A desigualdade financiou seu bem-estar

A desigualdade social no Brasil não foi, na história nacional, somente um dos males da sociedade contra o qual “governos ineptos” não souberam agir. Esta visão é ingênua. É preciso pensar a desigualdade a partir da sua triste positividade. Ela foi um importante pilar por sobre o qual se ergueram as elites econômicas e parte das classes médias (nenhuma novidade até aqui).

Sim, houve outros setores, como a burocracia estatal, também fomentador da desigualdade social no Brasil, sem dúvida, dado seu histórico de clientelismo. Mas como a montagem do nosso parque industrial-financeiro se deu sobre enormes e indecentes transferências de renda, perenizando um capitalismo feudal típico de nossa triste América Latina, as classes que surgiram em torno deste processo usufruíram largamente da desigualdade. 

INFLAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE PODER

É bom lembrar que a inflação brasileira sempre foi mais alta que a média dos países em desenvolvimento, justamente, porque ela operou como fator de concentração. Assim é que, desde a crise de 1929, ela passou a servir para financiar riqueza com pobreza.

Dois momentos marcam esta lógica perversa: JK, em sua aventura desenvolvimentista, sai de uma inflação de 17% ao ano para 35%; e a Ditadura Militar que, depois de festejar novo desenvolvimentismo, nos deixa o legado de mais de 200 % de teto inflacionário, quando a política de empréstimos internacionais a fundo perdido dá com os burros n’água.

A virada do Real é a compreensão de que outra forma de financiamento da riqueza brasileira teria que sair do gesto inflacionário, mas de novo via transferências suntuosas de renda, desta vez para o setor financista. Neste momento, surgem novos atores (autônomos e liberais), desta vez financeirizados. E, de novo, tributários da injustiça econômica extrema. E eis que chegamos aos 2000 como o segundo pior país na lista da desigualdade social. Não sem consequências terríveis, por exemplo, sobre os índices de violência que a todos assustam.

A REVOLTA DOS ABUTRES

Sem dúvida alguma, o processo de redução, ainda que tímida, da desigualdade vem desagradando demais setores que sempre usufruíram desta tragédia brasileira. Há sim um componente de abutrismo e não podemos negar. E este ajudou muita gente, como nós mesmos, a termos um mínimo de conforto. A questão é quem se incomoda de perder um pouco mais e quem resiste bravamente com palavras de ordem.

Gosto sempre de citar a empregada doméstica como um signo de ostentação para alguns grupos sociais: com 150 reais ao mês, se tinha alguém para nos servir de mucama, oito horas por dia, seis dias por semanas, fora as dormidas em solitárias construídas em “apartamentos casa grande”. Sobre quem pesava aquele luxo? Sobre a mulher negra, na maioria das vezes, ocupante do mais desprivilegiado estrato social. Agora não mais.

É esse processo de reversão que leva pessoas dos bairros nobres às ruas, inconformadas que estão com as mudanças estruturais na sociedade brasileira. É evidente que embala estes cânticos de nossas elites (nem tão elites, posto que a maioria é de remediados apenas…) a campanha sem tréguas da mídia, sócia do capital financeiro especulativo, a que Dilma teve o desplante de afrontar.

Espremida e tendo que disputar demandas (sim, a vida ficou mais cara, porque temos mais demanda sob um cenário de oferta retraído), muitos querem aquele mundo de volta: confortável, porquanto injusto. A bandeira da “retomada da desigualdade” tem pouca chance de passar. Qualquer que seja o governo. Mas a redução deste câncer brasileiro sempre pode estar ameaçada com governos aliados destes setores. Demos alguns passos. Mas é pouco. Somos os 20o mais desiguais do mundo. Sonho que ocupemos um dia vergonhosos 78o lugar. Como ocupam os EUA, tão invejados pelos novos inconformados.

Redação

6 Comentários

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  1. Muito bom, Weden. A revolta

    Muito bom, Weden. A revolta dos abutres! Esses tempos ouvi reclamação de que nos novas construções, os apartamentos não possuem mais o quartinho da empregada. Fico com tanta pena de nos brasileiros. A falta de conhecimento da historia ( de instrução adequada) é terrivel.

  2. A Vida é Sonho
    O quadro atual não é dos melhores, mas também não é o pior que já vivi, que não sei dizer qual nota mais baixa mereceriam: os 3 últimos anos do governo Sarney, todo o breve governo Collor, e o segundo mandato de Efeagagá inteiro. Não foram bons o período também breve de Itamar, nem os 4 primeiros anos de Efeagagá, mas os três inicialmente citados foram de longe os piores.  O que temos hoje é o acirramento de uma insatisfação de classe média alta, por razões exclusivamente classistas, pois com relação às últimas decisões econômicas do governo Dilma eles na verdade concordam, endossam, e até gostariam de radicalizá-las (quem sabe extinguir o seguro-desemprego? quem sabe extinguir a CLT? quem sabe extinguir a Lei Áurea?).  Mas agora não tem solução alternativa: é o golpe ou o golpe; na mídia e nas reuniões de classes dominantes não se fala em outra coisa, não se pensa em mais nada. Tentar melhorar o quadro político? Necas. A distribuição de renda? Muito menos ainda! O reconhecimento direitos trabalhistas que nada mais são que direitos humanos básicos? Eca!  Eu sistematicamente não viajo para a Europa todos os anos… Não cultuo a ideia de que lá é a civilização, enquanto nós somos a barbárie. Lá, a civilização está no lado de cima da moeda lançada pelo ar. No lado de baixo, a barbárie. Aqui é o inverso. Nós somos apenas o resultado em processo de um movimento que teve seu primeiro êxito com a viagem de Vasco da Gama. Ali assentou-se a globalização, para fins de domínio imperial. Do imperialismo econômico e colonial temos hoje o neocolonialismo financeiro, chamado de neoliberalismo.  Na Europa, o Estado do Bem-Estar Social, imprescindível ao confronto da via revolucionária e um dos elementos mais cordiais da Guerra Fria,  cooptou as massas, que passaram a fazer como, por exemplo, os suecos, que não se interessavam pela forma como a Saab extraía lucros da África do Sul, nem se no verão passavam as férias numa ditadura ibérica (Espanha). Interessava-lhes o próprio bem-estar. Eles, a civilização. Os demais, a barbárie, que bancava os privilégios de sua civilização. E continua bancando: as empresas suecas e europeias continuam a remeter lucros para suas matrizes à custa da exploração dos recursos naturais e humanos dos países subdesenvolvidos ou em perpétuo “desenvolvimento”.  Como não há como produzir, nas condições existentes, uma revolução mundial (e nem vou cogitar as barbaridades que uma revolução mundial produziria para combater a barbárie capitalista), os países da América Latina, Central, África e Oriente buscam apenas reformas para conseguir se contrapor aos processos de globalização, rompendo a dependência dos mercados internacionais capitaneados por meia dúzia de corporações financeiras.  É o que há.  O sonho revolucionário é apenas sonho e, voltemos então ao velho La Barca, “a vida é sonho, e os sonhos sonhos são”. 

     

  3. Gostei, Weden

    Muito bom o seu artigo, Weden, permita acrescentar: em 1837, o fazendeiro e escritor Carlos Augusto Taunay publicou um Manual do Agricultor Brasileiro no qual reconheceu que a escravidão era uma “violação do direito natural”, mas ponderou que “a geração que acha o mal estabelecido não fica solidária da culpabilidade daquilo que, pela razão que existe, possui uma força muitas vezes irresistível.” (Revista de História nº 137, p. 95 e segs).

    Hoje, a justificativa de Taunay provoca sorrisos, mas  quem debocha dele esquece os salários de miséria que pagou a seu pessoal, não assume a culpa pelo salário mínimo degradante de Castello Branco a FHC, não lembra o quanto se beneficiou com a concentração da renda no período. A desculpa só mudou um pouquinho, o culpado agora é o Sr. Mercado: “mas eu só fiz o que todo mundo fazia, paguei o que o mercado determinava!” É, diria Taunay ressuscitado, no meu tempo o mercado não pagava coisa alguma ao escravo…

  4. Um artigo para todos lerem e

    Um artigo para todos lerem e interpretarem a profundidade das palavras do autor.Esse creio ser o grande cancer do capitalismo e deverás da nossa pátria amada: A desigualdade Dia 15 de março os que querem e praticam essa desigualdade comandaram pessoas que sofrem dessa desigualdade a gritar em seu benefício.Desiguais na mesma praça de guerra, na mesma trincheira.É preciso dar educação para essa desigualdade.

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