Morreu, em 11 de setembro, David dos Santos Araújo, delegado da Polícia Civil mais conhecido como Capitão Lisboa, um dos mais violentos torturadores da ditadura militar, aos 86 anos. O óbito foi registrado no 29º Cartório de Santo Amaro, em São Paulo, mas a causa não foi divulgada.
Lisboa era subordinado a Carlos Alberto Brilhante Ustra, major das Forças Armadas, com quem atuou no Destacamento de Operações de Informação — Centro de Operação de Defesa Interna (Doi-Codi) praticando torturas clandestinas.
Aposentado da Polícia Civil, o delegado chegou a ser processado pelo Ministério Público Federal pelos atos de violência que cometeu nas dependências do órgão entre abril e outubro de 1971.
De acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, Lisboa cometeu crimes de tortura, execução e desaparecimento forçado, todos negados por ele em depoimento em 2013.
Entre as principais acusações então o assassinato do militante Joaquim Alencar de Seixas. O delegado torturou também o filho da vítima, na época de apenas 16 anos, outros três familiares e um conhecido.
A partir de denúncias do MPF, a Justiça reconhece que Araújo, ao lado dos delegados Capitão Ubirajara (Aparecido Calandra) e JC (Dirceu Gravina), participou direta ou indiretamente da tortura e assassinato de, ao menos, 25 pessoas, entre eles o jornalista Vladimir Herzog.
Também responsável pela morte de Aylton Adalberto Mortati, em 1981 foi homenageado com a Medalha do Pacificador do Exército.
Condenação e impunidade
Em janeiro de 2023, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) condenou os três delegados a pagar, cada um, R$ 1 milhão a título de indenização por danos morais coletivos sofridos pela sociedade brasileira em razão das torturas e mortes cometidas por eles durante a ditadura civil-militar.
O valor seria destinado ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, ligado ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública. A sentença foi dada pela juíza Diana Brunstein, da 7ª Vara Cível Federal de São Paulo, que acolheu pedido do Ministério Público Federal (MPF) apresentado em 2010.
A juíza ressaltou ainda a imprescritibilidade de crimes contra a humanidade, das ações declaratórias e da reparação ao patrimônio público e que “a sociedade brasileira até hoje se ressente das arbitrariedades praticadas por agentes de estado no período ditatorial e, de maneira geral, teme o retorno das violações perpetradas no período”.
Leia a sentença na íntegra:
Veja as vítimas de tortura e morte pelos delegados, reconhecidas pela Justiça:
Delegado Aparecido Laertes Calandra:
- Hiroaki Torigoe (tortura e desaparecimento)
- Carlos Nicolau Danielli (tortura e homicídio)
- Maria Amélia de Almeida Teles (tortura)
- César Augusto Teles (tortura)
- Janaína Teles (tortura)
- Edson Luís Teles (tortura)
- Manoel Henrique Ferreira (tortura)
- Artur Machado Scavone (tortura)
- Paulo Vannuchi (tortura)
- Nádia Lúcia Nascimento (tortura)
- Nilmário Miranda (tortura)
- Vladimir Herzog (tortura e homicídio)
- Manoel Fiel Filho (tortura e homicído)
- Pierino Gargano (tortura)
- Companheira de Pierino Gargano (tortura)
Delegado David dos Santos Araújo:
- Joaquim Alencar de Seixas (tortura e homicídio)
- Ivan Akselrud Seixas (tortura)
- Fanny Seixas (tortura)
- Ieda Seixas (tortura)
- Iara Seixas (tortura)
- Milton Tavares Campos (tortura)
Delegado Dirceu Gravina:
- Lenira Machado (tortura)
- Aluizio Palhano Pedreira Ferreira (tortura e desaparecimento)
- Altino Rodrigues Dantas Junior (tortura)
- Manoel Henrique Ferreira (tortura)
- Artur Machado Scavone (tortura)
- Yoshitane Fujimore (tortura e desaparecimento)
De acordo com o Portal da Transparência do estado de São Paulo, David Araújo recebeu, em agosto, a aposentadoria de R$ 29.217,77.
Mas não há informações se o condenado desembolsou, de fato, o valor da indenização. À época da condenação, a magistrada afirmou que os delegados não poderiam ter as aposentadorias canceladas ou mesmo perder as funções públicas, tendo em vista que para tanto, seria necessária a abertura de um processo administrativo para punir tais casos.
Manifestação
Além da atuação na Polícia Civil, o Capitão Lisboa teve ainda uma empresa de segurança privada em São Paulo, que foi alvo de um levante popular em 2012. Na manifestação, os participantes expressaram repúdio aos crimes praticados pelo Capitão Lisboa durante a ditadura e às fraudes cometidas por sua companhia.
A morte do torturador ocorre duas semanas após ser reinstalada a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) em cerimônia promovida pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
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Imagino que a falta de coragem de punir os delegados torturadores seria porque se assim o fizessem, também teriam que fazer com coronéis, generais e o baixo clero dos militares envolvidos em sequestros, torturas e assassinatos. A punição para autoridades civis talvez não tivesse um terço do risco de retaliação, que se comparada com os militares.
O medo, o pavor e o popular cangaço dos políticos que costuraram a anistia e o cessar fogo com os militares, possivelmente permitiu aos militares ditarem as regras da anistia, sem contestações, ou com tímidas exigências
para cumprirem o famoso “me engana que eu gosto”.