Os Cabeça de Planilha e o futuro jogado fora, por Luís Nassif

Tanto no Encilhamento quanto no Real estavam presentes os economistas, como legitimadores de uma falsa ciência, de opções de desenvolvimento que beneficiavam apenas os grupos no poder.

Os cabeças de planilha como o pensamento político da era FHC repetiu os equívocos de Rui Barbosa

O texto abaixo é a Introdução que escrevi para o livro “Os Cabeças de Planilha”, de 2005. Nele, analiso as razões da tragédia brasileira pós-real, que matou a oportunidade de se construir uma grande economia.

Relendo o livro, encontro muitas situações descritas magistralmente no livro “O Poder e o Progresso: uma luta de mil anos entre a tecnologia e a prosperidade”, do Prêmio Nobel de Economia Daron Acemoglu e Simon Johnson.

Tanto no Encilhamento quanto no Real estavam presentes os economistas, como legitimadores de uma falsa ciência, de opções de desenvolvimento que beneficiavam apenas os grupos no poder.

Introdução

Em alguns momentos, na vida de uma nação, ocorrem terremotos políticos, geo­gráficos, que chacoalham estruturas sociais estratificadas, ampliam o mercado de consumo e de cidadania e, se bem aproveitados, permitem saltos históricos no de­senvolvimento de um país. 

A rigor, esse processo ocorreu três vezes no Brasil. O primeiro, no final do século 19. A Abolição e a política de atração de imigrantes criaram a oportunidade para o grande salto de inclusão social e de ampliação do mercado de consumo. Não houve políticas sociais de inclusão dos libertos; os imi­grantes não tiveram a posse da terra, demorando anos para acumular poupança e renovar os hábitos empresariais do país. Sem políticas de integração, em vez de novos cidadãos, se criou uma exclusão social que atravessou o século. 

A segunda grande oportunidade ocorreu no final dos anos 60. O processo de indus­trialização gerou rápida urbanização das cidades. Uma violenta seca no Nordeste provocou enorme processo migratório. Mais uma vez, políticas de inclusão social teriam parido uma nova sociedade, uma nova oferta de mão de obra especializada, um novo mercado consumidor. O regime militar nada fez. O resultado foi a deterio­ração dos serviços públicos e a criação das megalópoles, onde hoje em dia se con­centra a maior parte da miséria nacional. Depois, o esgotamento do “milagre” se deu pela falta de um mercado interno vigoroso. 

Com o plano Real, teve-se a maior chance da história, maior que o pós-Abolição, maior que nos anos 70. 

As conquistas tecnológicas das últimas décadas esparrama­ram-se por todos os setores. O avanço da logística e das comunicações implodiu a cadeia produtiva convencional das multinacionais. Elas passaram a distribuir suas fábricas pelo mundo e o Brasil seria o porto natural para os investimentos na Amé­rica do Sul. 

O fim da inflação, por sua vez, permitiu que milhões de brasileiros emergissem da noite para o dia para o mercado de consumo de forma indolor, sem movimentos migratórios traumáticos, sem crises políticas desorganizadoras. 

A explosão de consumo dos meses iniciais do Real atraiu os olhos do mundo. No final de 1994, havia projeções portentosas de crescimento da produção de bens de consumo duráveis e não duráveis, atraindo a atenção das maiores empresas do planeta. 

Por volta de 1994 fui entrevistado pela equipe de uma televisão finlandesa que pre­parava um especial sobre o Brasil. Estranhei o interesse de um país aparentemente tão afastado do Brasil quanto a Finlândia. A resposta do jornalista foi que o Brasil era a bola da vez. “Vocês, a China, a Rússia e a Índia”. O conceito do BRICs come­çava a se consolidar. Dez anos depois visitei a China. O que assisti em Xangai e Pequim foi inesquecível, o parto de uma potência. Esses dez anos haviam sido fundamentais para moldar o futuro da China. A lógica foi preparar uma espécie de projeto piloto de mercado, um mercado consumidor de 60 milhões de pessoas que serviam de chamariz inicial para o capital internacional. E 1,2 bilhão de excluídos como mercado potencial. À medida que os investimentos iam sendo realizados, integravam-se mais chineses ao mercado de consumo, criando mais atrativos para novos investimentos. 

No Brasil, o sonho acabou em abril de 1995. Um profundo desequilíbrio nas contas externas, intencionalmente provocado pela equipe do plano Real, impediu o país de continuar crescendo. 

Com as contas externas em frangalhos, o Banco Central preci­sou aumentar as taxas de juros de forma explosiva. Houve um cavalo-de-pau na economia. Seguiu-se enorme processo de quebradeira do setor público e privado, e de crescimento exponencial da dívida pública. 

O país foi dividido em dois: o país dos dólares – que enriqueceu rapidamente apli­ cando em títulos públicos – e o país do Real –que foi sufocado, sem acesso a cré­dito, sem condições de rolar seus passivos, pagando cada vez mais impostos para garantir a remuneração dos rentistas. 

Todos os alertas foram feitos já em 1994, mais ainda em 1995. Mas até 1999 se manteve intocada a política cambial. Depois, pelo segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso e pelo primeiro mandato de Lula, o BC continuou aplicando as mais altas taxas de juros do planeta. Mês após mês houve um refluxo do mercado, com os novos cidadãos voltando de novo para o limbo, para a zona cinzenta do baixo consumo e da baixa cidadania. Ano após ano o foi sendo queimada a oportunidade histórica de dar um salto no seu processo de desenvolvimento. 

Da mesma maneira que no início da República, com a política econômica implementada por Rui Barbosa que resultou no episódio co­nhecido como o “Encilhamento” – pesado jogo especulativo, primeiro com ações, depois com câmbio, que matou por quatro décadas as oportunidades de crescimen­to da economia brasileira. 

A vida de um país é formada por janelas de oportunidades. Elas permitem saltos, avanços, que, depois, vão sendo consolidados ano a ano, até o próximo salto, a próxima janela de oportunidades. 

São esses momentos que colocam à prova a racionalidade das elites. A passagem para um novo paradigma exige a superação dos esquemas de poder tradicionais, exige discernimento na implantação dos novos centros de poder, para evitar que os novos privilegiados imponham seus interesses sobre os interesses maiores de país. 

Se a acumulação de riqueza do período é canalizada para investimentos produtivos, o país se desenvolve; patina se fica rodando em falso, nos investimentos meramen­te especulativos. 

O que leva um governo, uma equipe de economistas presumivelmente preparados, a cometer erros bisonhos, facilmente detectáveis por seus contemporâneos, como foi o caso da apreciação do Real em 1994, ou da remonetização selvagem de Rui Barbosa em 1890? O que os leva a ignorar todos os alertas? 

A intenção desse trabalho é demonstrar as incríveis semelhanças entre os dois momentos cruciais, talvez as duas maiores janelas de oportunidade que o país já experimentou: a reforma monetária de Rui Barbosa, no alvorecer da República, e o Plano Real, no final do século 20. 

1. Ambos os momentos foram precedidos por intensas mudanças tecnológicas nos países centrais que, depois de maduras, passam a buscar os países periféricos. No século 19, as ferrovias, a iluminação a gás e outros avanços ligadas ao processo de urbanização que marcou o período.  No século 20, a Internet, as telecomunicações, os novos aparelhos eletrônicos,a computação. 

2. Essas descobertas criam a oportunidade para grandes movimentos especulati­vos, que induzem o sistema financeiro internacional à criação de novas ferramentas financeiras de captação de poupança. A especulação se dá pelo fato de que, sabe­-se que as novas invenções serão dominantes no novo mundo, mas não se consegue avaliar as vitoriosas e qual o prazo de consolidação e o ritmo de crescimento delas. Essa incerteza abre espaço para os grandes movimentos especulativos. No século 19, foram conhecidas as bolhas em torno de ferrovias, navegação a vapor e outros empreendimentos; no século 20, em torno da Internet, das telecomunicações. 

3. Nas duas épocas há uma aceleração dos fluxos de capitais no mundo. À medida que os movimentos especulativos crescem, bolhas são criadas, explodem, outras surgem. Quando os ciclos tecnológicos amadurecem nos países centrais, o grande capital volta os olhos para as economias emergentes. Passa a interferir no próprio processo político desses países, em busca do melhor ambiente para o grande capi­tal, que é o da pax universal. Em meados do século 19 esse movimento é iniciado pelos Rotschilds de Londres, comandando a Pax Britânica; no século 20 o movimen­to começa com a desvinculação do dólar do ouro, no governo Nixon, em 1972, ace­lera-se com o fim da União Soviética, e é comandado basicamente pelo Citibank, seguido dos grandes bancos de investimento norte-americanos. 

4. Para que esse movimento seja maximizado, há a criação de uma ideologia de defesa do livre fluxo de capitais, da interferência política nos países periféricos (pa­ra impedir a eclosão de guerra ou o não cumprimento de contratos), da cooptação de quadros técnicos, políticos e econômicos, como associados menores desse capi­tal. Esses quadros técnicos atuam especialmente em duas frentes: na regulamenta­ção da economia e na garantia de livre fluxo cambial. 

5. Tem-se uma paz duradoura no período, comandada pelo grande capital. A utopia fascina. Imagina-se que, à medida que os países centrais vão se desenvolvendo, os custos vão se tornando elevados, e o capital transbordaria para países periféricos universalizando o desenvolvimento. Bastaria, portanto, um ambiente favorável ao capital financeiro, livre circulação de capitais, que o desenvolvimento viria por si só. 

Em meados do século 19, a teoria em voga era a das vantagens comparativas. Ca­da país deveria se fixar naquilo que deveria ser sua vocação histórica – um princí­pio que condenava os produtores de matérias primas a se manterem assim até o final dos tempos. 

No final do século 20, vingou a teoria do capital externo como provedor de poupan­ça para os países emergentes. Bastaria criar as condições adequadas à sua atração, que o desenvolvimento se produziria automaticamente. Em ambas as ocasiões os emergentes que seguiram o receituário clássico torna­ram-se reféns de crises cambiais freqüentes. No final do século 19 representada pela quebra do Banco Bahrings, que provocou uma forte crise cambial na Argenti­na, rebatendo imediatamente no Brasil. No final do século 20, com o Brasil afetado sucessivamente pelas crises do México, Ásia, Rússia até explodir o modelo cambial no início de 1999. 

6. Em ambos os períodos, há a ampliação do processo de industrialização. No sécu­lo 19, com o capital inglês transbordando e permitindo a industrialização tanto dos EUA quanto da Europa. No final do século 20 com a implosão da cadeia produtiva das grandes multinacionais, em um movimento de implantação de grandes unida­des em alguns países-chave, particularmente nos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China). Mas, curiosamente, só crescem os países que não seguem as regras preconizadas pelas grandes potências. Quem se abre para o livre fluxo de capitais e de comércio, não consegue se desenvolver. 

Nos dois momentos já havia um conhecimento sis­tematizado sobre os passos dados por países que lograram alcançar o desenvolvi­mento. Mas esse conhecimento é sufocado pela atoarda ideológica dos que defendi­am o livre fluxo de capitais. 

7. Em ambos os momentos, o Brasil perde o bonde. No final do século 19 com o episódio conhecido como o “Encilhamento”; no final do século 20, com a apreciação do Real. Houve uma mesma lógica explicando os dois episódios e, em ambos os momentos, crises cambiais que ajudam a precipitar o desastre. 

Nos dois episódios, o processo-chave a ser desvendado é o da “remonetização” da economia. Isto é, o processo de injeção de moeda na economia de forma maciça, processo de reforma monetária que se repete poucas vezes na história e que confe­re a seus formuladores poderes discricionários. Se utilizados com sabedoria e patri­otismo, mudam a face dos países; se se deixam prevalecer os interesses individu­ais, matam por gerações as chances de desenvolvimento. É isso o que procuraremos sintetizar no próximo capítulo.

2 Comentários

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  1. Continuamos comandados por uma elite vira-lata. Meros feitores. Capatazes na melhor hipótese. E o dólar deles paga o nosso mingau, como disse Raul Seixas.

  2. O futuro não foi jogado fora, foi é um projeto de o Brasil ser sempre o país do futuro, sem futuro claro, Lula teve a oportunidade de reendustrializar o Brasil apartir do projeto da aepet, reendustrializando o Brasil através do petróleo e seus derivados, principalmente o gás, nunca foi feito e não será feito, depois veio Dilma e já sabemos… Porque falei apenas desses dois, simples, foram os únicos que prometeram, mas nada fizeram, hoje somos um pais que tem mais gente ganhando algum benefício, do que trabalhando com carteira assinada, porque não tem emprego, não tem mais uma indústria razoável. É não terá, e o que terá, mais polícia, porque Lula fará a loucura de transformar guardar em polícia,

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