O preconceito versus a liberdade do Bolsa Família

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Jornal GGN – Já em maio de 2013, Walquiria Domingues e Alessandro Pinzani, professores de Filosofia da Unicamp e da UFSC, respectivamente, e autores do livro “Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania”, adiantaram-se: “seguem circulando na sociedade e na própria academia muitas visões negativas sobre ele [o programa] e até uma série de estereótipos e preconceitos que variavam da visão de que se trataria de nefasto assistencialismo, de esmola eleitoreira”, em artigo ao GGN.
 
E completaram: “ou até mesmo de um desserviço cívico, pois estimularia a presumida atávica preguiça dos pobres que, tradicionalmente, são considerados como uma espécie de subumanidade, como crianças grandes, que não possuem aquela razão prudencial que é função humana decisiva na vida em sociedade. De maneira nenhuma o Estado deveria lhes garantir uma renda monetária, pois não saberiam usá-la racionalmente. Podem ser objetos de política públicas, mas são considerados incapazes de ser sujeitos políticos em sentido próprio”.
 
E é com essa visão distorcida, bastante repercutida com a vitória de Dilma Rousseff sobretudo nos estados com populações mais cadastradas no programa, que se questionam a dependência das famílias a essa renda mensal. 

 
Ao longo de cinco anos, os autores do livro foram a fundo nos efeitos de autonomia dos cadastrados, seja em seus mais diferentes níveis – moral, econômico, político.
 
“O sociólogo alemão Georg Simmel, autor de uma Filosofia do dinheiro (1900), mostrou que o dinheiro possui dimensões liberatórias, porque introduz, mesmo em níveis mínimos, a capacidade de escolha e de desejos das pessoas. É dotado de fortes funções simbólicas, pois torna seus portadores “pessoas mais determinadas”, mais respeitáveis e respeitadas em um mundo dominado pelas relações mercantis; torna-as mais capazes de decidir sobre suas vidas, e, por isto, mais iguais as outras. Finalmente, libera os indivíduos dos vínculos pessoais de dependência econômica (da família ou de outras pessoas)”, explicaram.
 
O resultado desse longo período de pesquisa foi que a constatação de que, principalmente as mulheres, demonstraram que “a forma monetária do benefício lhes abriu fendas de liberdade pessoal que não conheciam antes. A miséria em que viviam lhes tolhia qualquer possibilidade de fruir alguma centelha daquela prerrogativa fundamental que é a liberdade mínima de projetar a própria vida”. “A miséria é uma tirania absoluta, neste sentido”, completaram.
 
De todas as entrevistas para o livro, uma afirmação em comum, presente sem exceção: “ao contrário do que um preconceito comum afirma, gostariam muito de ter trabalho regular e carteira assinada”. “As mulheres entrevistadas querem muito mais”.
 
Outras constatações da pesquisa surgiram. “Do mesmo modo que em algumas regiões brasileiras se pode observar em alguns casos atitudes novas diante da vida e da família (maior independência das mulheres perante pais, irmãos, maridos), também se pode notar que há certas atitudes que unificam comportamentos, em especial, diante dos filhos. Por exemplo, o dinheiro da bolsa tem prioridades, como comprar alimentos para suas crianças”.
 
Walquiria e Alessandro ressaltaram, contudo, que “toda a cautela e prudência são indispensáveis antes de qualquer assertiva categórica”. “Impactos morais e políticos de um determinado programa estatal sobre as pessoas constituem processos lentos, às vezes contraditórios e paradoxais (ao mesmo tempo que libera, o dinheiro traz consigo responsabilidade e, portanto, restrições à própria liberdade)”, defenderam.
 
Em entrevista ao Sul 21, em junho do ano passado, a pesquisadora mostrou sua postura de indignação com a reação negativa de brasileiros contra o programa. “Estas pessoas saíram da miséria absoluta, os índices de mortalidade infantil ficaram mais baixos e isto tem impacto fundamental para um país que se diz minimamente democrático. Conviver com a miséria como o Brasil conviveu por tantos séculos, mesmo depois do fim do regime militar, deveria ser um processo que mexe com todos os brasileiros”, afirmou.
 
E o reflexo do Bolsa Família se estende para a saúde. “A qualidade de vida destas pessoas melhorou e elas não estão mais adoecendo. Esta afirmação é algo constatada não só na minha pesquisa, que não é quantitativa, mas pelo IPEA (Instituto de Pequisa Econômica e Aplicada), IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), ONU (Organização das Nações Unidas), PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento)”, contou.
 
O interesse em focar as mulheres no livro é direto: elas são mais de 90% das titulares do Bolsa Família. A liberdade tão enfatizada por Walquiria pode ser resumida no seu testemunho de mulheres comprando batons para si mesmas pela primeira vez na vida.
 
E a independência, com relatos como: “este dinheiro é meu, o Lula deu pra mim (sic) cuidar dos meus filhos e netos. Pra que eu vou dar pra marido agora? Dou não!”, exclamou Maria das Mercês Pinheiro Dias, de 60 anos, mãe de seis filhos, moradora de São Luís, à pesquisadora em 2009.
 
Os efeitos foram tão fortes, enquanto acompanhou essas mulheres por cinco anos, que a socióloga chegou a confirmar o enfraquecimento do coronelismo e o rompimento da cultura da resignação.
 
“É muito diferente se o governo entregasse o dinheiro ao prefeito. A fraude é quase zero, o cadastro único é muito bem feito. Foi uma ação de Estado que enfraqueceu o coronelismo. Elas aprenderam a usar o 0800 e vão para o telefone público ligar para reclamar. Essa ideia de que é uma massa passiva de imbecis que não reagem é preconceito puro”, respondeu em entrevista à Folha de S. Paulo.
 
E em uma pergunta do repórter sobre por que é preconceito dizer que as pessoas recorrem ao programa para não trabalhar, a pesquisadora objetiva: “nessas regiões não há emprego”. 
 
“Essa cultura da resignação foi rompida pelo Bolsa Família: a vida pode ser diferente, não é uma repetição. É possível ter outra vida, não preciso ver meus filhos morrerem de fome, como minha mãe e minha vó viam. Depois de dez anos, (…) não tem mais o ‘Fabiano’ [personagem de Graciliano Ramos], a vida não é tão seca mais”, concluiu. 
 
Em outra entrevista à Carta Capital, a socióloga defendeu que o Bolsa Família não deveria ser um programa de governo, “mas uma política de Estado, assim como o salário mínimo”.
 
“Essa foi a primeira vez que a minha pessoa foi enxergada”, contou a ela uma jovem do sertão do Piauí.
 
Leia também: Porque o Bolsa Família é importante
 
Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

18 Comentários

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  1. E sobre os 0,25 a mais que o

    E sobre os 0,25 a mais que o governo resolveu dar para os ricos? ninguém tem nada a falar?

    Quanto custa o bolsa família em relação ao PIB?

    E o bolsa bamqueiro, quanto custa em relação ao mesmo PIB?

    1. Vc é burro e não conhece os programas do Fome Zero…

      Burro, vá estudar!

      Não vou citá-los, até porque não falo com jumento. Vá comer capim!

    2. E eram, Aliança Liberal.

      E eram, Aliança Liberal. Tenho absoluta certeza que, pelo menos neste ambiente, minha palavra tem mais credibilidade que a tua.

      Teu intuito é apenas confundir. Eu, não: dou testemunho como cidadão e como servidor de uma empresa estatal, Banco do Brasil, que, à exceção de dois anos na Ilha de Marajó, sempre trabalhou no interior do nordeste; especialmente no Ceará.

      Existia, sim senhor, só assistencialismo. E dos mais abjetos possíveis. O processo se inicia já no governo Juscelino quando da criação de frente de trabalho nas épocas de estiagem, gerando os chamados “cassacos”. No regime militar passou a receber outro nome: “frente de serviços”. Tudo passageiro e sob a completa mediação dos políticos locais e dos donos das propriedades que se apossavam da maioria dos recursos cadastrando “flagelados” fantasma. O que recebiam mal dava para comer. As obras somente de fachada: os famosos açudes “sonrisal”, aceiros de estradas vicinais construção de cacimbas, e por aí vai. 

      Foi no governo Sarney que começou um esforço, tímido, através dos famosos “vales”: vale gás, vale leite etc de mitigar a miséria. Fernando Henrique, à frente Dona Rute, deu sequência e maior amplitude em termos de beneficiários.Mas nada ainda de orgânico.  Pior: permanência das distorções que até então vigoraram, principalmente a instrumentalização assistencialista pelos políticos. 

      Foi com Lula que efetivamente se estruturou um programa com efetividade, ou seja, gerador de resultados. Suas críticas às políticas anteriores que hoje tomam de forma desonesta como contraditórias, não espelhavam apenas a realidade dos fatos. O dever dele como vítima desse sistema(vais negar isso também?) era denunciar e prometer um resgate. 

      Por não teres vivenciado essas experiências, Aliança, talvez nunca consigas avaliar o que efetivamente esteve e está em jogo.

      Dom Pedro II disse certa vez impressionado com a miséria dessa parte do Brasil: “Venderei até o último diamante para que nenhum cearense morra de fome”. Entretanto, cearenses e nordestinos continuaram a morrer de fome e/ou das sequelas da mesma.

      Lula não foi tão altissonante. Disse apenas no seu discurso de posse: ” No meu governo todo brasileiro terá direito a almoçar, jantar e merendar”. E foi o que realmente aconteceu. O Brasil saiu do mapa indigno da fome.

      A promessa de Dom Pedro finalmente se efetivara. Não por imperadores, duques, princesas, presidentes populistas como Getúlio, ou Juscelino. Muito menos por governos militares que podiam tudo; menos elidir uma mancha infame no tecido da nação brasileira.

       

      1. As respostas estão no video ,

        As respostas estão no video , não coloquei em vão.

        A assistência social é um processo continuo e sem fim.

        Observe, o bolsa familia NÃO é o maior programa de transferênvcia de renda do nosso país.

        O FUNRural e o LOAS estão a frente do bolsa familia quando se leva em conta o montante gasto.

        Bolsa familia é o mais abrangente. 

        Os governos petistas  tem seus méritos mas a propaganda é superdimencionada, o PT é mais propaganda que ações efetivas, NUNCA desce do palanque e campanha eleitoral o  tempo todo.

  2. Sem falar que Bolsa Familia não é custo, é investimento

    Veja, 30% do que o sujeito recebe de benefício volta para o governo já na primeira rodada de compras dele no mercado. Quando o mercado repões o estoqu, paga mais 30% sobre o valor de sua compra, mais retorno pro governo.

    E assim vai. Depois que o BF entra em circulação na economia, cada vez que ele troca de mãos o governo recebe 30% da transação.

    No caminho, vai gerando mais emprego, dinamizando o comércio e a economias locais, melhorando a qualidade de vida, promovendo a elevação dos salarios em mercados de trabalho sub-remunerados, como é o caso da maioria das regiões do NE, e ainda desestimulando o trabalho infantil e semi-escravo, també, frequente nas regiõs mais atrasadas.

    Contribui portanto para a redução das desigualdades regionais, diminuindo o fluxo migratório para centros urbanos já super povoados, reduzindo a pressão sobre a infra-estrutura urbana desses centros, já tão precaria.

    É um investimento social de altíssimo retorno, portanto. Incrível que ainda ouvimos esse discurso de esmola, um pouco de informação básica desmonta o discurso na hora.

    Acho que está faltando renovar a estratégia de comunicação do Bolsa Familia, do governo todo na verdade.

  3. O programa Bolsa Família,

    O programa Bolsa Família, como nada neste mundo, não é perfeito. Tem ainda distorções dado a sua amplitude e, como seria de se esperar, existir pessoas que dele se aproveita. Mas tudo dentro do aceitável; de uma margem na qual os benefícios superam em anos-luz  as disfunções pontuais.

    O que intriga, espanta e causa nojo, são os argumentos utilizados por alguns para desqualificá-lo. A lista começa pelas puerilidades, a exemplo do vaticínio de que “vai viciar os beneficiários”, para terminar em avaliações pretensamente racionais, mas que na realidade só camuflam preconceitos, como debitar ao programa eventual carência de mão-de-obra para trabalhos braçais ou que demandam pelos de menos escolaridade e formação profissional. 

    No meio, os infames, os “escravocratas” erustidos, os fascistas reacionários, que cobrem com pechas de “vagabundos” e “preguiçosos” os beneficiários do programa. Muito deles, se não todos, sonegadores de impostos; tomadores de recursos emprestados dos bancos públicos à juros subsidiados para depois desviá-los para desfrute próprio;  exploradores de expregadas domésticas;  adeptos da servidão no campo; nascidos e criados numa sociedade determinista em termos de oportunidades e dignidade de vida só para uns poucos, restando a miséria e a indigência para a maioria. 

    A contrário da voz corrente, não comungo com essa proposta de tornar o Bolsa-Família um “programa de Estado”. Tanto por se tratar de uma redundância(todo programa de governo deve ser do Estado),  como trazer no seu âmago uma espécie de conformismo com a permanência dos fatores que ensejaram a sua criação, no caso a miséria absoluta. 

    Nada disso. A pobreza absoluta deve ter prazo para terminar: pode ser amanhã, daqui a um ano, dez anos, não interessa. Nenhuma nação que se dê a respeito deve permitir nem resquícios da iniquidade. Nesse sentido,  o Bolsa família deve ser sempre encarado como provisório. Mas não no sentido de se restringir à políticas apenas mitigadoras e não contar com as chamadas “portas de saída”. Nada disso. Deve ter como presente que seu ideal, sua culminação, será o dia em que “morrerá” por falta de público-alvo.

    Não devemos confundir pobreza com miséria. Esta inconcebível; aquela contigencial.  

     

     

  4. tão natural lhes parecia…

    que muitos nem sabiam o que era miséria;

    com Lula, ou a partir do momento em que a miséria deixou de ser herança, souberam

    descobriram que não era uma coisa natural, revigoraram-se e partiram pra luta mais confiantes

  5. O PT faria um bem enorme ao

    O PT faria um bem enorme ao Brasil e a si mesmo se fizesse um esforço para divulgar mais a importância desses programas de renda mínima. Existe ainda um preconceito cavalar quanto ao Bolsa Família, alimentado, difundido e defendido por pessoas absolutamente incultas e de visão estreita.

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