As críticas de um livre-docente à delação premiada no Brasil

Jornal GGN – Em artigo para o Empório de Direito, o livre-docente em Direito Processual Penal, professor da Faculdade de Direito da UERJ e procurador de Justiça aposentado, Afranio Silva Jardim, fala sobre o instituto da delação premiada e critica acordos que, em sua opinião, ultrapassam os limites legais. Entre eles, alguns homologados pelo juiz federal Sérgio Moro no âmbito da Operação Lava Jato.

“É preciso muito cuidado na utilização deste novo instituto. A negociação tem que se desenvolver sob rígidas normas éticas. O meu temor é também com o exemplo que estas práticas podem repercutir nos rincões mais distantes deste nosso imenso país”, disse.

O artigo é, na verdade, uma coletânea de dez textos que o autor escreveu ao longo dos últimos meses, diante de notícias que julgou relevantes para entender de forma sistemática esse novo instituto processual. “Meu escopo é contribuir para a preservação de um sistema processual democrático. Minha crítica deve ser entendida como construtiva”.

Do Empório do Direito

Delatando (sem prêmio) as delações premiadas

Por Afranio Silva Jardim

Tenho escrito alguns trabalhos sobre o acordo de cooperação premiada. Alguns deles estão publicados aqui, no site do Empório do Direito, antes mesmo da inauguração desta minha coluna. São estudos mais teóricos que tratam do novo instituto processual de forma sistemática.

Por outro lado, tendo em vista o que vem se tornando público, também venho fazendo críticas pontuais a certas e determinadas “delações premiadas”, procurando mostrar que estão ultrapassando os limites legais. Estes pequenos textos estão “perdidos”, na medida em que foram divulgados em momentos distintos, embora próximos.

Com a finalidade de dar aos leitores uma visão panorâmica e integral destas críticas pontuais, reuni aqui aqueles que julgo mais importantes. Meu escopo é contribuir para a preservação de um sistema processual democrático. Minha crítica deve ser entendida como construtiva.

1 – O CAOS NO DIREITO PENAL E NO PROCESSO PENAL.

Muitos dos acordos de cooperação premiada (delação premiada), homologados pelo juiz Sérgio Moro, em nosso entendimento, são absolutamente ilegais, pois consagram “prêmios” que a lei não prevê e até outros contra o próprio código penal e lei de execução penal, como regime aberto em face de penas superiores a 4 (quatro anos).

Estão negociando com a atuação persecutória do Estado. O bizarro é que ninguém recorre e as nulidades transitam em julgado. O Conselho Nacional do Ministério Público precisa coibir estas práticas danosas para a sociedade.

Desta forma, os empresários delatores ficam em suas mansões, em prisão domiciliar, com tornozeleiras eletrônicas, enquanto os não delatores têm penas altíssimas em regime fechado, quase todos presos durante o processo.

Vejam o que sustentamos em nosso trabalho publicado no site Empório do Direito e o que consta do site Conjur de hoje:

Pedro José Barusco Filho
Pena – 9 anos de reclusão.
Delação – A pena e o processo foram suspensos em relação a ele devido ao acordo de colaboração premiada. Barusco já havia sido condenado na “lava jato” a 18 anos e 4 meses de reclusão. O acordo de colaboração assinado por ele previu que, após o trânsito em julgado das sentenças condenatórias que somem o montante mínimo de quinze anos de reclusão prisão, os demais processos ficariam suspensos.
Crime – Corrupção passiva.
João Vaccari Neto
Pena – 9 anos de reclusão.
Crime – Corrupção passiva.
Milton Pascowicht
Pena – 20 anos e 4 meses de reclusão.
Delação – Devido ao acordo de colaboração premiada deverá cumprir no máximo 12 anos de prisão. Conforme o acordo celebrado, as penas unificadas em todos os processos relacionados à “lava jato” não poderão ultrapassar doze anos de reclusão.
Crime – Corrupção ativa, lavagem e pertinência à organização criminosa.
José Adolfo Pascowicht
Pena – 19 anos de reclusão.
Delação – Conforme o acordo de colaboração premiada celebrado, as penas unificadas em todos os processos relacionados à “lava jato” não ultrapassarão o total de oito anos de reclusão.
Crime – Corrupção ativa, lavagem e pertinência à organização criminosa. 

Entendemos que o ofendido (vítima, pessoa física ou jurídica) tem legitimidade para interpor o recurso de apelação da sentença de mérito, que referenda um acordo de cooperação ilegal, caso não haja recurso do Ministério Público. Com a palavra a Petrobrás S.A. e outros prejudicados pelas ações dos réus corruptos.

2 – SERÁ VERDADEIRA A NOTÍCIA ABAIXO?

Será que a perseguição ao ex-presidente Lula continua implacável? Será que estão usando a delação premiada para constranger colaboradores a dizer o que se deseja que eles digam e não para descobrir os fatos penalmente relevantes? Entendo que não se pode dizer, previamente, que tal indiciado não está dizendo a verdade ou está ocultando fatos importantes. Se, ao final do processo, ficar constatado que o delator mentiu, perde ele o benefício convencionado.

É preciso muito cuidado na utilização deste novo instituto. A negociação tem que se desenvolver sob rígidas normas éticas. O meu temor é também com o exemplo que estas práticas podem repercutir nos rincões mais distantes deste nosso imenso país. Vejam o que foi publicado ontem no site do Conjur:

“As negociações do acordo de delação de Léo Pinheiro, ex-presidente e sócio da OAS, condenado a 16 anos de prisão, travaram por causa do modo como o empreiteiro narrou dois episódios envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo Pinheiro, as obras que a OAS fez no apartamento tríplex de Guarujá (SP) e no sítio de Atibaia (SP) foram uma forma de a empresa agradar a Lula, e não contrapartidas a algum benefício que o grupo tenha recebido. A versão é considerada pouco crível por procuradores. Na visão dos investigadores, Pinheiro busca preservar Lula com a sua narrativa. As informações são do jornal Folha de S.P” 

Sinceramente, espero que tenha havido algum equívoco. Espero que os investigadores não se deixem levar pelas paixões políticas ou ódios ideológicos. Não é valioso punir a qualquer preço, ainda que tal punição eventualmente possa ser merecida. Em nosso frágil estado de direito democrático, é preciso preservar os relevantes valores cunhados através de longo processo civilizatório.

3 – O SISTEMA PENAL NÃO PERMITE ISSO.

 Consta do Jornal “O Globo”, de hoje, 09.06.16, página 05, notícia que o juiz Sérgio Moro teria homologado um acordo de delação premiada entre o Ministério Público Federal e o então indiciado Pedro Barusco. Neste inusitado acordo, teria ficado avençado que tal delator não poderia restar condenado à pena superior a determinados anos de reclusão. Denunciado por outras infrações penais, recebida a denúncia, o juiz Sérgio Moro decidiu suspender este novo processo, porque o agora réu já estaria condenado, em outros processos, à pena superior àquela anteriormente convencionada. Além do mais, por ter o seu processo suspenso, o réu agora seria ouvido como testemunha de acusação.

Esta é a notícia que tenho, surpreso e espantado, sob as minhas vistas. Como professor de Direito Processual Penal, vejo os seguintes equívocos graves:

1) O acordo de cooperação premiada não pode produzir efeitos em outras investigações ou processos. O indiciado ou réu só pode ser beneficiado pela sua delação em face daqueles crimes que ajudou a apurar, vale dizer, naquele processo onde foi homologado o acordo;

2) Por isso, não pode ser homologado acordo de cooperação que estipule, para o futuro, um limite de penas. Isto não está previsto na lei que trata da organização criminosa, não podendo o órgão do Ministério Público e um criminoso “legislarem” e contrariarem normas de Direito Público;

3) O Código de Processo Penal não autoriza esta suspensão do processo. Não há previsão legal para paralisar um processo por que o réu já está condenado a esta ou aquela pena … Isto é totalmente insólito …;

4) Pergunta-se: por quanto tempo ficará o processo suspenso? O prazo da prescrição fica suspenso? Quando cessar tal suspensão o réu poderá ser condenado ao arrepio do ilegal acordo de cooperação? Seria um caso anômalo de extinção do processo, não previsto em lei, com outro nome?

5) Como o réu, embora com seu processo estranhamente suspenso, pode ser ouvido como testemunha? Ele continua sendo imputado de fatos delituosos, em relação aos quais não é terceiro imparcial. Se mentir, pode perder o benefício da delação premiada, mas não pode ser condenado por falso testemunho, pois é réu e não testemunha …;

Enfim, se verdadeira a notícia e bem entendida por mim, fica aqui consignada a minha perplexidade com a “bagunça” que estão fazendo com o nosso “sistema penal e processual”, como já alertei em breve texto anterior. Entretanto, agora, passou-se dos limites do razoável.

Como posso explicar aos meus alunos tudo isso que está acontecendo? O lamentável é que ninguém recorre, permitindo que os tribunais possam brecar estas práticas nefastas. O Ministério Público, porque fez o acordo, e o réu, porque está sendo ilegalmente beneficiado. Em breve estará, em sua casa, com bela tornozeleira dourada, cravejada de brilhantes. Bizarro.

Acho que a vítima do crime (Petrobrás S.A. ou outros) deve recorrer, conforme permitido pelo Cod.Proc.Penal. Tudo muito anômalo..

4 – OS CORRUPTORES EMPRESÁRIOS NÃO VÃO PARA CADEIA.

O noticiário sobre a “delação premiada” do sr. Sérgio Machado confirma o que estamos criticando há muito tempo: os empresários não irão presos, desde que denunciem os políticos. Ficam “presos” em suas mansões, com tornozeleiras eletrônicas (em breve serão de ouro, cravejadas de brilhantes …).

Lógico que ficamos satisfeitos, e até felizes, com a descoberta da corrupção na política. A nossa crítica está no mau uso do instituto da cooperação premiada. Por exemplo: no caso de sr.Sérgio Machado, corruptor contumaz e confesso, a sua pena não poderá superar 20 anos de duração mas, de qualquer forma, ele ficará em prisão domiciliar, com visitas de algumas pessoas já autorizadas e saídas em dias já combinados. A TV Bandeirantes News acaba de filmar a “casa presídio” do sr.Sérgio Machado: uma beleza de mansão, com uma piscina digna do nadador César Cielo …

Isto não é permitido pela lei do crime organizado, pelo Código Penal e pela Lei de Execução Penal. A pena acima de 8 anos é cumprida sempre em regime fechado. Não pode um acordo entre um membro do Ministério Público e um criminoso criar cláusulas que derroguem regras de Direito Público.

Evidentemente, quando a lei permite como prêmio o regime aberto, o faz pressupondo uma pena de prisão não superior a 4 anos. Neste caso, a vantagem do cooperador é já ter assegurado tal regime, não podendo o juiz aplicar esta pena diminuta e negar-lhe o benefício. Os outros prêmios são a redução da pena de prisão até 2/3 e perdão judicial, tudo condicionado a certos requisitos.

A progressão da pena com prazos diferentes dos previstos na lei só é expressamente cabível quando a delação premiada ocorrer após a condenação do réu, que não ocorreu ainda. Já escrevi sobre isso (está no site do Empório de Direito).

Ademais, foi também noticiado que os filhos do sr. Sérgio Machado também fizeram delação premiada, por isso não serão denunciados pelo Ministério Público. Ocorre que tal prêmio só é permitido pela lei quando ele é o primeiro a fazer tal acordo, o que parece não ocorrer no caso presente. De qualquer forma, “primeiro” só pode ser um… É até mesmo intuitivo.

5 – COOPERAÇÃO FORÇADA?

Se for verdade o que consta da notícia abaixo, ficaria claro que as prisões são formas de “forçar” colaborações premiadas. Um absurdo e verdadeiro atentado ao estado de direito democrático.

NOTÍCIA DO JORNAL: (retirada do site do Conjur)

“Preso há mais de um ano em Curitiba, o empresário Marcelo Odebrecht foi convencido por procuradores da operação “lava jato” a desistir de um pedido de liberdade impetrado por seu advogado no último dia 5. A Marcelo Odebrecht foram dadas duas alternativas: ou retirava o pedido de liberdade, ou estavam encerradas as tratativas para o acordo de delação premiada que ele negocia com procuradores desde março, logo após ter sido condenado a 19 anos de prisão. A desistência ocorreu na última quarta-feira (13/7), sem que o Ministério Público tivesse avaliado o pedido feito pela defesa de Marcelo. Os procuradores consideraram que a solicitação de liberdade ia contra o clima colaborativo das negociações que estão em curso. As informações são do jornal Folha de S.Paulo.” 

6 – NÃO À AMPLIAÇÃO DA CHAMADA JUSTIÇA PENAL PACTUADA.

Trata-se de uma ruim, das muitas boas propostas, publicadas ontem, em documento do Ministério Público Federal.

 Estou escrevendo um breve texto sobre isto. Aqui e agora cabe dizer que se cuida de uma visão privatista do nosso sistema penal e que o Ministério Público Federal está meio “deslumbrado” e quer “barganhar” com criminosos confessos as regras do Direito Penal e da Lei de Execução Penal, regras estas de Direito Público e de caráter cogente.

Estão copiando o modelo norte-americano, que foi cunhado com base em outros valores sociais. Acho isto um perigo para o próprio Ministério Público. Uma coisa é uma negociação entre os Procuradores da “Lava-Jato” e um empresário ou político, embora criminosos, e outra coisa é uma negociação no interior da Amazônia entre um jovem promotor de justiça e um virulento fazendeiro sobre a punição de seu capataz. Já temos a transação penal no Juizado Especial Criminal e o acordo de cooperação premiada (que precisa ser limitada pela jurisprudência dos tribunais). O que querem mais?

7 – MAIS UM ABSURDO DA CHAMADA JUSTIÇA PACTUADA

Notícia publicada no site do Conjur, com base em pesquisa e matéria jornalística dos Estados Unidos (23.07.2016):

“Nem todos os condenados por estupro são presos nos EUA
Juristas (norte-americanos), consultados pelo jornal, disseram que a razão mais comum para estupradores escaparem da prisão é o acordo que a Promotoria faz com a defesa para obter uma confissão em troca de uma pena mais leve, como suspensão condicional da pena, quando os promotores acreditam que seu caso é fraco”.

Vejam o que venho dizendo, reiteradamente, sobre os malefícios da chamada justiça pactuada. É preciso refutar este verdadeiro “modismo” de copiar institutos processuais norte-americanos, que nada têm a ver com a nossa cultura e a nossa realidade.

Parcela do nosso Ministério Público não percebeu que ele pode se desmoralizar perante a opinião pública. Repito o que disse alhures: poder demais não fortalece; ao contrário, fragiliza a instituição.

Por outro lado, não é nada democrático dar poder a um membro do Ministério Público para combinar com um indiciado ou réu se e como a lei penal se aplicaria no caso concreto. Vale dizer, colocar a vontade das “partes” acima do Direito Penal e da Lei de Execução Penal.

Tem sido noticiado pela nossa imprensa que o Poder Judiciário está homologando acordos de cooperação premiada que outorgam aos delatores benefícios que contrariam expressamente o nosso sistema jurídico …

Volto a este tema em amplo estudo a ser publicado na minha coluna do site do Empório do Direito, na próxima terça-feira.

8 – NO MÍNIMO, MUITO INCONVENIENTE. O MINISTÉRIO PÚBLICO PRECISA TOMAR CUIDADO …

Inicialmente, entendo necessário salientar que, em princípio, não sou contra os chamados acordos de cooperação premiada, vulgarmente chamados de “delação premiada”. Tenho me oposto a alguns acordos que contrariam regras jurídicas da lei que os regula.

Algumas de suas cláusulas violam claramente normas cogentes do Cod. Penal e da Lei de Execução Penal. Neste sentido, tenho vários estudos publicados no site do Empório do Direito.
Corroborando os equívocos destes acordos, colhemos no site do Conjur uma recente notícia estarrecedora, que vai transcrita abaixo: 

“ACORDOS HOMOLOGADOS POR MORO DEFINEM REPASSE DE R$300 MIL AO MPF
Por Felipe Luchete
23 de julho de 2016, 17h01
O juiz Sergio Fernando Moro homologou acordos de delação premiada de três acusados de usar um banco suspeito para operar contas secretas no exterior. Em todos os termos, o Ministério Público Federal determina que eles receberão benefícios nos processos da operação “lava jato” e , em troca, pagarão multa individual de R$ 1 milhão – 90% destinados à Petrobras e 10% “aos órgãos de persecução penal”.
Esse tipo de cláusula já foi considera ilegal pelo ministro Teori Zavascki, na corte. Mesmo assim, foi homologada na 13ª Vara Federal de Curitiba e foi inserida em acordos de leniência com empresas citadas em processos de improbidade administrativa.
Já o ministro Teori Zavascki, em sua decisão, afirmou que o artigo 91, II, b, do Código Penal estabelece, como um dos efeitos da condenação, “a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé, do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso”. Para o relator da “lava jato” no STF, a Petrobras é “sujeito passivo” dos crime, tendo direito de receber todos os valores desviados.
A decisão de Moro foi proferida no dia 12 de julho e entrou nos autos eletrônicos na última sexta-feira (22/7). Com informações da Agência Brasil.” do Supremo Tribunal Federal, nos desdobramentos do caso que correm 

Julgo ser totalmente descabida essa “cláusula contratual”, através da qual o Ministério Público Federal obtenha vultosa quantia para os seus cofres, quantia esta cobrada dos indiciados ou réus em processo criminal. Conforme expressão usada pelo jornalista, em outra parte da notícia, o Ministério Público pode virar “sócio do crime”, na medida em que a origem deste numerário é, no mínimo, suspeita. Em outras palavras: o crime pode compensar … para o Ministério Público …

Por outro lado, além dos argumentos jurídicos do Ministro Teori Zavascki, acima mencionados, estes acordos de delação podem virar uma forma indireta de cobrança de receitas atípicas, na medida em que os membros do Parquet podem se negar a efetivar determinados acordos se os delatores não pagarem os valores pedidos. Pagando tais valores, penas e regimes de penas podem passar a ser negociados no processo penal, tudo a partir de outorgas financeiras …

Finalmente, cabe aqui reiterar o que escrevi anteriormente, em trabalho, também publicado no site Empório do Direito, sobre a necessidade de se fixarem os limites dos acordos de cooperação premiada, sob pena de estes restarem desmoralizados perante a opinião pública, bem como o próprio Ministério Público.

Cuida-se do texto que segue abaixo, entre aspas, com pequenas alterações:

“Agora trazemos à consideração da doutrina e jurisprudência uma questão que tem sido descurada até o presente momento: se é certo que, em se tratando de direito disponível, o indiciado ou réu pode assumir qualquer obrigação ou dever, através de cláusulas constantes do acordo de cooperação premiada, também é certo que o dever previsto na lei específica é apenas de colaborar efetivamente com a investigação criminal e, sendo possível, ressarcir o dano à vítima, sob pena de não se beneficiar com os prêmios legais estipulados.

Sustentamos que o descumprimento, por parte do indiciado ou réu, de obrigações outras que não o dever de colaborar, não pode importar na “quebra da delação premiada”. Em outras palavras, se o delator não colaborar com a investigação da organização criminosa, não gozará de qualquer benefício legal estipulado no negócio jurídico processual. Não pode ele mentir ou omitir fatos relevantes que sabe e que tenham relevância para o inquérito ou processo penal. Agora, se o indiciado ou réu efetivamente colaborar, mas descumprir uma obrigação ou dever estranha à própria investigação, não pode ser privado dos prêmios legalmente previstos no acordo de “delação premiada”.

Se assim for, caberiam umas indagações inusitadas: este acordo de cooperação premiada, homologado judicialmente, seria título executivo judicial para legitimar um processo de execução? E a indenização da ofendida (vítima), no caso, a Petrobrás S.A., ficaria ela desfalcada? A autora da execução seria a União? Qual o órgão jurisdicional competente?

A partir daí, muitas outras indagações poderiam ser feitas … Não faltaria algum impertinente que cogitasse de uma nova forma de lavagem de dinheiro ou alguém que viesse a insinuar, de forma caluniosa, que algum agente público teria recebido ou exigido alguma comissão “por fora”…

Volto a dizer: é preciso muito cuidado com tudo isso, mesmo por que o nosso país é muito grande e desigual, em vários aspectos. A realidade sobre a qual atua o Ministério Público Federal é distinta da realidade sobre qual atua o Ministério Público dos Estados.

Passei 31 anos de minha vida nesta importante Instituição e não desejo vê-la desacreditada por atos insólitos e questionáveis pela sociedade. Se faço algumas críticas é por que gosto do Ministério Público e o tenho como uma das grandes conquistas do nosso mundo contemporâneo.

9 – TRÊS REFLEXÕES SOBRE O ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA

Gostaria aqui de trazer a debate três questões relativas ao instituto da colaboração premiada (delação premiada), que não estão merecendo a devida atenção dos intérpretes e aplicadores do Direito:

1 – Na medida em que existe um entendimento majoritário de que o Poder Judiciário, ao homologar o acordo de cooperação premiada, fica vinculado a seus termos, não podendo negar os benefícios do delator ali previstos, em sua futura sentença condenatória, entendo que a sua homologação deve resultar de decisão do colegiado, nas hipóteses de crimes da competência originária dos tribunais. Não sendo assim, de duas uma: ou a homologação do relator obrigaria a todos os julgadores do colegiado, violando a liberdade de julgar segundo sua convicção, ou eles poderiam condenar de forma diversa da prevista no acordo. Tal não seria sequer ético, pois o colaborador seria enganado. Assim, reconsidero o que sustentei em trabalho apresentado no ano passado ao Congresso Nacional do Ministério Público, realizado aqui no Estado do Rio de Janeiro, cujo teor está publicado neste site do Empório do Direito;

2 – O colaborador somente terá direito ao “Prêmio” se delatar a estrutura da sua associação criminosa ou a prática e autoria de crimes praticados por esta associação. Vale dizer, não pode o delator se beneficiar com abrandamento de penas por delatar crimes outros, que não estejam ligados diretamente a esta atividade delituosa. Lógico que pode (e até agradecemos …) denunciar outros crimes diversos. Entretanto, neste caso, não terá direito à premiação prevista na lei específica;

3 – Finalmente, reitero o que escrevi no trabalho intitulado “Nova Interpretação Sistemática da Colaboração Premiada”, no sentido de que o acordo entre o membro do Ministério Público e os criminosos confessos não pode derrogar regras cogentes do Código Penal e da Lei de Execução Penal, permitindo aplicação de regime de pena incompatível com a quantidade de pena privativa de liberdade. Por exemplo: 22 anos de reclusão em regime aberto, em prisão domiciliar com tornozeleiras eletrônicas. A este ponto não podemos levar este mal regulado acordo de vontades. Seria condicionar a aplicação do Direito Penal à vontade das partes processuais … Naquela oportunidade, aprofundei o exame desta questão.

10 – ACORDO DE COOPERAÇÃO PREMIADA. QUAIS SÃO OS LIMITES?

Ultimamente, tenho me ocupado com a extensão dos acordos de cooperação premiada (delação premiada), segundo noticiado pela imprensa e publicado em sites jurídicos especializados. Tenho me preocupado com a visão privatista e pragmática que vem grassando em nosso sistema processual penal. Daí, por que volto ao tema, com abordagens diferentes.

É imperioso reconhecer que o acordo de cooperação premiada é um negócio processual e, por conseguinte, regido pelas regras e princípios de Direito Público. Como é de todos sabido, as regras e princípios do Direito Penal e do Direito Processual Penal são cogentes e ficam fora do poder dispositivo das partes que atuam no processo penal. Como se costuma dizer, em termos de Direito Privado, pode-se fazer tudo o que não seja proibido, enquanto sob a égide do Direito Público, só se fazer o que seja expressamente permitido…

Nada obstante, estas premissas comezinhas, temos notícia de acordos de cooperação premiada que, em muito, extrapolam os limites jurídicos razoáveis, transformando regras do Direito Penal e Processual penal em objeto de negociação entre um órgão do Ministério Público e um “criminoso” (usei a expressão mais forte, porque o indiciado ou acusado confessa crimes e deve ser membro de uma organização criminosa). Vale dizer, estão negociando com regras imperativas e de aplicação obrigatória, caras à própria ideia de sistema. Desta forma, procuramos abaixo estabelecer alguns limites a estes acordos, partindo sempre da premissa acima explicitada.

Em trabalho anterior, apresentado ao XXI Congresso do Ministério Público, realizado no ano passado, na cidade do Rio de Janeiro, sustentamos que o Ministério Público não pode oferecer ao delator “prêmio” que não esteja expressamente previsto na lei específica. Tal limitação se refere não só ao tipo de benefício (prêmio), como também se refere à sua extensão, mesmo que temporal.

 Assim, o membro do Ministério Público não pode oferecer ao indiciado ou réu algo que importe em “afastamento” do Código Penal, Lei de Execução Penal ou Código de Processo Penal. Esta manifestação de vontade não pode se colocar acima do nosso sistema processual.

Destarte, o Poder Judiciário não deve homologar acordos de cooperação que consagrem “prêmios” não autorizados na lei cogente e, com mais razão, que contrariem tal lei. Não devem ser homologadas “delações premiadas” que prevejam cumprimento de penas altas em regimes não permitidos pela lei penal ou de execução penal, prisão domiciliar para penas de dez anos, bem como não deve ser homologada suspensão de processos penais para não aumentar penas já aplicadas, renúncias prévias do Ministério Público a eventuais e futuros recursos ou renúncia à propositura de futuras ações penais ou cíveis, etc., etc.

Já na perspectiva dos indiciados ou réus, cabem algumas restrições e ponderações. Primeiro, os investigados só podem eficazmente se comprometer a deveres ou obrigações que se insiram no seu poder de disponibilidade. Evidentemente, direitos indisponíveis não podem ser objeto de “negociação”. Por conseguinte, seria nula qualquer cláusula que vedasse ao indiciado o direito de exercer, futuramente, o seu direito de ação, mormente em se tratando de Habeas Corpus, como seria também inválida a renúncia prévia ao duplo grau de jurisdição.

Agora trazemos à consideração da doutrina e jurisprudência uma questão que tem sido descurada até o presente momento: se é certo que, em se tratando de direito disponível, o indiciado ou réu pode assumir qualquer obrigação ou dever, através de cláusulas constantes do acordo de cooperação premiada, também é certo que o dever previsto na lei específica é colaborar efetivamente com a investigação criminal, sob pena de não se beneficiar com os benefícios legais estipulados.

Sustentamos que o descumprimento, por parte do indiciado ou réu, de obrigações outras que não o dever de colaborar, não pode importar na “quebra da delação premiada”. Em outras palavras, se o colaborador não colaborar com a investigação da organização criminosa, não gozará de qualquer benefício legal estipulado no negócio jurídico processual. Não pode ele mentir ou omitir fatos relevantes que sabe e que tenham relevância para o inquérito ou processo penal. Agora, se o indiciado ou réu efetivamente colaborar, mas descumprir uma obrigação ou dever estranha à própria investigação, não pode ser privado dos prêmios legalmente previstos no acordo de “delação premiada”.

Note-se que, evidentemente, outras consequências jurídicas podem penalizar aqueles que não adimpliram as obrigações assumidas, desde que tais consequências não afastem os benefícios pela colaboração feita. Pomos um exemplo bizarro: se o réu deixar de dar assistência econômica a uma vítima do crime, descumprindo uma cláusula neste sentido constante do acordo de “delação premiada”, não pode deixar de se beneficiar dos prêmios legalmente prometidos, caso tenha realmente colaborado com as investigações. Tal omissão pode ser considerada na aplicação da pena base, mas não importa em “quebra” do acordo de colaboração.

Ademais, o indiciado ou réu só terá direito ao benefício legal, constante do acordo de cooperação premiada, se ajudar a investigação do crime de organização criminosa e dos crimes praticados por esta organização. O “prêmio” previsto no acordo não fica dependente da ajuda do colaborador na investigação de outras organizações criminosas ou de outros crime estranhos ao seu inquérito ou processo. Lógico que tais informações podem ser bem vindas, entretanto, não devem ser objeto do acordo de colaboração. Caso conste do acordo, não deve o indiciado ou réu perder o “prêmio” se deixar de colaborar com a apuração daqueles outros crimes, que não estão sendo objeto da investigação onde se deu a delação premiada.

Uma última advertência: esta amplitude de negociação (a nosso juízo, ilegal) pode até mesmo fragilizar o membro do Ministério Público, principalmente aquele que atua em comarcas distantes dos grandes centros. O crime organizado, o poder econômicos e o poder político podem pressionar o promotor ou procurador, constrangê-lo e até ameaça-lo para que determinado indiciado ou réu seja favorecido no acordo de cooperação premiada. Sabendo que o membro do Ministério Público pode conceder benefícios ao seu talante, fica ele exposto a todo tipo de ingerência; ao menos o cidadão comum tem o direito de suspeitar disso …

Por ser um instituto relativamente novo em nosso sistema jurídico e, tendo em vista o grande apoio popular à atual apuração dos crimes de corrupção em nosso país, avaliamos que os tribunais estão muito cautelosos no enfrentamento destas questões, mormente diante de lacunas na doutrina sobre estes temas mais específicos.

O meu temor é que alguns exemplos equivocados da chamada “operação Lava-Jato”, segundo o que vem sendo veiculado pela imprensa, sejam disseminados por todo o nosso extenso território. Temo que o Direito Penal resulte fragmentado e com aplicação insólita pelos vários órgãos jurisdicionais de nosso pais. Temo que a aplicação uniforme das regras do nosso sistema penal fique na dependência da vontade de um Promotor de Justiça e de um “criminoso”… A este nível de privatização das regras de Direito Público não podemos chegar, tornando caótica a atuação de nosso sistema judiciário penal. Se prevalecer a prática atual, talvez não possamos mais falar sequer em “sistema”…

Afranio Silva Jardim é mestre e livre-docente em Direito Processual Penal. Professor Associado da Faculdade de Direito da Uerj (graduação, mestrado e doutorado). Procurador de Justiça (aposentado).

Redação

1 Comentário

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  1. Delação premiada!

    Não se já contei aqui, mas, se sim, vou contar de novo, para exemplificar.

    Essas delações premiadas lembram uma das inúmeras piadinhas que meu pai contava.

    Guri mentiroso chega na sala falando para a professora que ganhou um vizinho novo, e que tem três braços. Foi um descrédito total, sem contar a “zoeira” dos coleguinhas. Aí ele se socorre do amigo do peito, que, não querendo constranger o amigo, diz.: – Bem, professora, domingo fui na casa dele e, quando jogámos bola, ela caiu na casa desse vizinho. Fomos buscar. Ele não estava. Mas a mulher dele deixou a gente pegar a bola. Aí, professora, eu vi, no varal, uma camisa com três mangas.

    A delação premiada é mais ou menos isso: uma camisa com três mangas!

     

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