A anistia e seletividade no sistema punitivo brasileiro, por Pedro Brandão

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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do Justificando

A anistia e seletividade no sistema punitivo brasileiro

por Pedro Brandão

O 27º relatório global da organização Human Rights Watch, divulgado na quinta-feira (12), constatou o que já sabíamos há muito tempo: a Lei de Drogas (Lei nº 11.343) aprovada em 2006, que endureceu penas para traficantes e as abrandou para usuários, é “um fator chave para o drástico aumento da população carcerária no Brasil“. De acordo com o documento, em 2005, 9% das pessoas presas respondiam por crimes relacionados a drogas. Atualmente, essa taxa é de 28%, e entre mulheres, 64% [1].

Há um consenso entre os especialistas que estudam o sistema punitivo brasileiro: o Brasil prende muito e prende mal. Não há dúvidas sobre isso. De acordo com dados do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), a população carcerária brasileira chegou a 622.202 pessoas em dezembro de 2014. Segundo o estudo, o Brasil conta com a quarta maior população penitenciária do mundo, atrás apenas de Estados Unidos (2.217.000), China (1.657.812) e Rússia (644.237). Entre os presos e presas, 40% são provisórios. Nos últimos 14 anos, a população do sistema prisional brasileiro teve um aumento de 267,32%, muito acima do crescimento populacional.

Ainda segundo o levantamento, quase 30% detentos respondiam ou foram condenados por crime de tráfico de drogas. A maioria, claro, pequenos comerciantes de entorpecentes, jovens e adolescentes das periferias.

Nesse cenário, é preciso reconhecer a responsabilidade compartilhada entre o Executivo, o Legislativo e, sobretudo, o Poder Judiciário e o Ministério Público. É impressionante como a cultura punitivista incrustada nesses poderes, atropelando a própria Constituição, é decisiva para a perpetuação da tragédia do sistema de justiça criminal no Brasil. Não adianta construir presídios, a saída é menos encarceramento e um sistema punitivo mais racional.

Mas nesses tempos de crise profunda no sistema penitenciário, estava aqui lembrando das anistias concedidas a determinados tipos de crime. Explico.          

No início do ano passado, foi sancionada lei que dispõe que pessoas físicas ou jurídicas terão prazo para regularizar os recursos mantidos no exterior até dezembro de 2014, pagando apenas 15% de Imposto de Renda e igual percentual de multa percentual de multa, totalizando 30% (é o chamado: “Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária – RERCT – de recursos, bens ou direitos de origem lícita, não declarados ou declarados incorretamente, remetidos, mantidos no exterior ou repatriados por residentes ou domiciliados no País.”).

Na prática, cumprindo os requisitos legais, crimes como a sonegação fiscal e a evasão de divisas foram anistiados.

A lei foi aprovado sem muita repercussão. Foram arrecadados R$ 50,9 bilhões, referentes ao Imposto de Renda (IR) e à multa da formalização dos valores. O governo comemorou. Os empresários com grana no exterior ficaram aliviados: escaparam do sistema penal – se é que se sentiram ameaçados por ele – por um preço módico.

Mas o que isso tem a ver com a crise do nosso sistema penitenciário ?! Continuo a explicação.

O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias afirma que “é importante apontar o grande número de pessoas presas por crimes não violentos, a começar pela expressiva participação de crimes de tráfico de drogas – categoria apontada como muito provavelmente a principal responsável pelo aumento exponencial das taxas de encarceramento no país e que compõe o maior número de pessoas presas”.   

De acordo com dados do Núcleo de Estudos da Violência da USP, em 62% dos casos de flagrante por tráfico em São Paulo a pessoa era presa com menos de 100 gramas de droga. Já 57,28% das pessoas presas não apresentavam nenhum tipo antecedente.

 

Ou seja, o Brasil tem uma política de encarceramento em massa de pessoas sem antecedentes criminais, sem histórico de violência e que portavam pequena quantidade de droga.

 

No Brasil, especialistas no sistema punitivo defendem, há algum tempo, a anistia para pequenos comerciantes de entorpecentes. Pedro Abramovay, então secretário Nacional de Políticas sobre Drogas, defendeu a aprovação do projeto que prevê o fim da prisão para pequenos “traficantes”, que atuam no varejo apenas para sustentar a própria dependência. Projeto do Deputado Jean Wyllys, defende a legalização da maconha e propõe anistia  para todas as pessoas presas, processadas ou indiciadas por tráfico de maconha, os “pequenos assalariados do tráfico” (não inclui, evidentemente, aqueles que tenham praticado outros crimes).

Esses são apenas exemplos de iniciativas e opiniões sobre o tema, entre tantas outras.

Mesmo em meio ao caos penitenciário, o debate sobre a anistia e descriminalização, no entanto, foi prontamente interditado, e nem sequer ouvimos falar nessas propostas nos discursos oficiais: permanecem absolutamente impermeáveis aos donos do poder. Parece que a desencarceramento para pequenos “traficantes” é um tabu intransponível. Parece que algumas anistias são permitidas, outras são proibidas até a discussão, mostrando a assimetria com que são tratados os perdões para determinados crimes no Brasil[2]. Ora, parece que a relação classe, raça e CEP são fundamentais nesse julgamento. Afinal, alguns têm anistia. Para outros, prisões[3].

Essa comparação é apenas uma metáfora sobre o nosso sistema punitivo. Precisamos discutir seriamente alternativas. O caminho, nesses casos, não pode ser o encarceramento. Se essas medidas fossem levadas a sério – ao contrário das propostas demagógicas do Ministro Alexandre de Moraes[10] – talvez hoje não estivéssemos lamentando tantas mortes nas penitenciárias brasileiras.

É claro que as causas são complexas e as soluções não são fáceis, mas o fato é que o sistema penal, com sua extrema seletividade, continua punindo muito e punindo mal. E a guerra às drogas tem papel central nessa tragédia. Para muita gente e muitos governos, como lembra Galeano, “a construção de prisões é o plano de habitação que os pobres merecem”.

Pedro Brandão é doutorando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Pesquisador do grupo “O Direito Achado na Rua”. É autor do livro “O Novo Constitucionalismo Pluralista latino-americano” (Ed. Lumen Juris, 2015).


[1] O relatório também denuncia casos de tortura, condições degradantes e desumanas nas prisões brasileiras.

[2] Não quero dizer, evidentemente, que a solução para os crimes do “colarinho branco” é mais sistema punitivo, só destaco as assimetrias e desigualdades no julgamento social e penal de determinados “bandidos”. Como lembra Maria Lucia Karam, fazendo um alerta à esquerda punitiva: “Desejando e aplaudindo prisões e condenações a qualquer preço, estes setores da esquerda reclamam contra o fato de que réus integrantes das classes dominantes eventualmente submetidos à intervenção do sistema penal melhor se utilizam de mecanismos de defesa, freqüentemente propondo como solução a retirada de direitos e garantias penais e processuais, no mínimo esquecidos de que a desigualdade inerente à formação social capitalista que, lógica e naturalmente, proporciona àqueles réus melhor utilização dos mecanismos de defesa, certamente não se resolveria com a retirada de direitos e garantias, cuja vulneração repercute sim – e de maneira muito mais intensa – sobre as classes subalternizadas, que vivem o dia-a-dia da Justiça Criminal, constituindo a clientela para a qual esta prioritariamente se volta”. (A esquerda Punitiva.)

[3] O caso fica ainda mais dramático quando fazemos o recorte de gênero. Luciana Boiteux alerta o grande crescimento da população penitenciária feminina, que foi de 567% nos últimos quinze anos (2000-2014). A autora destaca que a grande maioria dessas mulheres no Brasil, segundo dados oficiais, está presa pelo crime de tráfico de drogas (58% delas) (Por que precisamos tanto do indulto para mulheres condenadas por tráfico de drogas? 

[10] Victor Pimenta e Felipe Athayde analisam a proposta de Alexandre de Moraes e Temer: “De certa forma, as medidas anunciadas representam uma espécie de federalização da política que vem sendo implantada em São Paulo nas últimas décadas, que resultou na expansão do sistema prisional, na prisão de mais gente, no afastamento do Estado de suas responsabilidades no tocante aos serviços e assistências prisionais e na transformação do PCC na principal força na gestão do cotidiano das prisões, promovendo sua expansão para os demais estados da federação. A história nos mostra que esse não é um bom caminho. Melhor será, portanto, não seguirmos por aí (As “soluções” desonestas do governo federal para a crise penitenciária.). Já Gabriela Ferraz apresenta cinco razões para a queda do Ministro Alexandre de Moraes.

 
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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