A luta das pessoas com deficiência por representatividade, por Isabela Alves

Você já ouviu falar em capacitismo? Entenda do que se trata e por que é importante olhar para as pessoas com deficiência de uma maneira mais inclusiva. Conheça também histórias que mostram como a arte pode ser um caminho para a inclusão

Na imagem, da esquerda para direita, Amanda Lyra, Ariel Goldenberg e balé da companhia Circodança

do Observatório do 3º Setor

A luta das pessoas com deficiência por representatividade

por Isabela Alves

De acordo com o Censo 2010, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 45,6 milhões de brasileiros possuem algum tipo de deficiência. O número representa quase um quarto da população (24%).

Por definição da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, uma pessoa com deficiência é alguém que possui impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial.

É válido ressaltar que ao longo dos anos diversos termos foram usados para definir esse grupo social, sendo que muitos eram pejorativos.

Até o século XX, o termo usado era ‘inválido’, pois a sociedade da época via a pessoa com deficiência como alguém sem valor. Entre os anos 1960 e 90, foram usados termos como excepcional, especial, até chegar no mais conhecido: o deficiente”, explica Amanda Lyra, que é cantora, palestrante e ativista social.

De acordo com o dicionário, deficiente é sinônimo de falho, incompleto e que não é suficiente. Como uma maneira de combater preconceitos com o termo, a Convenção das Nações Unidas definiu que o correto é dizer “pessoa com deficiência”, pois ele esclarece que existe uma deficiência, mas sem inferiorizar a pessoa.

Lyra destaca que uma pessoa não deve ser reduzida apenas à condição funcional de seu corpo. Cada pessoa possui características que fazem dela um ser único. “Antes de qualquer coisa, a pessoa com deficiência é uma pessoa capaz de fazer as suas escolhas e viver como quiser”.

O que é o capacitismo? 

Amanda Lyra, de 30 anos, convive com a deficiência desde que nasceu. A jovem tem atrofia muscular espinhal proximal tipo 3 (SMA3), uma fraqueza muscular e hipotonia resultante da degeneração e perda dos neurônios motores inferiores da medula espinhal e do núcleo do tronco cerebral.

Ela trabalha com música desde os seus 16 anos e há 4 passou a usar a cadeira de rodas. Recentemente, ela também se tornou ativista pela causa das pessoas com deficiência. Lyra conta que desde que fez a transição para a cadeira de rodas passou a ser vítima do capacitismo.

Esse tipo de preconceito faz com que as pessoas com deficiência sejam enxergadas como fragilizadas e dependentes. “O capacitismo nos julga como incapazes e nos invisibiliza. Ele está presente desde a falta de acessibilidade nos lugares, até atitudes que supervalorizam uma pessoa, como, por exemplo, chamar alguém de ‘guerreiro’, só porque ele arruma a sua casa, toma banho sozinho e vai trabalhar”, relata.

Ela reforça que o preconceito contra as pessoas com deficiência está enraizado culturalmente na sociedade. Para exemplificar, ela fala do uso de alguns termos.

A expressão “amigo fura-olho”, usada para se referir a uma pessoa que traiu a confiança de outra, é uma maneira pejorativa de citar a condição das pessoas cegas. Outro exemplo é quando uma pessoa é chamada de “retardada”, pois o termo ofende pessoas com deficiência intelectual.

Quadro ‘Coluna Partida’, pintado em 1944, por Frida Kahlo

Muitos destes preconceitos contra as pessoas com deficiência (PCDs) ocorrem pela falta de conhecimento, pela falta de convivência com quem tem deficiência. A ativista explica que por isso é importante que exista maior representatividade de PCDs.

Lyra conta que uma de suas maiores inspirações foi a artista mexicana Frida Kahlo, sendo que a pintura ‘A Coluna Partida’ é uma de suas obras favoritas: “Quando eu assisti ao filme, eu chorei, porque assim como a Frida, eu também passei por um momento da vida em que tive que usar pinos e barras de ferro presos na coluna”.

Para ela, através da representatividade, as pessoas conseguem se enxergar e acreditar que o seu sonho é possível. Com isso, ela decidiu criar o projeto Solyra, que leva músicos e outros artistas para escolas com alunos com deficiência em Curitiba. Cerca de 1.500 alunos já assistiram aos concertos promovidos pelo projeto.

Por meio do projeto social, ela conseguiu inspirar diversas crianças e adolescentes. Uma em especial, chamada Bianca, começou a compor músicas e se tornou uma grande fã do seu trabalho. Durante a quarentena, ela gravou o vídeo caseiro e colaborativo ‘O que der e vier’, no qual a menina realizou uma participação especial. “Através da representatividade, a gente se enxerga sem se sentir uma estranha no ninho. A gente pensa ‘se ela conseguiu, eu também vou conseguir’ “.

A ativista diz que ainda há muito o que avançar. Ela ressalta que o Brasil tem como exemplo o cantor Herbert Viana, músico do Paralamas do Sucesso, mas é preciso incentivar outros artistas PCDs. Para melhorar ainda mais a inclusão, também é necessário tornar mais conteúdos acessíveis com legendas e tradução em libras.

“Na sociedade Espartana, as crianças com deficiência eram jogadas do penhasco. Depois, éramos trancados em manicômios. Ainda existem pessoas presas em casa por falta de informação. Pessoas que se olham no espelho sem conseguir se aceitar e por isso temos que trabalhar por um futuro melhor”, completa.

Amanda Lyra em um concerto (Arquivo Pessoal)

Filme protagonizado por artistas com Síndrome de Down

Imagem de divulgação do filme ‘Colegas’ (2013)

Ariel Goldenberg, de 39 anos, é ator, produtor e tem Síndrome de Down. Ele começou a sua carreira aos 10 anos, no teatro amador. O teatro, além de lhe ajudar com a leitura e a modelagem de corpo, deu-lhe a oportunidade de participar de diversos espetáculos, como ‘Romeu e Julieta’, do dramaturgo William Shakespeare.

Com a sua dedicação ao teatro, em 2013, ele foi escalado para a produção ‘Colegas’, filme de aventura e comédia dirigido e roteirizado por Marcelo Galvão. O filme conta de maneira poética as coisas simples da vida através do olhar de três jovens com Síndrome de Down que são apaixonados por cinema.

O personagem de Ariel, chamado de Stalone, é um jovem que sempre correu atrás dos seus sonhos, sendo que o maior deles era conhecer o mar. “O filme traz uma mensagem forte e importante para se diminuir o preconceito e também incluir pessoas com Síndrome de Down no mercado de trabalho”, diz o ator.

Ariel conta que uma de suas maiores inspirações para seguir esta carreira foi o ator estadunidense Sean Penn. Em 2001, ele protagonizou o filme ‘Lição de Amor’, que conta a história e os desafios de um pai com deficiência.

Como uma maneira de promover o filme internacionalmente e realizar o sonho de conhecer o seu ídolo, Ariel teve a ideia de criar a campanha ‘Vem, Sean Penn’, para que o astro viesse ao Brasil o conhecer. O vídeo da campanha teve mais de um milhão de acessos nos primeiros três dias após seu lançamento no YouTube e se tornou o sexto vídeo mais compartilhado do mundo na ocasião.

Sean Penn não veio ao Brasil, mas convidou Ariel para visitar sua casa em Los Angeles. “Nós batemos na porta dele e ele nos recebeu com um abraço. Ele é muito carinhoso e humilde. Fiquei muito contente por ter o conhecido, porque seu filme representa muito para mim. Fala sobre amor e esperança”, conta Ariel.

Ariel Goldenberg com os colegas de elenco Rita Pokk e Breno Viola

O filme ‘Colegas’ recebeu diversos prêmios. Entre os eventos em que ele foi reconhecido estão o Festival de Gramado, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o Festival de Cinema Latino-Americano de Trieste e o Prêmio Jovem Brasileiro.

Ariel ainda diz que conseguiu realizar esse sonho através do apoio dos seus pais. Para ele, quando uma criança com Síndrome de Down é incentivada da maneira certa, ela pode alcançar o máximo do seu potencial. “Pense duas vezes antes de gritar ou dar bronca na criança. É preciso ter paciência e cuidar com muito carinho”, diz.

Para o futuro, ele está envolvido na produção do filme ‘Colegas 2’ e também está produzindo conteúdos para o Instagram.

Assim como a arte, a deficiência não possui barreiras

Performance da Companhia Circodança (Imagem: Paulo Barbuto)

Suzie Bianchi, de 57 anos, é diretora e coreógrafa. Tornou-se dançarina aos 11 anos e aos 17 passou a ensinar crianças e adolescentes do seu bairro. Em um ano, ela já tinha 100 alunos e abriu uma escola de dança na rua de sua casa, em Campo Belo, São Paulo.

Depois de 4 anos, ela recebeu a sua primeira aluna com deficiência auditiva. A primeira coisa que pensou foi como a menina iria entender os tempos da música para realizar a coreografia. A professora colocou a caixa de som com o volume alto no chão de madeira e a menina sentiu a vibração. Desde então, mais pessoas com deficiência passaram a lhe procurar para fazer as aulas.

Atualmente, ela é diretora da companhia Circodança, que conta com pessoas cadeirantes, com Síndrome de Down, deficiência intelectual e autismo. “A deficiência não dita talento. Todas as pessoas são diferentes e possuem tempos e coordenações diferentes. É preciso olhar para cada aluno com um olhar único, independentemente da sua condição”, diz.

A companhia Circodança está trabalhando em dois projetos atualmente: o espetáculo ‘Vida de Circo’, que conta a história da cigana Laura através do universo circense clássico, e o ‘Conexões’, que fala sobre vida de um escritor em crise através da dança contemporânea.

Bianchi trabalha como professora há 37 anos. Ela diz que muitos de seus alunos chegaram a ser recusados em 8 escolas, sem contar que muitos que faziam as aulas nessas escolas na hora da apresentação não subiam no palco por conta da sua condição.

A primeira grande apresentação da sua companhia foi no Encontro Nacional de Dança (ENDA). Ao ver as bailarinas, a produção do festival também não queria que elas subissem no palco. “Na ficha de inscrição, não tinha nenhuma restrição, portanto elas iriam competir como qualquer outro bailarino. No fim, elas se apresentaram e foram aplaudidas de pé”, lembra.

Ela relata que outra dificuldade foi a questão do DRT, registro que regulamenta a profissão de bailarino profissional na carteira de trabalho. O local em São Paulo que emitia o registro era localizado em um prédio de 6 andares, sem nenhuma acessibilidade.

Com determinação, Bianchi e os outros alunos subiram os seis andares de escada com as pessoas cadeirantes no colo. “As pessoas ficaram surpresas quando chegamos. Dois anos depois, eles fizeram uma sala acessível para pessoas com deficiência”.

Ela acredita que ainda há muito o que avançar na questão de direitos, desde a acessibilidade nas ruas, até nos espaços culturais. Para ela, quando se pensa nessas questões, é preciso enxergar a acessibilidade para as pessoas idosas e mães com crianças de colo.

A sua companhia já alcançou diversos feitos, chegando a fazer apresentações até no Teatro Municipal de São Paulo. Bianchi acredita que a arte é um movimento de transformação que quebra todos os paradigmas. “As pessoas que têm preconceito, que acham que pessoas com deficiência não têm capacidade, estão cometendo um erro profundo. Quando realizamos o espetáculo, as pessoas não enxergam a deficiência, e sim o artista”.

Para o futuro, a companhia está produzindo uma websérie e um documentário. A professora também está procurando maneiras de se manter através da sua arte, pois afirma que não consegue apenas através das leis de incentivo.

Performance da Companhia Circodança (Imagem: Paulo Barbuto)
Redação

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