O que restou do modo de pensar nazi? Por Rubens Casara

As convicções de grande parte da população norte-americana eram muito próximas da visão de mundo dos alemães que aderiram ao nazismo

Mulheres fazem saudação a bandeira nazista na Alemanha dos anos 1930 (Foto: Gamma-Keystone/ Getty Images)

O que restou do modo de pensar nazi?

Por Rubens R. R. Casara

Da Revista Cult

Acreditar que os crimes e a barbárie nazista foram obras de monstros e loucos, de uma época e de um país distantes, é algo que conforma e tranquiliza as consciências. Todavia, não faltam sinais a apontar o equívoco dessa crença. Em importante pesquisa, publicada em 1950, Theodor Adorno, Daniel Levinson, Nevitt Sanford e Else Frenkel-Brunswild revelam que as convicções políticas, econômicas e sociais de grande parte da população norte-americana eram muito próximas da visão de mundo dos alemães que aderiram ao nazismo. Não se pode, ainda, ignorar a recepção calorosa que diversas personalidades de países como os EUA e o Brasil deram aos discursos e posicionamentos políticos de Adolf Hitler antes do início da Segunda Grande Guerra.

As convicções dos nazistas, compartilhadas por pessoas de diversas partes do mundo, iam ao encontro de preconceitos enraizados nas sociedades, bem como forneciam respostas simples (e, no mais das vezes, ineficazes) para medos compartilhados pela população. A crise econômica, a perda de status e a fome de parcela considerável da população serviam para dar credibilidade à leitura, distorcida pela lente nazista, de que o povo e os valores alemães estavam ameaçados por fenômenos tão distintos quanto a revolução francesa e o comunismo soviético, os comerciantes judeus e o direito romano. Não se pode estranhar, portanto, que tanta gente, dentro e fora da Alemanha, tenha acreditado que as medidas e posições políticas adotadas pelos nazistas eram não só naturais como também necessárias à sobrevivência. O resultado dessa adesão acrítica ao projeto nazista é conhecido (e lamentado) por muitos.

Todavia, não é preciso muito esforço para perceber a semelhança entre a ilimitação nazista e a rejeição do neoliberalismo a qualquer limite externo. De igual sorte, tanto quanto os atuais ideólogos neoliberais, os nazistas apostavam em cálculos de interesse e na “técnica” como parte importante de sua ideologia. Hoje, se substituirmos as ideias de “raça alemã” e “lei do sangue” por “tradicional família brasileira” e “moral brasileira” ou a demonização dos “judeus” pela de “esquerdistas”, “gays” e “lésbicas”, alguns discursos frequentes nos anos 1930 na Alemanha pareceriam estranhamente familiares.

Para além do crescimento de movimentos explicitamente neonazistas, há um grande perigo em ignorar o modo de pensar e agir que levou ao nazismo, o que dele ainda permanece nas sociedades contemporâneas e a forma como esse conjunto discursivo, normativo e ideológico é atualizado e reproduzido nos dias de hoje. Por evidente, não basta perceber o ridículo que se revela em performances escandalosamente copiadas da estética nazista, mas de compreender e desvelar o perigo que se esconde em discursos e práticas que partem das mesmas premissas, perversões e princípios que inspiraram os criminosos nazistas.

Do management

No recente (e polêmico) livro Libres d’obéir: le management, du nazisme à aujoud’hui (Gallimard, 2019), o historiador francês Johann Chapoutot revela que várias práticas de gestão neoliberal se desenvolveram durante o auge do III Reich. Ideias e exigências como as de flexibilidade, elasticidade, capital humano e performance estavam presentes nas diretivas de nazistas importantes como Herbert Backe. Backe, como muitos outros nazistas (e como muitos dos gestores e empreendedores de hoje), acredita que o mundo era uma arena em que tudo era válido para vencer.

O caso de Reinhard Höhn (1904-2000) é significativo. Jurista e intelectual tecnocrata à serviço do III Reich, Höhn alcançou o posto de general (Oberführer) e, após o fim da guerra, fundou o principal instituto de gestão da Alemanha, que acolheu ao longo de décadas a elite econômica e patronal do país.

Se é verdade que o conceito de gestão é anterior ao nazismo, não há como negar que durante os doze anos do III Reich as técnicas de gestão de recursos e de pessoal sofreram profundas modificações, que serviram de modelo para as teorias e práticas no pós-guerra.

Dos guardiões do direito

Na Alemanha, uma das questões que acompanharam o surgimento do partido nazista (e que consta do ponto 19 do programa do NSDAP) foi a da crença de que era preciso resgatar o antigo direito germânico para afastar os obstáculos criados pelo direito romano à grandeza da Alemanha.

Nesse contexto, surge a ideia do “guardião do Direito” (Rechtwahrer) em oposição ao “jurista”, um intérprete “fraco” atrelado à tradição do direito romano. Em apertada síntese, o “guardião do Direito” tinha a função de fazer coincidir o direito e a vontade do povo. O Direito na Alemanha nazista era apresentado como o direito que atendia à voz das ruas e “servia ao povo”, enquanto o guardião do Direito era o responsável tanto por atender a vontade do povo (muitas vezes expressa pelo Führer) quanto por fazer com que o afeto e o instinto, bem como a cólera popular diante de um crime, se tornassem vias de acesso à norma.

Hoje, é possível perceber nos diversos tribunais brasileiros esse confronto entre os juristas (que aplicam o direito a partir do reconhecimento da existência de limites legais, éticos, epistemológicos e até semânticos ao exercício do poder) e aqueles que se pretendem os novos “guardiões do direito”, intérpretes privilegiados da “voz das ruas” e que, não raro, buscam legitimidade a partir da manipulação de ressentimentos e cóleras populares. Não por acaso, juristas alinhados ao nazismo alemão, como Carl Schmitt, voltaram a ser citados com frequência na jurisprudência brasileira para fundamentar o afastamento de direitos e de garantias fundamentais em nome de um “interesse maior” (como o “combate à corrupção”, argumento que também era usado nas propagandas nazistas).

Conclusão

Uma das desculpas à inércia diante do agigantamento do Estado Nazista era a de que as pessoas desconheciam que aquele projeto político levaria ao holocausto e à destruição humana em escala industrial. Hoje, essa desculpa não pode mais ser usada.

Mais do que um projeto de poder, o nazismo pretendeu instaurar uma espécie de revolução cultural, como aparece no livro de Johann Chapoutot, La révolution culturalle nazie (Gallimard, 2017), ou seja, um modo de pensar e atuar capaz de naturalizar as medidas necessárias ao projeto e à visão de mundo nazista.

As ameaças, cada vez mais próximas, de retorno da barbárie parecem indicar que elementos desse modo de pensar e agir continuam presentes nas sociedades. Identifica-los é necessário para reagir à escalada autoritária.


RUBENS R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ e escritor. Doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-graduação da ENSP-Fiocruz. Membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano

Redação

3 Comentários

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  1. Vamos restituir a verdade. Como sou nascido e criado no estado do Rio Grande do Sul, tenho 66 anos, ui criado por uma tia avó que nasceu em janeiro de 1900 e convivi com a mãe dessa que deve ter nascido por volta de 1875 posso dar depoimentos que ultrapassam os anos anteriores a 1930 sobre nazismo e fascismo no meu estado que é conhecido como um dos estados com mais influência nazista e fascista do Brasil.
    Quando vejo documentos que dizem “Em importante pesquisa, publicada em 1950, Theodor Adorno, Daniel Levinson, Nevitt Sanford e Else Frenkel-Brunswild revelam que as convicções políticas, econômicas e sociais de grande parte da população norte-americana eram muito próximas da visão de mundo dos alemães que aderiram ao nazismo. Não se pode, ainda, ignorar a recepção calorosa que diversas personalidades de países como os EUA e o Brasil deram aos discursos e posicionamentos políticos de Adolf Hitler antes do início da Segunda Grande Guerra.” Que procuram por pura imitação igualar as convicções políticas, econômicas e sociais dos norte-americanos com as dos brasileiros, vejo mais uma tentativa de procurar trazer teses sociológicas desenvolvidas por Adorno e outros, para a realidade local sem a mínima razão científica.
    Existiam movimentos nazistas no Rio Grande do Sul, com fardamento, suástica e tudo que tem direito, porém estes movimentos eram restritos mais as regiões mais distantes da capital em pequenas cidades de colonização eminentemente alemã. Mesmo nos maiores centros, como a cidade de São Leopoldo e Novo Hamburgo, estes movimentos não tinham maior repercussão e chegavam a ser amplamente criticados por parte da própria burguesia de ascendência alemã.
    Havia no estado uma divisão social entre a burguesia de ascendência alemã, contra estes movimentos que eram configurados como movimentos de “colonos”, ou seja, uma espécie de discriminação impedia o desenvolvimento de outra. Várias famílias ricas de ascendência alemã preferiam até que seus filhos não apreendessem a falar alemão, pois ficariam com o sotaque de “colonos”.
    Já a burguesia de ascendência portuguesa, esta sim tinha uma grande parte que via de maus olhos a influência tanto do nazismo como do fascismo, pois identificavam como ideologias que empoderavam os imigrantes alemães e italianos coisa que ia contra a estrutura de poder local.
    Fica fácil a partir de discursos sem base nenhuma, tentar igualar o arianismo que era aceito pela alta burguesia norte-americana, com uma fração imensa de anglo-saxões com uma burguesia brasileira de origem portuguesa misturada com outras etnias. Porém acho que o autor poderia ter deixado o subjetivismo de lado e procurasse conhecer a burguesia brasileira, que certamente era racista, mas nunca chegando aos sonhos genocidas das burguesias alemãs e suas correspondentes nos outros países do norte da Europa.
    Devagar companheiro, generalizações e correlações esdrúxulas tiram por completo o valor do texto.

  2. Ao contrário do Maestri, eu concordo com o autor, de que estamos vivendo um movimento fascista no Brasil. Mas Maestri tem razão ao apontar diferenças de conteúdo. Isso acontece porque, no meu entender, o fascismo é uma forma muito plástica que assume vários conteúdos e é inerente ao capitalismo.
    Não acho, inclusive, que um dos contéudos do nazismo seja o neoliberalismo. Outros diriam que é o keynesianismo (racionalização administrativa). Na verdade, o fascismo pode se aliar aos dois.
    Procuro ententer melhor o fascimo, sua plasticidade e seu “núcleo duro” neste artigo:
    http://wiltoncardoso.blogspot.com/2020/02/o-governo-bolsonaro-e-fascista-o-que-e.html

  3. Troque raca por classe social e Alemanha por mundo, o discurso se torna um clone exato de quem tu defende sr autor. Forcou a barra de maneira insana para inverter a realidade.

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