana, e nas versões arcaica e moderna, naquela instância que, a meu ver, era de vésperas de uma revolução social transformadora” explica ele. Em seguida o autor nos conta que as perguntas e inquietações acima citadas o levaram a escrever muito, no sentido de buscar “uma teoria geral, cuja luz nos tornasse explicáveis em seus próprios termos, fundada em nossa experiência histórica”.

Isso o levou a publicar “O processo civilizatório”, em 1968, pela editora Civilização Brasileira, e em 1970, “As Américas e a civilização – processo de formação e causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos”, também pela Civilização Brasileira. Inquieto e irrequieto, o escritor explica que, após a publicação, enxergou “os limites daquilo que alcancei em relação ao que buscava”, e passa a procurar “numa escala, nova, sincrônica, as teorias que necessitávamos para nos compreender”.  São elas, nas palavras do mestre:

“Uma teoria empírica das classes sociais, tais como elas se apresentam no nosso mundo brasileiro e latino-americano. Visivelmente, o esquema marxista aceito, sem demasiados reparos, no mundo europeu e anglo-saxão de ultramar, feito de povos transplantados, empalidece frente à nossa realidade ibero-latina”.

“Uma tipologia das formas de exercício do poder e militância política, seja conservadora, seja reordenadora ou insurgente (…) efetivamente, falar de liberais, conservadores, radicais, ou de democracia e liberalismo e até revolução social e política pode ter sentido em outros contextos: no nosso não significa nada”…

E finalmente, uma teoria da cultura, “capaz de dar conta da nossa realidade, em que o saber erudito é tantas vezes espúrio e o não saber popular alcança, contrastantemente, altitudes críticas, mobilizando consciências para movimentos profundos de reordenação social”.

Em 1971, publica, no México, alcançando seis edições naquele país, “O dilema da América Latina – estruturas de poder e forças insurgentes, pela editora Siglo XXI. Em 1978, é a vez de “Os brasileiros – livro I – Teoria do Brasil”, publicado antes no Uruguai, na Argentina e na França, e no Brasil pela editora Vozes.  Devo dizer ao leitor que neste livro, que segundo seu autor resume os corpos teóricos dos três anteriores, é que eu mergulhei e no qual eu fundamento minha argumentação, além, obviamente, de “O povo brasileiro”.

Ainda no prefácio, o escritor nos fala do volume “Os índios e a civilização”, publicado no México, na Itália e na França, o qual compõe, junto com “O processo…”, “As Américas…”  e o dilema…” os seus “Estudos de Antropologia da civilização”. Todos os livros citados, segundo o escritor, “são fruto da busca de fundamentos teóricos que, tornando o Brasil explicável, me permitissem escrever “O povo brasileiro”.

“Não se iluda comigo, leitor. Além de antropólogo, sou homem de fé e de partido. Faço política e faço ciência movido por razões éticas e por um fundo patriotismo. Não procure aqui, análises isentas. Este é um livro que quer ser participante, que aspira a influir sobre as pessoas, que aspira a ajudar o Brasil a encontrar-se a si mesmo”, revela Darcy, assim concluindo o prefácio.

Na introdução, o autor elenca suas premissas. Talvez a principal delas seja o processo que faz dos brasileiros “um povo novo” no mundo, “uma etnia nacional, diferenciada de suas matrizes, uma gente nova, um novo gênero humano diferente de quantos existam, num novo modelo de estruturação societária, uma forma singular de organização socioeconômica, baseada num movo tipo de escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial. Essa servidão, no entanto, faz também do brasileiro um povo velho, no sentido em que se conforma como um “proletariado externo”, que não existe para si mesmo, um provedor colonial feito para gerar lucros exportáveis para o mercado mundial”.

“Do ponto de vista da cultura e da sociedade, somos conformados como herdeiros de uma tradição civilizatória europeia ocidental, com coloridos herdados dos indígenas americanos e dos negros africanos, residindo aí a singularidade dos brasileiros em relação aos portugueses”.

A unidade étnica brasileira recebeu, segundo Darcy, três forças diversificadoras. A ecológica, a econômica e a da imigração, as quais “plasmaram historicamente” os “modos rústicos de ser dos brasileiros”, distinguindo-os como sertanejos (Nordeste) caboclos (Amazônia) crioulos (litoral) caipiras (Sudeste e centro) e gaúchos (Brasis sulinos), marcados mais pelo que têm de comum do que pelo que os distingue como resultado das três forças diversificadoras, somadas a outros fatores como a urbanização e a industrialização. Nesse sentido é que Darcy Ribeiro caracteriza o povo brasileiro como uma etnia nacional, um único povo, um povo-nação reunido num estado uni-étnico.

Embora considere a uniformidade cultural e a unidade nacional alcançadas como “único mérito indiscutível” das classes dirigentes, o autor ressalta que elas foram conquistadas através de “lutas cruentas” e da sabedoria política de muitas gerações, o que eliminou as identidades étnicas discrepantes e os movimentos separatistas através de um “continuado genocídio” e de um implacável “etnocídio” contra negros e indígenas. Esse processo opôs uma “estreitíssima camada privilegiada ao grosso da população”, fazendo com que as distâncias sociais no Brasil sejam mais intransponíveis do que as diferenças raciais, apartando os ricos dos pobres como se fossem castas ou guetos, explica ele.

Todas as condições aqui expostas fazem do povo brasileiro, segundo Darcy, um povo “constrangido e deformado”, que “pagou, historicamente, um preço terrivelmente alto em lutas das mais cruentas de que se tem registro na história, sem conseguir sair, através delas, da situação de dependência e opressão em que vive e peleja”, ao qual faltou e ainda falta “uma clara compreensão da história vivida”, e “um claro projeto de ordenação social, lúcido, que evite uma “explosão emocional”, que acabaria mais uma vez vencida e esmagada pelas classes dirigentes”.

Ligando os pontos com o início do post, penso que nós brasileiros precisamos entender que por trás da cena política, jurídica e econômica largamente propalada pelos meios de comunicação, o que está em curso atualmente, desde 2015, é mais uma “revolução preventiva” das classes dominantes, com sua velha obsessão pela manutenção da ordem e o seu igualmente velho “pavor pânico do alçamento das classes oprimidas”, como diz o autor de Maíra. É também um projeto “científico” de dominação cultural, educacional, científica e tecnológica, gestado em gabinetes, muito provavelmente nos EUA, que passa, sobretudo, pelo controle da educação, seja nas universidades ou no ensino médio, da ciência e da tecnologia, que são os pilares do neoliberalismo e do regime de predominância financeira ao qual estamos sendo conduzidos desde os governos FHC.[3]

Tal projeto proporcionará aos países do bloco ocidental anglo-saxão mais 50 ou 100 anos de dominação sobre o povo-nação brasileiro, mas não sobre as elites políticas, econômicas e jurídicas, que na atual jogada estão levando o seu quinhão como sempre levaram. Nesse sentido é que venho argumentando, nas trilhas de Darcy, Anísio e outros, que é imprescindível que nós, das classes médias, não nos deixemos calar e nos manipular, e que nos encarreguemos de elaborar, nas palavras de Darcy Ribeiro, o “claro projeto alternativo de ordenação social, lucidamente formulado, que seja apoiado e adotado como seu pelas grandes maiorias”, maiorias essas que são exatamente o povo-nação brasileiro, hoje dominado pela programação anestesiante da Rede Globo de Televisão


[1] BOSI, Alfredo. Cultura brasileira e culturas brasileiras. In: BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992 p. 308-345.

[2] SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração. In: Cultura e Política. São Paulo: Paz e Terra, 2009, p. 109 a 136.

[3] Silva Júnior, João dos Reis. The new brazilian university: a busca por resultados comercializáveis: para quem? Bauru: Canal 6, 2017.

Ilustração via Google, sem autoria reconhecida (aguardando autor para nova edição)

Redação

3 Comentários

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  1. Logo após o golpe, ainda

    Logo após o golpe, ainda perplexo com o surrealismo da situação, resolvi ler este livro do Darcy para tentar entender o porquê deste patético círculo vicioso que teima em assombrar a nossa história como nação.

    Se por um lado me senti mais esclarecido sobre diversos aspectos de nossa formação, pois o livro é escrito de forma simples e ao mesmo tempo acadêmica, por outro lado fiquei com uma estranha sensação de ter nascido numa região do planeta que muito dificilmente terá permissão para se emancipar como sociedade independente e soberana. 

    Os belos sonhos do Darcy e seu otimismo me parecem cada vez mais inalcansáveis…

  2. Sigo acompanhando
    Parabéns, professor, por estar levando o projeto adiante. No meu texto que você comentou, aquele sobre o Haroldo Costa e o Orfeu negro, destaquei um trecho de um outro artigo seu por achá-lo fundamental para qualquer debate político: “Ora, falar da crise econômica, política e institucional implica em não incluir o lado cultural e o lado intelectual, o lado do saber e do conhecimento, e implica também na exclusão do povo, o Povo-nação, o qual raras vezes participou assertivamente ou colheu os frutos e benefícios da criação do malogrado Estado-nação brasileiro e de suas instituições”.

    Queria continuar aquela conversa de algum modo e achei bom continuar a acompanhar sua produção aqui no GGN. Então destaria sua conclusão (no mais, conheço bem o livro e acredito que as zonas de povoamento, as distintas miscigenações no território brasileiro – mesmo essa divisão em cinco regiões – estão bem próximas do modo como Capistrano de Abreu compreendeu o povoamento do Brasil; algo olimpicamente ignorado pela intelectualidade e mesmo não mencionado pelo Darcy), ou seja, o que é de respeito às classes-médias. De fato, caso não fosse um desconhecimento tenebroso, mesmo em círculos dos mais bem intencionados, a respeito da formação de nosso país e de suas lutas históricas, não estaríamos passando por momentos que, se podem ser revertidos brevemente (numa perspectiva bem otimista), são no mínimo desnecessários. Se não fosse a colonização intelectual dessa classe-média, com certeza estaríamos dois passos à frente do futuro, e não os três ou mais passos atrás que demos nos últimos anos. Esse público, capaz de influenciar boa parcela da população por se tratar de professores, médicos e os mais diversos profissionais com papel de liderança, mesmo muito localizado (que seja), tem a capacidade de ser o guardião contra a invasão da turba, contra o espírito de ressentimento que pode se espalhar, de graça e de maneira difusa, por boa parte da sociedade. Logo, mais uma vez uma pontuação precisa a que você faz. Digo apenas que fico muito feliz por ver isso.

    Contudo, uma única ressalva: os aspectos culturais são relevantes para além da mera “análise política”; esses mesmos aspectos culturais são catalizadores da atenção das classes médias, hoje mudas e envergonhadas em boa parte. Sou historiador de profissão e o termo “social” é muito usado, principalmente por causa de influência francesa (como parêntese: nosso pensamento é um pensamento social, por isso dificilmente comparável ao que na Europa se chama filosofia, ainda que você veja, por exemplo, Guerreiro Ramos, dialogar de igual para igual com qualquer “mestre” alemão). A questão social, portanto, diz respeito a uma quadra de nossa história em comum como povos que compartilham uma história em comum. Falo das Américas e da Europa. Como o caso brasileiro tem relação com o Maidan na Ucrânia, algo que ocorreu simplesmente pelo fato do presidente eleito querer fazer acordos com a Rússia e não subscrever pactos com a União Europeia. Existe uma gênese comum entre as primaveras “de cor”. Aqui em 2013, lá em 2014. Isso se espalhou de maneira alarmente, e a américa do Sul e o Caribe sofrem suas consequências nefastas. Por outro lado, vê-se a mesma espécie de anti-política atingir o prórpio Estados Unidos, com uma campanha insidiosa para retirar o presidente eleito do cargo, a despeito de qualquer opinião pessoal que se tenha dele. O fato é que Trump negocia com a Rússia, com os chineses. Hillary Clinton pertence ao partido da guerra, tanto de Dick Cheney como de John McCain. É interpartidário esse partido. Para resumir, há uma histeria neomacartista nos EUA, no Brasil e em todo o Cone Sul. Para dizer o mínimo. Sem falar da situação da Europa junto com sua crise humanitária e social, a austeridade financeira e a crise dos refugiados, que teríamos que abrir um parágrafo à parte para comentar com detalhes. Isso tudo faz parte de um mesmo processo.

    Já que somos um povo com essa herança em comum, temos que ver os desdobramentos internacionais de tudo o que ocorre aqui. Somos um capítulo de um processo bem mais amplo, de uma etapa da história bastante dramática depois da euforia – súbita, hoje nos parece – que representou Chávez, Lula, Néstor Kirchner, o desenvolvimento chinês, etc. Essa a difícil quadra que passamos. Tentei esboçar algo sobre o tema numa texto republicado pelo Nassif aqui no GGN. Te deixo o link: https://jornalggn.com.br/blog/rogerio-mattos/de-lula-a-siria-um-novo-mapa-por-rogerio-mattos

    No mais, é exemplar uma publicação recente, aqui também, de Laurez Cerqueira, sobre o exemplo único, na doença, de Florestan Fernandes (https://jornalggn.com.br/noticia/lufada-de-etica-na-corte-por-laurez-cerqueira). “Em resumo” é isso. Sigo te acompanhando. Um abraço.

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