A rebelião peculiar dos “coletes amarelos”, por Nuno Ramos

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Nuno Ramos de Almeida
 
Segundo as estatísticas do Ministério do Interior francês, divulgadas no momento em que está convocada para o próximo sábado uma quarta mobilização dos coletes amarelos, 136 mil pessoas manifestaram-se no dia 1 de dezembro, 166 mil em 24 de novembro e 282 mil em 17 de novembro. Mais de 682 pessoas foram interpeladas pela polícia, 630 colocadas sob detenção. Pelo menos 281 pessoas ficaram feridas, entre as quais 81 polícias.
 
Dissipadas as nuvens de gás lacrimogéneo, urge fazer uma pergunta: quem são os coletes amarelos? O filósofo francês Jean-Luc Michéa ironizava, citando um autor, que são demasiado pobres para interessar à direita e demasiado brancos para ser apoiados pela esquerda.
 
Aparentemente, pertencem a uma parte da França a quem o ordenado não chega ao fim do mês. A uma parte do país invisível e espacialmente separado das zonas mais ricas, o centro das grandes cidades habitadas pelos vencedores do processo de globalização e financeirização neoliberal que arrancou nos anos 80. Nesses locais vivem mais de 60% dos franceses, uma “França periférica”, nas palavras do geógrafo Christophe Guilluy. Talvez por isso, as sondagens indiquem que mais de 70% dos franceses concordam com as razões do movimento dos coletes amarelos.
 
Margaret Thatcher garantia, em 31 de outubro de 1987, à revista “Woman’s Own”: “There is no society”, não havia sociedade, mas apenas pessoas individuais. Consumidores guiados pela maximização da satisfação e a quem o seu egoísmo levaria o mundo a progredir.
 
Três décadas depois destas palavras, a destruição do Estado Social e dos mecanismos que configuravam a possibilidade de uma ascensão social, como o ensino e a saúde, e a eliminação sistemática dos direitos sociais, em prol de supostos direitos individuais, deixaram um lastro de destruição, atomização das pessoas, e terraplanagem dos sindicatos e partidos do movimento operário que corporizavam e davam voz a muitos sectores da população.
 
O caos que vivemos hoje nas ruas de Paris, a expandir-se para todo o mundo, é herdeiro deste processo político que destruiu as políticas keynesianas que tinham garantido uma repartição mais equitativa do rendimento, nos 30 anos de ouro do pós-guerra, e um contrato social que integrava sectores importantes das classes populares. Esse consenso social – numa altura em que havia uma concorrência entre o Ocidente e o bloco socialista – era uma forma de evitar crises, ruturas e revoluções. O fim da União Soviética significou em grande parte o fim da necessidade premente de as elites capitalistas pagarem a paz social.
 
“There is no alternative”, rezava Thatcher, na sua época, naquilo que ficaria conhecido como TINA. “Il n’y a pas d’alternative”, garantia, ufano, Macron, em 2014. Cortes sociais, privatizações e flexibilização das normas laborais tornaram-se panaceias universais. A situação atual não é fruto do falhanço da globalização, mas do seu sucesso, garante, no Guardian, o geógrafo Christophe Guilluy: “Em décadas recentes, na economia francesa, europeia e dos EUA, continuou a crescer a riqueza para benefício dos mais ricos. O problema é que ao mesmo tempo o desemprego, a insegurança e a pobreza também cresceram”.
 
Nesse sentido, o presidente francês, fazendo-se arauto de uma modernidade que permite cortar os impostos aos mais ricos, aboliu a taxa de solidariedade, cortando 4 mil milhões de euros de impostos aos mais ricos, e aliviou em 41 mil milhões por ano os impostos às grandes empresas e multinacionais. No último orçamento de 2018, cortou ainda mais 10 mil milhões de euros nos impostos sobre capitais. Tudo isso ao mesmo tempo que faz pagar os custos da “transição ecológica” aos mais pobres, que entre 2008 e 2016, perderam 14,5 mil milhões euros de poder de compra.
 
Um esforço tanto mais discutível, quando se sabe que apenas 19% dos 38 mil milhões de euros recolhidos nessas taxas estão afetados à chamada “transição ecológica”, uma desculpa ecológica que esconde, de facto, os gigantescos cortes de impostos aos ricos e às empresas.
 
A depauperização e a marginalização da maior parte da população, conjugada com a ausência de forças políticas e sociais que deem voz a essas camadas, criou o magma para uma explosão violenta e descontrolada. São factores que multiplicam essa aparente fúria irracional: a pobreza, a atomização social, e a passagem da antiga esquerda para a aceitação implícita dos valores liberais que colocam acima dos direitos sociais, os chamados direitos individuais.
 
“Tivemos perante nós a extrema-direita de manhã, a extrema-esquerda depois do almoço e os jovens dos subúrbios ao cair da noite”, relata um polícia que garante nunca ter visto na rua e à porrada quase toda a gente no mesmo dia. Resultado: mais de 9.861 granadas foram lançadas, só em Paris, nomeadamente as famosas GLI-F4, que contêm 25 g de TNT. A França tem a duvidosa honra de ser o único país na União Europeia que usa granadas explosivas contra manifestantes, tendo essa prática custado a mão a um manifestante nos recentes protestos.
 
Um caos de protestos, com carros de luxo incendiados, carros normais em fogo, o arco do Triunfo grafitado e lojas pilhadas. “Vi um tipo fugir com um frigorífico sobre uma bicicleta, outro levava uma betoneira, não consigo perceber para que é que aquilo lhe vai servir”, confessa um polícia surpreso.
 
Nuno Ramos de Almeida é jornalista português, editor-executivo do Jornal I (www.ionline.pt).
Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

5 Comentários

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  1. Passe-livre

    Tenho medo que esses protestos virem massa de manobra como o passe livre de 2013, q terminou em golpe, mas concordo com o geógrafo: o q ferrou com a sociedade não foi o fracasso do neoliberalismo, mas seu sucesso, que sempre significou um aumento da desigualdade social

  2. Igualzinho
    Exatamente como no Brasil, uma parte significativa da população não se vê representada por seus governantes. Seus impostos são recolhidos, mas não tem direito a sonhar com ascensão social. As portas estão fechadas pelo próprio governo que se associa as elites econômicas para manter o status quo, e as elites acadêmicas para justifica-las cerradas.

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