A Rússia muda a orientação da política externa

Enviado por Ruben Nauer Naveira

Do southfront.org

A Rússia muda a orientação da política externa

Original por Andrey Bortsov publicado em politrussia.com (traduzido do russo para o inglês por J. Hawk)

Traduzido do inglês para o português por Ruben Bauer Naveira

Na XXIV Assembleia do Conselho de Política Exterior e de Defesa em 09/04/2016, o Ministro das Relações Exteriores da Rússia Sergey Lavrov declarou abertamente que o país vem adotando um paradigma policêntrico para sua política externa:

… pode-se observar as tendências gerais, e nós estamos buscando refleti-las nos nossos documentos doutrinários básicos, incluindo a Estratégia de Segurança Nacional e o Conceito de Política Externa, cuja nova edição nós estamos no momento desenvolvendo por requisição do Presidente Putin.

De modo abrangente, nós estamos testemunhando um prolongado período de transição rumo a uma arquitetura policêntrica. Nós não estamos extraindo essa conclusão da nossa agenda, o que nós estamos é constatando numerosas confirmações dessa tendência avançando. A transição para um resultado policêntrico a longo prazo deve assentar-se na colaboração entre os principais centros de poder no interesse da resolução conjunta dos problemas globais. Esta visão é partilhada por muitos países, ainda que, assim como nas fases históricas anteriores, inexista automatismo na política internacional. Não há nenhuma garantia de que a mudança será para melhor. Mesmo no caso em que a ideia de um mundo multipolar venha a receber suporte universal, a sua implementação será extremamente difícil e complexa, porque implicará assumir níveis sem precedentes de responsabilidade, visão estratégica e vontade política. Mas, sob circunstâncias pelas quais a ideia de estabelecer-se parcerias com direitos iguais de modo a garantir uma efetiva governança global vem se defrontando, para ser franco, com resistências por parte de nossos parceiros no Ocidente, os obstáculos são ainda maiores. Uma vez que é este o caso, eu preferiria prosseguir sem a presença dos nossos amigos da imprensa”.

Naturalmente que a política exterior da Rússia tem estado consistentemente perseguindo o paradigma da política externa policêntrica, mas esse foi o primeiro anúncio oficial e aberto dessa mudança. Mais ainda, a referência à necessidade de discutir o assunto sem a presença dos jornalistas é bastante reveladora. Diplomacia é uma arte refinada: já é possível falar-se francamente de uma orientação policêntrica, mas ainda não é possível dizer-se abertamente que é Washington que está rigidamente contra ela, porque de fato não deseja perder o status de “rei da montanha chamada democracia”.

As ações da Rússia em diversas ocasiões expressaram a sua disposição e habilidade em proteger os interesses nacionais. A retomada da Criméia foi o evento chave. Lembram-se de como o Ocidente reagiu? Não se trata nem mesmo das sanções, mas da reação reveladora da embaixadora americana junto às Nações Unidas Samantha Power: quando a Rússia fez uso do seu poder de veto para bloquear uma resolução de não-reconhecimento do referendo na Criméia, ela literalmente se atirou sobre Vitaly Churkin dizendo coisas como “a Rússia não tem o direito de esquecer que não é um dos vencedores mas sim um dos perdedores”, “a atitude de Moscou é ultrajante porque Moscou está humilhando os Estados Unidos ao nos chantagear com armas nucleares”. É a histeria que conta, não o posicionamento real.

Atualmente a Rússia vem provocando histeria em Washington muito regularmente, só que isso não aparece na TV. Nós colocamos ordem na Síria sem um voucher de autorização americano, e não ficamos atolados por lá, mas nos retiramos no momento certo. Pode-se imaginar o quanto duplamente ofendidos eles devem estar?

É também revelador que, quando os políticos americanos relacionam as ameaças ao reduto da liberdade, a lista pode variar: terrorismo, China, até mesmo o ebola foi mencionado uma ou duas vezes, enquanto que a Rússia é membro permanente dessa lista. Então agora Sergey Lavrov declarou oficialmente: a Rússia vai perseguir abertamente a criação de um sistema político internacional policêntrico, de modo oficial e com base em documentos estratégicos apropriados. A partir de agora ações contra a Rússia serão também ações contra o conceito de mundo multipolar. Uma vez mais, nada disso é novidade, mas nada disso havia sido declarado abertamente até agora.

Obama faz a publicidade do seu país:

Os Estados Unidos têm muitas cartas na mão. Nós somos objeto de inveja do mundo inteiro. Nós possuímos as forças armadas mais poderosas do planeta. A nossa economia é atualmente mais forte do que qualquer outra economia desenvolvida”.

E antes disso ele já havia dito:

Nós não seremos capazes de conseguir nada se nós não tivermos a mais poderosa força militar no mundo e se nós não torcermos frequentemente o braço de países que não queiram fazer aquilo que nós necessitamos que seja feito, pelo emprego uma variedade de meios econômicos, diplomáticos e eventualmente militares”.

Mas o Financial Times já está admitindo que:

A fé do Ocidente na democracia americana foi severamente abalada nos anos recentes”.

A chefe do Grupo Moscou-Helsinque [nota do tradutor: trata-se da mais importante ONG de direitos humanos da Rússia] Lyudmila Alekseyeva chegou mesmo a lamentar pelo presidente americano:

Os Estados Unidos estão numa posição difícil, porque estão rapidamente perdendo o seu excepcionalismo político”.

Os “pólos” da geopolítica já existem. São, naturalmente, os Estados Unidos. Eles também estão tentando pressionar a Europa, cujos “movimentos de libertação nacional” estão rapidamente crescendo. Afora a Rússia há também a China que está até mesmo começando a discutir a possibilidade de uma aliança militar com a Rússia [comentário do tradutor: a China estaria “começando a discutir” uma aliança militar tornada pública, porque, secreta, muito possivelmente já exista].

Os Estados Unidos ainda veem o seu maior inimigo como sendo a China em vez da Rússia por causa do seu hábito em ver o poderio econômico como sendo o fator chave. Esse é um erro grave. A China, sem abandonar o seu papel de centro de poder geopolítico, tem tradicionalmente preferido irradiar a sua influência pelo uso de métodos econômicos, de outro modo a sua cultura é de auto-contenção. Mas a Rússia agora está propondo nada menos do que um novo projeto civilizacional que poderia servir como uma alternativa ao projeto encabeçado pelos Estados Unidos. Se o método dos Estados Unidos é obrigar a todos a se submeterem à força, a Rússia está estabelecendo parcerias que levam em consideração os interesses de todos.

Se alguém fosse descrever o projeto civilizacional da Rússia em apenas duas palavras, estas seriam justiça e liberdade.

Se o projeto do Ocidente puder ser descrito como “se, formalmente, estiver em conformidade com a lei, então é justo”, para os russos justiça é mais importante do que formalidade. O conceito de justiça é culturalmente dependente, em vez de universal. Para a mentalidade russa, justiça implica o respeito ao trabalho honesto das pessoas para o bem delas e do seu país, ao passo que se rejeita a especulação, a extorsão e a auto-glorificação, ao contrário do modelo do Ocidente.

Uma outra diferença é: um Estado paternalista pode ser considerado justo, sendo ao mesmo tempo suficientemente forte, ao contrário da interpretação liberal. Somente esses dois exemplos já demonstram as diferenças sistêmicas entre os projetos da Rússia e do Ocidente.

A liberdade é o segundo componente singular. De acordo com a compreensão ocidental, a liberdade pessoal implica ver os demais como obstáculos que se interpõem no caminho da “liberdade absoluta”, enquanto que a interpretação russa vê os outros como potenciais aptos a propiciar que o propósito em comum seja perseguido de forma bem-sucedida.

Esses dois conceitos tornam o projeto civilizacional russo diferente dos demais. Os russos nunca se consideraram parte nem do Oriente nem do Ocidente. Ao passo que existe uma diferença étnica visível em relação ao Oriente, os europeus jamais aceitaram os russos devido a essas diferenças de mentalidade. Da mesma forma, não se pode considerar o esforço de inculcar valores liberais na Rússia como bem-sucedido: ainda que a maior parte da mídia difunda os valores liberais, as massas os rejeitaram no nível subconsciente.

A Rússia requer um projeto civilizacional independente, sem o modelo civilizacional liberal a ela estranho, um modelo de desenvolvimento independente baseado em justiça e liberdade, uma comunidade social baseada na ajuda mútua e na cooperação em vez de uma atomizada. É isso o que o Ocidente está tentando evitar: à medida que valores estrangeiros são impostos à Rússia, ela pode ser roubada e fragilizada enquanto um ator internacional. Quando ela possui um caminho independente de desenvolvimento, a balança global de poder se inclina contra o Ocidente.

Portanto, é encorajador ver a orientação em favor da multipolaridade sendo refletida em documentos estratégicos chave. Não obstante, deve-se ter em mente que há que se estabelecer a ordem não apenas no exterior mas também na política doméstica. Naturalmente que isso seria tema para outro artigo, mas aqui eu cito Fyodor Lukyanov, que ocupa a presidência do Conselho de Política Exterior e de Defesa:

Nossa política exterior e de defesa acaba de alcançar o mais alto patamar de maestria profissional. Nós não dispúnhamos disso há cinco anos. Mas tudo isso pode ser posto a perder pelas fragilidades econômicas da Rússia. Nem mesmo os diplomatas mais profissionais poderiam compensar a falta de uma política econômica coesiva”.

[Observação final do tradutor: vai-se tornando cada vez maior a chance de uma guerra entre americanos e russos em futuro próximo].

Redação

8 Comentários

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    1. O Brasil
      Para constar de qualquer plano, precisa de um governo que represente seu povo.
      Mas acabou de acontecer Um golpe. O novo governo representa quem?

      O Brasil, não é um país ainda porque não fez sua bastilha, seu paredão, sua limpeza ou o nome que vc queira dar. Todos fizeram!

      1. Concordo contigo, mas daí

        Concordo contigo, mas daí entramos no impoderável. Está ficando evidente para muita gente que só sangue libertará o Brasil. Quem quer ficar pra ver?

         

         

  1. Na Russia existe um ditado

    Na Russia existe um ditado que diz que Deus gosta do número três, os russos já destruiram dois impérios tirânicos, o de Napoleão, de Hitler e agora dos yankees.

  2. Acredito estar implícita …

    A citação ao Brasil.

    A criação dos BRICS veio de encontro à essa “nova” visão russa sobre a concepção de influências no mundo.

    O Brasil se inseriu, de forma inédita, num contexto de protagonismo mundial.

    Embora, o presidente Obama tenha chamado Lula de “O cara”, essa ação brasileira não alinhou com os interesses norte-americanos.

    Essa ida sistemática de políticos e ministros do judiciário aos “States” descortina, sem dúvida, o desalinhamento que será proposto pelo “novos gestores” do Brasil, que deverá culminar com sua saída desse banco multinacional de desenvolvimento e voltando para debaixo do guarda-chuva americano, guarda-chuva esse que não proteje, mas, expõe o Brasil a uma dominação nortista. 

    Assim, rei posto, veremos uma mudança radical na política diplomática do Brasil, voltando ao que há anos os golpistas bicudos tem desejado.

    Vamos voltar ao papel de coadjuvante mundial, bem ao gosto de nossos irmãos vira-latas, que latirão para a lua.

    1. é a geopolítica

      é muito mais barato pagar merrecas a esses quinta-colunas do judiciário e legislativo do que se envolver numa guerra quente contra um país de 200 milhões de habitantes.

      depois da china e vietnam, o imperialismo ocidental deu-se conte de que uma guerra quente com paises populosos é economicamente inviável.

      a lição de casa para o brasil é a mesma feita pela rússia nos anos trinta: expurgo e aniquilamento físico da quinta-coluna local.

      quando a wehrmacht entrou na urss não encontrou nenhum adepto para saudá-la e, por isso, saiu de lá aniquilada, diferentemente do que aconteceu na frança, 4 anos antes, e então “o único exército capaz de se opor ao exército alemão”, mas conquistada e dominada em 34 dias.

      os eua insistiram no modelo nazista de domínio, sem dar-se conta de que o antídoto a ele, muito simples, resume-se à eliminação das quintas-colunas locais.

      a ruptura institucional que se avizinha será uma boa oportunidade para o brasil extirpar seus cânceres.

  3. Moscow – Helsinky Group

        Lyudmila, exilada durante anos no Ocidente, detesta a atual politica russa, e teria ficado bravinha com Obama e o Ocidente ( NATO ), pela pouca pressão exercida por estes entes politicos quanto as politicas de “manutençaõ da continentalidade eslava” assumidas por Putin.

  4. Trump é a cara do excepcionalistão
    Depois de derrotados e destruídos na Segunda Grande Guerra, o Japão e a Alemanha se reergueram e tornaram-se a vanguarda do desenvolvimento sócio-econômico do modelo que lhes foi imposto. O mesmo está a se passar agora com a Rússia, só que de forma mais engenhosa, a partir de uma clivagem endógena, com rigoroso teste de resistência e adaptação de suas antigas estruturas sociais.
    É comum que os neófitos se tornem depuradores e agreguem novos elementos aos sistemas estagnados pelo próprio sucesso. Poucas transformações são exigidas dos vencedores que capitanearam os respectivos ciclos históricos, até que a inexorável inundação da prepotência e dos vícios cale a retórica anacrônica de valores ultrapassados. É sempre assim, um novo advento (descobertas, invenções, catástrofes etc.) altera o sistema de valor e impõe uma nova ética (a moral é o resquício das transformações éticas ao longo do tempo), que, por sua vez, necessita de uma nova estética para ser difundida. Esse é o papel da arte, expandir as linguagens para transmitir os novos conceitos. Por isso os ciclos dos movimentos artísticos se entrelaçam aos ciclos econômicos e políticos.
    O impasse colocado pela superoferta deflacionária nas economias mais desenvolvidas exige que se encontrem mecanismos que possam sustentar a estabilidade social. A resposta política à superprodução tem sido ceder soberania em troca de novos mercados. Mas se para a Alemanha e o Japão a cedência de soberania deixou de ser um obstáculo após a Segunda Guerra, e o colapso da União Soviética ajustou o alcance de Moscou, para a moral anglo-saxônica, que se confunde com os quatrocentos anos da Modernidade, essa opção apresenta uma forte carga dramática, com reflexos em todo o planeta.
    A maior característica estética da modernidade foi a linguagem massificada inaugurada pela prensa de Gutemberg. Toda a periferia se calou para que as conveniências do centro replicassem o cartesianismo como a estrutura do pensamento global, a despeito dos limites orgânicos do planeta. O discurso da certeza científica sucedeu o medieval, da verdade religiosa, e concedeu à racionalidade acadêmica o direito de se imiscuir nos mais recônditos cantos da Terra, comprometendo-os em escala. O interesse econômico da superpotência estabeleceu os parâmetros para a exploração de todos os recursos, ao mesmo tempo em que definia a verticalização da hierarquia cultural. Os sinais orgânicos da natureza foram substituídos pelos símbolos abstratos do poder do intelecto na medida em que as cores, os sabores e os odores se tornavam artificiais. Os medicamentos homogeneizaram os organismos apesar do evidente esforço da natureza em diferenciá-los.
    Porém, todo esse arcabouço cognitivo entra em xeque quando os quatro cavaleiros do apocalipse apresentam suas artes: o especialista é confrontado com os diferentes elementos das situações específicas; a produtividade material é contida pela preservação ecológica, o poder militar da potência é anulado pela destruição atômica e o discurso massificado é vazado pela informação plural em tempo real.
    O nivelamento tecnológico da informação retira o discurso da superioridade moral do mocinho de Hollywood e o substitui pelas densas manifestações da realidade individual. É o fim do final feliz padrão do patrão e o despertar do que está por trás dos olhos de quem consegue abri-los. Como num filme Russo.

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