A Zona do Euro, os ajustes e o começo do fim

Do Carta Maior

A cúpula da União Europeia e o começo do fim

 

O acordo de sustentação da moeda da Zona do Euro implica a abdicação parcial de soberanias nacionais, aumentando o controle de Bruxelas sobre os orçamentos dos países que o aceitaram. Prevê que o déficit orçamentário deve ficar em 0,5% do PIB e que, caso ultrapasse 3%, haverá correções ou sanções automáticas. Além disso, contemplou os interesses dos bancos privados. Não mais haverá repasse de perdas para bancos, como houve no caso da Grécia, quando eles foram forçados a abdicar de 50% dos créditos devidos. O artigo é de Flávio Aguiar.

Na madrugada desta quinta para sexta-feira a cúpula da União Européia anunciou ter chegado a um acordo básico de sustentação da moeda da Zona do Euro e também da própria União Européia. O primeiro item foi quanto à forma do próprio acordo. Este, seguindo uma sugestão do presidente do Conselho Europeu e da Zona do Euro, Herman van Rampuy, assumiu a forma de um protocolo adicional ao tratado existente. Um novo tratado teria dois riscos: o primeiro seria um longo e incerto processo de ratificação pelos países membros, que envolveria pelo menos três anos e até a possibilidade de plebiscitos do tipo cuja ameaça derrubou o primeiro ministro grego no passado recente. Nem a UE nem a Zona do Euro dispõem deste tempo. O segundo risco seria o de que a oposição por parte de pelo menos um dos países membros inviabilizaria a sua aplicação antes desse longo processo. Impossível.

A fórmula do protocolo adicional era mais simples, podendo ser ratificada nos parlamentos nacionais e não necessitando da adesão de todos os países membros da UE para entrar em vigor em relação aos países que o assinassem e ratificassem.

O protocolo, como era de se esperar, implica a abdicação parcial de soberanias nacionais, aumentando o controle de Bruxelas (e do Consenso de Bruxelas) sobre os orçamentos dos países que o aceitaram. Prevê que o déficit orçamentário deve ficar em 0,5% do PIB e que, caso ultrapasse 3%, haverá correções ou sanções automáticas em relação ao país faltoso, a menos que uma maioria qualificada de países da Zona do Euro entenda o contrário. Trocando em graúdos (não há miúdos nessa história), isso significa um aumento do controle dos marios montis e lucas papademos sobre os orçamentos nacionais dos países periféricos. Ninguém vai controlar a Alemanha.

O protocolo prevê também que os países membros da UE providenciarão de imediato mais 200 bilhões de euros para o FMI, sob a forma de empréstimos, para ajudá-lo a lidar com a crise. Até julho de 2012 o Mecanismo Europeu de Estabilização entrará em vigor, com 500 bi de euros, e o atual Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (440 bi) permanecerá ativo até meados de 2013. Em março de 2012 haverá uma revisão geral dessas cifras.

Tão importantes quanto essas decisões afirmativas institucionais, foram os anúncios de intenções negativas. O primeiro confirmou o que já se esperava: o Banco Central Europeu, através de seu diretor-presidente, Mario Draghi, confirmou que não pretende atuar como um banco de verdade (de acordo com a vontade manifesta da chanceler Ângela Merkel e do sistema bancário alemão), comprando mais letras de tesouros falidos ou à beira da falência para rebaixar os juros exigidos. Ou seja, trocando novamente em graúdos, não vai roubar essa fatia deliciosa de lucros para a banca privada. O segundo também foi dedicado à banca privada, ou a seus setores mais reacionários: não mais haverá repasse de perdas para bancos, como houve no caso da Grécia, quando eles foram forçados a abdicar de 50% dos créditos devidos.

Tudo isso somado, significa que estamos no começo do fim.

Resta saber do quê.

Será do fim das angústias dos governos ante os mercados financeiros?

Decididamente não. As bolsas reagiram de maneira “fria”, segundo alguns, “cautelosa”, segundo outros, diante desses anúncios, a começar pelas asiáticas, já funcionando a pleno vapor quando as decisões foram anunciadas, graças à diferença de fuso horário. O euro continuou cadente em relação ao dólar, à libra, ao yen e ao renminbi ou yuan, e as letras italianas e espanholas continuaram a exigir juros acima de 6% para serem (re)negociadas. Ou seja, nada de novo nessa frente abissal.

Será o fim da recessão? E da ameaça de uma recessão mundial, por causa da recessão da UE e da Zona do Euro? De modo nenhum. As medidas acordadas ratificam as virtudes teologais do capitalismo germânico (*) e da liderança depressiva de Ângela Merkel, premida pela necessidade de manter a competitividade dos bancos alemães frente aos demais (o Commerzbank, segundo depois do Deutsche Bank, está de novo à beira da falência) e a competitividade do seu partido frente aos demais. O crescimento econômico da Zona do Euro foi de 0,2% no último quadrimestre e o desemprego continua em 10,3%, distribuído muito desigualmente entre “sul” [da Europa] e “norte” [também], entre jovens e adultos, etc. Nada disso vai mudar no médio prazo, só se aprofundar, se alteração houver.

Fim, se houver, será da União Européia.

O acordo reuniu os 17 países da Zona do Euro, tangidos a ponta de aguilhão, mais Bulgária, Dinamarca, Letônia, Lituânia, Polônia e Romênia, tangidos igualmente.

A Suécia e a República Tcheca vão consultar os respectivos parlamentos antes de decidir. A Hungria “vai examinar melhor os termos do protocolo”. A Inglaterra está decididamente fora. Analistas dizem que a Suécia não deve ratificar. Nem a Hungria.

Nada há com o que se alegrar (à esquerda) com essas dissensões. Todas elas são provocadas por partidos conservadores e do espectro de direita na Europa. O pior é o caso da Hungria, cujo chefe de governo, Viktor Orban, é conhecido por atentados à liberdade de imprensa e é freqüentemente descrito como um “populista de direita” ou até “proto-fascista”. David Cameron, do Partido Conservador inglês, tem de prestar contas diante de seus correligionários anti-solidariedade internacional. Na Suécia e na Rep. Tcheca as coalizões no governo são igualmente de direita. Isso quer dizer que a cena política está completamente sob o domínio hegemônico da direita na Europa.

A novidade dessa situação é que, pela primeira vez, há uma – o quê? – rachadura, frincha, trinca, institucional na UE. Se isso se ampliar, vai ser o caos. Ângela Merkel (sorridente) e Nicolas Sarkozy (entre dentes) manifestaram sua satisfação com o resultado, mas não puderam esconder seu amargor com a atitude de Cameron.

O que fazer diante disso? Nada. A Inglaterra conservadora se apega à independência da libra desde que sua adesão ao Fundo Monetário Comum da Europa provocou uma crise devido ao manejo da relação marco alemão/libra britânica que destruiu a credibilidade política do governo de Margaret Thatcher 30 anos atrás. Cameron não vai agradar Merkel ao custo de desagradar sua base Tory.

Vai valer aquela piada sobre a nuvem de névoa que cobria o Canal da Mancha, enquanto as rádios inglesas anunciavam: “o Continente está isolado”.

Mas há um fundo de verdade nisso, pelo menos dessa vez. A Inglaterra não está isolada, parceira agora submissa que é dos Estados Unidos, desde que Tony Blair deu barretadas perante a política de Bush no Iraque e arredores.

O continente europeu, sob a liderança das virtudes teologais do capitalismo germânico, está.

Isso é um risco enorme. Pode ser o começo do fim, não só do euro, da UE, mas do desequilibrado equilíbrio mundial.

Os efeitos de um derretimento europeu serão funestos. Isso não será bom para a esquerda nem para ninguém.

A direita é irresponsável. A esquerda não pode acompanhá-la. Não cabe torcer por uma desorganização européia. Cabe pensar e ajudar que novas forças políticas alternativas se organizem nos países do Velho Continente.

Eles precisam da nossa ajuda.

Quem diria.

(*) Ver “A Alemanha e o capitalismo num só país”, nesta Carta Maior, e “As virtudes teologais do capitalismo alemão”, no Blog do Velho Mundo da Rede Brasil Atual.

Luis Nassif

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