Como o réu é culpado, não é preciso provar a culpa, por Fábio Tofic Simantob

Ana Gabriela Sales
Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.
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do Migalhas

“Como o réu é culpado, não é preciso provar a culpa”

por Fábio Tofic Simantob

A Lava Jato se tornou conhecida por inovar no exame da culpabilidade, aumentando a hipótese de incidência do chamado dolo eventual, até por buscar introduzir no Brasil conceitos estrangeiros como o da cegueira deliberada, mas é inédito inclusive na operação Lava Jato uma sentença que simplesmente se desobriga de provar o dolo (conhecimento e vontade).

Fui convidado no ano passado a integrar respeitado grupo de juristas e advogados que escreveria sobre a condenação do ex-Presidente Lula no caso conhecido como triplex. Li e analisei detidamente a sentença, mas na época acabei recusando o honroso convite, por falta de tempo para me dedicar ao projeto com o esmero que a missão exigia.

Agora, já com mais calma, e aproveitando o ritmo mais lento que esta época do ano nos proporciona, procuro, nestas rápidas linhas, compartilhar as conclusões que, penso eu, interessam – ou deveriam interessar – a qualquer estudioso ou curioso do direito penal. A intenção deste artigo não é fazer uma defesa incondicional, muito menos política do ex-Presidente, mas uma análise técnica da sentença. Tanto é assim que os fatos que serão levados em consideração são aqueles que a própria sentença adota como verdadeiros, e não aqueles que constam na versão de interrogatório do ex-Presidente. Não estudei os autos, tão somente a sentença.

De acordo com a análise aqui feita, importa menos se o tríplex pertence ou não ao ex-Presidente, e mais a relação do imóvel com algum ato de corrupção.

O ex-Presidente Lula foi acusado de corrupção porque, nas palavras da sentença, a empresa OAS lhe teria pago propina em virtude de contratos ilícitos com a Petrobras. Afirma a sentença que “os valores teriam sido corporificados com a DISPONIBILIZAÇÃO ao ex-Presidente do apartamento 164-A, triplex, do Condomínio Solaris (…) sem que fosse cobrada a diferença de preço (…)”. O imóvel ainda “… teria sofrido reformas e benfeitorias a cargo do Grupo OAS para atender ao ex-Presidente”.

Tomando emprestado feliz expressão de HASSEMER, o jurista olha o fato criminoso pelas lentes do tipo penal. Logo, nenhuma outra análise interessa a este caso que não seja pelo prisma do artigo 317 do Código Penal Brasileiro.

O tipo penal do artigo 317 comina pena de 2 a 12 anos àquele que “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função, ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”.

O crime de corrupção passiva contém duas elementares principais, a vantagem indevida, e uso da função pública, o que alguns chamam de ato de ofício. Ato de ofício é o ato próprio da função pública que, por vantagem econômica indevida, o agente aceita praticar. Alguns julgados, no entanto, têm diminuído a importância desta circunstância na hora de condenar, contentando-se com o fato de a vantagem ter sido obtida em razão da função pública, algo bem mais genérico.

Independentemente do entendimento que se tenha, numa coisa a jurisprudência é unânime: se a corrupção precisa estar relacionada com a função pública, por uma questão lógica, só é crime se o agente aceita promessa de vantagem antes ou enquanto ocupa a função, jamais depois.

A questão crucial do processo, portanto, era saber, primeiro, se o Presidente solicitouaceitou ou recebeu promessa de vantagem de qualquer natureza da empresa OAS no período em que era Presidente; segundo, se o fato estaria relacionado ao exercício da função públicaterceiro, se o Presidente teria ofertado em contrapartida vantagem a algum agente privado (o chamado ato de ofício), e quarto, se há prova de que sabia dos ilícitos na Petrobras ou dos acertos de contas de Leo Pinheiro e Vaccari.

Ocorre que se extrai da própria sentença duas premissas que infirmam a possibilidade de crime. Primeiro é no trecho do depoimento de LEO PINHEIRO onde afirma que quando adquiriu a BANCOOP, lhe foi dito que o tríplex era de Lula. Ora, se isto for verdade, como a sentença adota que é, então não foi a OAS que lhe deu o imóvel de presente, fazendo assim ruir uma das premissas da acusação.

Restaria então questionar as reformas feitas no imóvel em 2014. Bom, em 2014, Lula já não era mais presidente fazia alguns anos. O que não impede, é forçoso reconhecer, que durante o exercício da função pública alguém pudesse lhe ter feito uma promessa de vantagem que só seria cumprida anos depois. Havendo prova disto, responde o agente público por corrupção.

Sucede que a sentença não aponta prova nesta direção. Muito pelo contrário, de acordo com a sentença, a decisão de dar a reforma de presente ao ex-Presidente foi tomada apenas em 2014. Em conversa entre LEO PIHEIRO e VACCARI em 2014, citada na sentença, aquele lhe indaga quem afinal iria arcar com as despesas da reforma.

Ora, se a reforma, ou o valor correspondente a ela fizesse parte de algum acerto de propina da época em que Lula era Presidente, esta pergunta seria totalmente despropositada.

Mais emblemática ainda é a resposta que, segundo LEO PINHEIRO, VACCARI teria lhe dado na ocasião.

“… eu levei para o Vaccari e isso fez parte de um encontro de contas com ele, o Vaccari me disse naquela ocasião que, como se tratava de despesas de compromissos pessoais, ele iria consultar o presidente, voltou para mim e disse ‘Tudo ok, você pode fazer o encontro de contas’, então não tem dúvida se ele sabia ou não, claro que sabia” (fls. 128).

O relato de LEO PINHEIRO mostra que seu acerto original com VACCARI não envolvia custeio de despesas pessoais de Lula, e que o ajuste final sobre bancar as benfeitorias no tríplex ocorreu apenas em 2014, e não na época em que ocupava função pública. Revela, ademais, que o acerto foi feito entre LEO PINHEIRO e VACCARI, não com o ex-Presidente. Premissas que extraio, repito, da própria sentença.

Mesmo tomando como verdadeiro o depoimento de LEO PINHEIRO, quando reporta a ocorrência do citado diálogo com VACCARI, não há prova alguma – não pelo menos apontada na sentença – de que VACCARI tenha de fato tratado do assunto com o ex-Presidente. Isto sem dizer que LEO PINHEIRO prestou depoimento na qualidade de réu, não como testemunha, logo, sem compromisso de dizer a verdade.

Seja como for, nada na sentença demonstra que Lula tivesse aceito promessa de coisa alguma antes de 2014. Não estamos dizendo que não aceitou, apenas que a sentença não o demonstra, o que em um julgamento penal é exigência indeclinável.

Questionável, reprovável, condenável moralmente um ex-Presidente aceitar de presente um mimo de uma empreiteira? Se for verdade, nos parece censurável. Mas não crime, não pelo menos de acordo com a lei brasileira.

Não se conhece, porém, na história da jurisprudência brasileira um único caso em que o agente público é condenado por aceitar pequenos favores anos depois de deixar a função pública.

O método interpretativo da sentença não é baseado em prova, o que fica claro quando diz no item 850 que como o ex-Presidente não forneceu nenhuma explicação hábil para a reforma, então se conclui que é propina, revelando que, no frigir dos ovos, opera com presunções que, de mais a mais, acabam por gerar uma das mais odiosas arbitrariedades que um julgamento penal pode cometer, a inversão do ônus da prova, relegando à defesa o papel de provar a inocência, e retirando da acusação o ônus de provar a culpa.

De mais a mais, a indagação do porquê alguém faria esta cortesia ao ex-Presidente em 2014 não parece enfrentar obstáculos sérios para achar uma resposta. Ora, parece óbvio que agradar um dos homens mais poderosos e influentes do país, ainda que não ocupasse função pública, não era algo que se devesse negligenciar de acordo com a mentalidade vigente no setor na época em que ocorreram os fatos.

Por outro lado, o único ato próprio da função que a sentença atribui ao Presidente é um ato lícito, ter dado a palavra final na nomeação de diretores para a Petrobras. Ainda assim, para condená-lo por corrupção a sentença não poderia se desincumbir do dever de mostrar que, ao nomear este ou aquele diretor, Lula já arquitetava usá-los para favorecer as empresas, cobrando-lhes propina, como contrapartida.

Para superar este obstáculo argumentativo, a sentença recorre a um método retórico que pode passar despercebido a um leitor desatento, mas não resiste a uma análise mais acurada. Hipóteses ainda sujeitas a comprovação foram tratadas na sentença como verdades absolutas, como se já tivessem passado pelo escrutínio da prova.

Este método foi usado em dois momentos decisivos da sentença. O primeiro foi no item 857, onde afirma que, “como foi provado o crime de corrupção”, é irrelevante discutir se Lula “tinha ou não conhecimento do papel específico dos Diretores da Petrobrás na arrecadação de propinas”. A sentença, primeiro, parte da premissa de que o réu cometeu o crime de corrupção para depois concluir que, portanto, sabia dos ilícitos. A equação está claramente invertida. Com este estratagema a sentença se desincumbiu, como que em um passe de mágica, de demonstrar o dolo.

É como se o juiz dissesse “como o réu é culpado, não é necessário provar a culpa”. O mesmo método se repetiu no item 890, quando a sentença volta a usar o mesmo sofisma, afirmando que “tendo sido beneficiado materialmente de parte de propina decorrentes de acerto de corrupção em contratos com a Petrobrás (…) não tem como negar conhecimento do esquema criminoso”.

Não existe crime de corrupção, a menos que o agente tenha atuado com dolo (consciência e vontade).

Logo, a sentença jamais poderia ter afirmado que “pelo fato de ter sido beneficiado não tem como negar que sabia”, porque está dizendo que o elemento subjetivo do tipo se presume, não precisa ser provado. É como se dissesse que alguém pode ser responsabilizado criminalmente mesmo sem culpa.

Semelhante forma de proceder não guarda paralelo nem mesmo com outros julgamentos realizados em Curitiba. A Lava Jato se tornou conhecida por inovar no exame da culpabilidade, aumentando a hipótese de incidência do chamado dolo eventual, até por buscar introduzir no Brasil conceitos estrangeiros como o da cegueira deliberada, mas é inédito inclusive na Operação Lava Jato uma sentença que simplesmente se desobriga de provar o dolo (conhecimento e vontade).

Em suma pela atenta leitura da sentença, se extraem algumas conclusões. Nenhuma prova é citada no sentido de que Lula tenha aceito promessa de vantagem enquanto era Presidente da República. E ato ilegal algum lhe é atribuído, a não ser ato de nomear diretores para a Petrobras sem demonstração de conhecimento ou ciência dos mal feitos praticados por eles, e muito menos de algum ato, gesto ou conduta praticado pelo ex-Presidente no sentido de favorecer ilegalmente alguma empresa.

Eis, pois, nossa pequena contribuição para este debate em torno deste caso específico (nenhuma análise fizemos de outros casos envolvendo o ex-Presidente), um caso circundado por paixões de lado a lado. Como dissemos no início, a preocupação aqui foi menos entender o fato histórico, fugindo inclusive da controvérsia colocada na mídia, focada em discutir se o tríplex é ou não é do Lula, e muito mais analisar os fundamentos jurídicos usados na sentença para condenar, único interesse que, a juristas e advogados, o caso deve ou deveria suscitar.

Não custa lembrar que o julgamento penal exige provas e exige certeza, ou algo próximo disto. A dúvida gerada pela falta de provas permite no máximo um julgamento moral, e o julgamento moral não cabe entre as paredes apertadas do tribunal; pertence às ruas, à política, enfim, às urnas.

Um grande desafio colocado sobre os ombros dos desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª região, juízes experientes, técnicos e cultos, a quem desejo sorte e altivez de espírito para enfrentarem com destemor a horda das ruas.

*Fábio Tofic Simantob é advogado criminalista (Tofic Simantob Advogados).

Ana Gabriela Sales

Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.

8 Comentários

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  1.  
    Trocando em

     

    Trocando em miúdos.

    Enquanto a Lava Jato – instrumento, peça e mecanismo do maior assalto ocorrido no país – prossegue, o corporativismo de certos setores da Justiça pretende dar as cartas e se firmar corrompendo a CF, as leis e a Justiça.

    Lava Jato, mega-golpe muito superior aos golpes financeiros do assim chamados encilhamentos (quando da passagem da monarquia para a república e da implementação e execução do plano real).

    Superior ao dos golpes do  Banestado (desvios de dinheiro e evasões de divisas que atingiram – segundo Requião – a cifra de 124 bilhões de dólares), ao do Sudan, ao das privatizações…

    Lava Jato, um breve resumo do assalto:

    – indústria da delações

    – balcão de benefícios penais e pecuniários

    – honorários fabulosos

    – corrupção da CF e das leis materiais e processuais

    – indústria das indenizações (ex. acordo da Petrobrás nos EUA de mais de 9,6 bilhões de reais)

    – desvalorização dos ativos e valores da empresas denunciadas

    – ataque à soberania nacional

    – privatizações

    – Temer e entourage

    É o que se pode deduzir da vastíssima publicação de matérias, fatos, narrativas, artigos e entrevistas produzidos por autores sérios e responsáveis das mais diversas correntes.

  2. coisa de comprade

    fica evidente que era um acerto de compradres. Leo tinha um imovel que o EX presidente negociava, junto a esposa (a real interessada no imovel) e que Dona Marisa tinha o interesse de comprar, explicitado no contrato de compra de cotas junto á BANCOOP.  Dois agentes privados negociando uma propriedade. Se Lula tivesse comprado por R$ 1,00, a unica coisa que pode-se concluir é que Léo era um idiota pois JÄ não havia mais nenhuma garantia que Lula pudesse aceitar suborno (não era mais agente publico. Ok, mas estava na verdade estava pagando por uma facilidade JÁ concedida. Oras, não paga-se uma facilidade após o sujeito não ter mais o poder de interferir pois A INTERFERENCIA se faz pelo poder do cargo!

    Então, Srs, é coisa de comprades e Moro não poderia entrar no mérito de uma negociação entre 2 partes PRIVADAS pois privada é a negociação.

  3. Moro constrói

    Moro constrói propositadamente sentenças com o intuito de confundir – longas, repetitivas, cansativas de ler, repletas de citações favoráveis em incidentes processuais superados (que em poucas linhas poderiam ser expostos) e, assim, não às claras, insere – em conclusão argumentativa – certeza acusatórias falsas.

    Portanto, não me surperende os equívocos da sentença ora apontados pelo articulista acima.

    Assim, cito exemplo retirado de uma de suas sentenças em processo da Lava Jato:

    171. Esclareça-­se que a Petrobrás tem como padrão admitir a contratação por preço no máximo 20% superior a sua estimativa e no mínimo 15% inferior a ela. Acima de 20% o preço é considerado excessivo, abaixo de 15% a proposta é considerada inexequível. Esses parâmetros de contratação foram descritos cumpridamente em juízo por várias testemunhas, constanto ainda em documentos oficiais da Petrobrás, além de não serem controversos.

    279. Não há nenhuma prova de que as estimativas de preço da Petrobrás estivessem equivocadas.

    281. É certo, porém, que a Petrobrás estimou as obras em valor bastante inferior ao das propostas vencedoras, em uma delas até 17% a menos, o que é bastante significativo em contratos de bilhões de reais.

    Fonte: AÇÃO PENAL No 5012331­04.2015.4.04.7000/PR (João Vaccari Neto; Alberto Youssef; Renato de Souza Duque, Barusco Filho; Paulo Roberto Costa e outros)

    Ou seja, nos itens 171 e 279 diz reconhecer o Padrão de Contratação da Petrobras incontestes e justificável para depois afirmar que a Petrobrás estimou valor inferior ao das propostas vencedoras, em uma delas até 17% a menos.

  4. COMO DEVERÍAMOS NOS DEFENDER DE IN JUSTIÇAS ASSIM?

    É PRECISO REVELAR OS CULPADOS!

    Por pior que o Lula seja, para alguns, não podemos desejar um julgamento injusto! Pois amanhã podemos estar em seu lugar…

    MANEIRA CORRETA DE SE ENFRENTAR O CASO:

    1) Pedir o impedimento desse juiz, afastando-o desse processo, devido às suas declarações.

    2) Fazer o pedido parar no STF.

    3) O juiz ou juízes que negarem o pedido, diante de flagrante falta de isenção dentro do processo, a gente pede o seu impeachment!

    4) O presidente do senado engaveta o pedido, como de costume, e a gente convoca seu REFERENDO REVOCATÓRIO DE MANDATO, cassando-o de seu cargo, e encerrando sua carreira política.

    SÓ TEM UM PROBLEMA!

    O próprio PT não defende esse nosso direito, e ele mesmo retirou da lei esse poder do povo convocar REFERENDOS com seus ABAIXO ASSINADOS. Confiram:

    https://democraciadiretanobrasil.blogspot.com.br/2017/06/lindberg-farias-traiu-o-povo-brasileiro.html

    Lula prova do próprio veneno, ou está aprontando de novo?

    E se houve acordo pra livrar a cara do Aécio e do Lula? Confiram como o PT defendeu com unhas e dentes a impunidade dos políticos:

    https://democraciadiretanobrasil.blogspot.com.br/2017/09/o-pt-apodrece-defende-aecio-e-impunidade.html

    Nesse caso, os facilmente previsíveis como desgastados Moro, Temer, e globo, são seus melhores cabos eleitorais. Ou seja, quanto mais batem, mais votos ganham pro Lula…

    Não seria Lula o candidato do imperialismo estrangeiro e dos neoliberais, para quando a direitona estiver desgastada?

    Por que será que em 13 anos ele não quebrou o monopólio da globo?

    Lula coloca novamente os coxinhas no bolso! Junto com os “cumpanherus”, é claro…

     

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