Por Marco Antonio L.
Fiesp e CIA: os estranhos visitantes do Dops
No Vermelho
O que um representante da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) faria em um centro de torturas da ditadura civil-militar (1964-1985) durante madrugadas? O que levaria um cônsul dos Estados Unidos a esse mesmo lugar repetidas vezes, por longas horas?
Por Patrícia Benvenuti, no Brasil de Fato
É sobre essas questões se que se debruçam atualmente os membros da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Por meio de investigações, a Comissão apurou que pessoas ligadas à Fiesp e ao Consulado eram presença constante durante os dias e as noites do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Dops), um dos órgãos repressores criados pelo regime.
Para tentar esclarecer esses fatos, a Comissão Estadual da Verdade realizará uma audiência pública na próxima segunda-feira (18), às 14h, na Assembleia Legislativa (Alesp), onde apresentará os documentos que embasaram as investigações.
“Coincidência”? Cônsul estadunidense entra no Dops cinco minutos depois
do capitão Ênio Pimentel Silveira, um dos torturadores mais famosos
do período – Foto: Documentos do Arquivo Público do Estado de São Paulo
Visitas frequentes
A chave para a descoberta foi uma pesquisa no “Coincidência”? Cônsul estadunidense entra no Dops cinco minutos depois do capitão Ênio Pimentel Silveira, um dos torturadores mais famosos do período. Ao checar os livros de registro de entrada e saída do prédio do Dops, localizado no centro da capital paulista, integrantes da Comissão Estadual da Verdade perceberam a frequência de dois nomes, que não faziam parte das equipes policiais: “Dr. Geraldo Rezende de Matos”, que se apresentava no formulário como “Fiesp”, e “Dr. Halliwell”, que assinava como “Consulado Americano”.
Além da assiduidade, despertaram atenção os horários em que os representantes da Fiesp e do consulado estadunidense se dirigiam ao prédio do Dops e as longas horas em que permaneciam ali.
Somente nos meses de abril a setembro de 1971 (os livros com os outros meses deste ano desapareceram), Geraldo Rezende de Matos, da Fiesp, dirigiuse ao local 40 vezes. Em uma dessas visitas, sua entrada ocorreu às 17h30min, mas não consta horário de saída. Como os funcionários da portaria trabalhavam apenas até 22h, os movimentos feitos depois deste horário não eram anotados. Significa, então, que Matos teria ficado além das 22h.
Já em outro registro, de 24 de abril de 1972, o representante da Fiesp entra no prédio às 18h20 e sai às 12h35 do dia seguinte, 25 de abril. Foram cerca de 18 horas no local.
“O que o cara da Fiesp ia fazer lá? Essa é a pergunta que fazemos”, explica o coordenador da Comissão Estadual da Verdade, Ivan Seixas.
Seixas, que também é ex-preso político e membro da Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos, conta que a Comissão já pediu esclarecimentos à Fiesp sobre o assunto. A federação, por sua vez, alega não ter registros de Geraldo Rezende de Matos.
De acordo com investigações da Comissão, Matos era um empresário ligado aos ramos de metalurgia, além de possuir uma empresa de seguros e reparação que atendia militares.
“A Fiesp tem que explicar isso, não estamos inventando nada”, destaca o presidente da Comissão Estadual da Verdade, o deputado Adriano Diogo (PT-SP). “Queremos saber por que uma pessoa que ia ao Dops, [onde] permanecia horas e madrugadas, assinava como representante da Fiesp”, completa.
A Fiesp foi convidada para prestar esclarecimentos sobre o caso na audiência pública do dia 18. A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa da federação, que não soube informar se a instituição estará representada.
Empresariado
Os vínculos do empresariado com os agentes da ditadura são assunto antigo de pesquisas e estudos. O tema é a base do documentário Cidadão Boilesen (2009), dirigido por Chaim Litewski. O filme, que resgata a vida do empresário dinamarquês Henning Boilesen, desvela não apenas as contribuições financeiras do protagonista (então presidente do grupo Ultra) ao aparato militar, mas de diversas figuras ligadas a organizações multinacionais e instituições, incluindo a Fiesp.
Em novembro, o coordenador da Comissão da Verdade, Cláudio Fonteles, divulgou um texto em que relaciona a Fiesp à produção de armas para os militares que derrubaram João Goulart da presidência em 1964. No documento, Fonteles cita um relatório confidencial produzido pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), hoje sob guarda do Arquivo Nacional, que descreve a criação do Grupo Permanente de Mobilização Industrial (GPMI) em 31 de março de 1964, data do golpe. De acordo com o documento, o órgão teve a função de fornecer “armas e equipamentos militares aos revolucionários paulistas”.
O caso de Geraldo Rezende de Matos, no entanto, desperta na Comissão outra suspeita. Para Seixas, é provável que as idas de Matos ao Dops visassem a troca de informações entre empresários, a polícia e o Exército. “Vem à cabeça de todo mundo, quando se fala em empresários e repressão, o financiamento. Mas nós não estamos trabalhando com essa hipótese. Para nós, a Fiesp ia lá entregar nomes de operários para serem reprimidos”, esclarece Seixas.
Consulado
Já o “Dr. Halliwell” dos livros de registros era Claris Rowley Halliwell (19182006), cônsul estadunidense no Brasil entre 1971 e 1974. Junto à Universidade de San Diego, na Califórnia, a Comissão apurou que Halliwell teria integrado o serviço secreto dos Estados Unidos, a CIA.
Assim como Geraldo Rezende de Matos, ele também comparecia com frequência ao Dops, sobretudo à noite, onde permanecia durante toda a madrugada. De abril a setembro de 1971, Halliwell esteve no local 31 vezes, de acordo com os registros.
Em uma das idas, em 5 de abril de 1971, seu ingresso no prédio ocorreu às 12h40min da tarde, cinco minutos depois da entrada do capitão Ênio Pimentel Silveira, torturador que ficou conhecido como “Dr. Ney”. Ambos permaneceram no prédio além das 22h.
As “coincidências” não param por aí. Nesse mesmo dia, pela manhã, havia sido preso e levado para o Dops Devanir José de Carvalho, dirigente do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Depois de uma série de torturas, Carvalho faleceu em 7 de abril.
Para Ivan Seixas, não há como negar o envolvimento do cônsul com os crimes. “Nos prédios do Dops e da Oban [Operação Bandeirante], quando se torturava não era segredo. O prédio inteiro ouvia, a vizinhança também. O mínimo que se pode dizer era que o ‘cara’ [cônsul] era conivente, mas eu acho que [ele] era participante”, diz Seixas. Depois de sair do Brasil, Halliwell foi cônsul estadunidense no Chile – onde, um ano antes, um golpe de Estado havia tirado do poder Salvador Allende.
“A gente acha que essas coisas são de filme de ficção científica, que ‘na minha terra não tem isso’. O ‘cara’ não estava levando os passaportes para a Disneylândia, era um agente da CIA”, ressalta o deputado Adriano Diogo, que integrou a militância estudantil durante o regime.
Para o deputado, a revelação desses registros ajudará a contar a história desse período e a revelar quem praticou e engendrou os crimes.“Os documentos evidenciam a existência de uma enorme organização criminosa que se reunia nas dependências do Dops para torturar as pessoas, matar e planejar sequestros”, pontua.
Por MiriamL
Registros revelam ligação de empresários e embaixada com o regime militar em SP
Lista com nomes começará a ser revelada nesta segunda-feira (18), em audiência pública da Comissão Estadual da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo
Vasconcelo Quadros – iG São Paulo | 16/02/2013 08:00:00 – Atualizada às 16/02/2013 10:51:17
Um conjunto de livros de registro de presenças encontrado na sede de um dos centros de repressão em São Paulo revela a estreita relação entre empresários e a embaixada americana com a ditadura militar brasileira. As anotações à mão mostram que o empresário Geraldo Rezende de Matos, que se apresentava como representante da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), e o ex-cônsul dos Estados Unidos na capital paulista, Claris Rowley Halliwell, participavam assiduamente de reuniões com agentes da repressão.
A Comissão Estadual da Verdade encontrou entre os documentos do antigo Departamento Estadual de Ordem Polícia e Social (Deops) – que funcionava no Largo General Osório, região
central de São Paulo e um dos centros de prisão e tortura de presos políticos – pelo menos oito livros com anotações à caneta listando personagens que se reuniam no local.
Divulgação Lista será apresentava na Comissão Estadual da Verdade, nesta segunda-feira, na Alesp
Nele figuram nomes de dezenas de empresários que iam à sede do Deops para participar de reuniões com o delegado Sérgio Paranhos Fleury, o maior nome da repressão em São Paulo.
Segundo os livros, tanto Rezende de Matos quanto o cônsul americano, em muitas ocasiões, entravam no prédio no início da noite e só saiam na manhã do dia seguinte.
“É a ponta do iceberg”, diz o deputado Adriano Diogo (PT), presidente da Comissão Estadual da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Ele acha que as anotações demonstram a promiscuidade e o envolvimento direto de grandes empresários no financiamento do golpe civil-militar e na manutenção do esquema repressivo durante os anos de chumbo, especialmente no período de repressão mais dura em São Paulo, entre 1971 e 1973.
Na lista de frequentadores do Deops, além de policiais e empresários, há também os nomes de militares que atuavam em outra frente da repressão, a Operação Bandeirantes (Oban), que funcionava na rua Tutóia, zona sul da capital. Ao contrário do que a própria esquerda avaliou ao longo da história dos anos de chumbo, civis e militares formavam um grupo coeso.
“Sempre imaginamos que havia um racha na repressão. Mas não é verdade. Os registros revelam que Deops e Oban estavam articulados”, diz o ativista Ivan Seixas, ex-preso político e membro da Comissão da Verdade. O Chefe da Oban, o coronel da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra, por exemplo, participava das reuniões com Fleury e empresários, conforme apontam os registros.
Nos livros há também o curioso registro da presença constante da ex-ministra Zélia Cardoso de Melo no prédio do Deops no mesmo período em que os empresários frequentavam o local. A ex-ministra visitava o pai, o delegado Emiliano Cardoso de Melo, apontado agora pela Comissão Estadual da Verdade como um dos nomes fortes da repressão.
A lista de empresários encontrada nos livros do Deops será aberta em audiência pública marcada para esta segunda-feira. Será a primeira parte do capítulo que tratará da participação de empresários paulistas na arrecadação de recursos para financiar a repressão.
O mais conhecido entre os operadores financeiros do grupo é ex-diretor do Grupo Ultragas, Henning Albert Boilensen, que assistia a sessões de tortura. Boilensen foi executado por um grupo guerrilheiro em 1971 como represália.
Um documento produzido pelo antigo Serviço Nacional de Informações (SNI), encontrado no Arquivo Nacional, em Brasília, pelo procurador Claudio Fonteles, mostra que os militares chegaram a criar um setor específico para fazer a articulação entre militares e empresários em São Paulo. Chamava-se Grupo Permanente de Mobilização Industrial (GPMI) e era, segundo Fonteles, órgão da Fiesp.
A aliança entre empresas e os militares, segundo Adriano Diogo, era baseada também da reciprocidade de favores: apoio ao combate às organizações da esquerda armada em troca de facilidades que permitissem às empresas se expandir. Nesse grupo estão bancos, grandes montadoras e o grosso do empresariado que, à época, se abrigava na poderosa Fiesp. A lista a ser revelada nesta segunda deverá trazer algumas surpresas.
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