Criminalização da advocacia está cada vez mais comum, por Theuan Carvalho

Do Justificando

A criminalização da advocacia está cada vez mais comum

por Theuan Carvalho Gomes da Silva

Virou notícia o voto de um desembargador paulista que determinava remessa de cópia dos autos de ação de habeas corpus à Procuradoria Geral de Justiça para que fosse instaurado procedimento de investigação contra o advogado do caso. Isso porque o defensor, em sua sustentação oral, contou uma história, com nomes trocados, de três pessoas bem-sucedidas em suas áreas de atuação que usavam maconha com frequência.

Para o desembargador, o advogado supostamente teria praticado o delito de apologia ao crime ao “relatar o consumo de substância entorpecente por pessoas tão bem sucedidas” (sic). Ainda, determinou que fosse oficiada à Corregedoria Geral de Justiça para apurar o caso de um desses três personagens, que, de acordo com a narrativa do defensor, era um Juiz de Direito. O mais interessante é que, mesmo tendo feito tudo isso, o desembargador relator concedia a ordem de habeas corpus, tendo sido voto vencido. Afora a tenebrosa tentativa de criminalização da advocacia, e dos fracassados argumentos de guerra às drogas evocados nos votos vencedores, as razões as quais o desembargador relator suscitou para conceder a ordem são, no mínimo, preocupantes, e evidenciam as irracionalidades da decisão jurídica.

O caso tratava de conversão de prisão em flagrante em preventiva. A defesa se insurgia contra os conhecidos argumentos genéricos da garantia da ordem pública e da abstrata gravidade do delito usados pelo juízo de primeiro grau para justificar a segregação cautelar. Aliás, esse tipo de argumentação genérica é comumente utilizado para conversão da prisão em flagrante em preventiva, conforme demonstrado por pesquisa recente realizada pelo IDDD [1], na cidade de São Paulo. Esse tipo de decisão contribui, sobremaneira, para o inchaço do sistema prisional, que hoje conta com 41% de pessoas presas sem condenação, alçando o Brasil ao terceiro país que mais prende no mundo. [2]

Não há dúvidas que o advogado estava no pleno exercício da profissão no momento em que, para persuadir os julgadores, ilustrou o argumento com história de pessoas bem-sucedidas e que eram usuários de maconha. A ideia era demonstrar que, para não se exporem tanto, as pessoas compravam grandes quantidades de uma única vez. O advogado confirmava, assim, que embora a pessoa possuísse bastante quantidade de droga, isso não significava necessariamente que se tratava de tráfico, mas sim de uso, já que o elemento da mercancia não pode ser deduzido apenas da quantidade. A tese jurídica apresentada nem de longe poderia caracterizar o delito de apologia previsto no art. 287 do CP. As tentativas de criminalização da advocacia estão cada vez mais escancaradas. Grampos em escritórios, advogados que são impedidos de falar com seus clientes presos em delegacias e, agora, a criminalização de teses jurídicas.

Como se não bastasse, em decisão que acolheu embargos de declaração, o desembargador relator reconheceu a omissão que pleiteava a inclusão das razões do voto vencido no acórdão. E as razões foram as seguintes:

Depois de esclarecer, como afirmado no bojo dos embargos, que decidiria de modo contrário ao que tenho feito nas últimas décadas, afirmei ter ficado condoído da condição do pai do paciente, presente em meu Gabinete de trabalho, com clara demonstração do desgaste que lhe proporciona o proceder do filho. Asseverei, tanto na sessão de julgamento, como o faço agora, ter sido movido, não por alguma razão jurídica relevante nem por algum princípio de política criminal, mas apenas por ter tido tocado meu coração de pai. Sensibilizou-me o sofrimento daquele homem, disposto a praticamente qualquer coisa para proteger seu filho, prontificando-se a adotar providências enérgicas para afastá-lo da senda que deliberara percorrer. O exame dos documentos dos autos levou-me à convicção de que não são recentes os problemas e os aborrecimentos que esse filho “proporciona” aos pais: Já adulto formado, não tem sequer o colegial completo; sendo filho do dono do escritório de advocacia e de contabilidade, ali exerce a simples função de auxiliar de escritório. É possível avaliar que desde cedo, talvez por falta das medidas enérgicas agora disponíveis, desencaminhou-se o jovem. Tudo isso fez-me amolecer e pensar em libertar o infrator da nossa lei. (TJSP. HC 2261384-24.2015.8.26.0000. 9ª Câmara de Direito Criminal).

O julgador afirma, expressamente, que não foi nenhum argumento jurídico ou de política criminal que lhe fez mudar o posicionamento de décadas – frisa-se, posicionamento pela não concessão de habeas corpus em caso de tráfico. As razões expostas pelo magistrado na decisão acima são de foro íntimo, por ter ele ficado “condoído da condição do pai do paciente”, que esteve em seu gabinete e prometeu “adotar providências enérgicas para afastá-lo da senda que deliberara percorrer”. Ora, então para que um desembargador vote pela concessão da ordem de habeas corpus é necessário que o pai do paciente vá até seu gabinete sensibiliza-lo? Para que a liberdade de uma pessoa seja garantida pouco importa a idoneidade dos fundamentos da prisão, mas sim as “providências” que o pai do paciente vai adotar?

Imaginemos o contrário. E se fosse a vítima que comparecesse ao gabinete do desembargador e lhe sensibilizasse? A decisão mudaria? O que está nos autos pouco interessa? Os argumentos jurídicos sustentados pelas partes de nada valem? Os juízes, portanto, têm a decisão disponível ao seu bel prazer, podendo modifica-la ao sabor de suas emoções? Frisa-se que não há dúvidas que a ordem deveria ser mesmo concedida, mas não porque o juiz acordou sentimental naquele dia, e sim porque os fundamentos jurídicos que converteram a prisão em flagrante em preventiva não foram lastreados em dados concretos que apontassem nessa direção [3].

O grau de discricionariedade dessa decisão beira o absurdo. Uma decisão como essa sequer pode ser considerada como sendo jurídica, já que não têm fundamento válido, nos termos do que manda o art. 93, IX da CF. É preciso lembrar que o magistrado não foi eleito pelo povo para exercer um dos poderes da República. O que lhe dá legitimidade no exercício de sua função, é, sem dúvida, a racionalidade empregada através da criteriologia jurídica de suas decisões. A decisão jurídica fundamentada é uma garantia constitucional do cidadão, além de ser o que confere legitimidade ao Poder Judiciário. A fundamentação jurídica é o que protege o cidadão contra julgamentos discricionários e arbitrários, permitindo a autonomia do direito em relação à política e a moral. [4] Sem esse accountability (Lenio Streck) de nada serve o direito – mesmo!

Os tempos são de resistência. É preciso denunciar cotidianamente os abusos e ilegalidades que são cometidos. A criminalização da advocacia está cada vez mais comum. O sistema de justiça criminal está cada vez mais fora de controle, graças à ausência de uma criteriologia das decisões jurídicas. Ao colega ferido em suas prerrogativas, as minhas mais sinceras homenagens pelo exercício aguerrido da advocacia criminal. Sem o direito de defesa assegurado, restará muito pouco ou quase nada. Nas palavras de Dworkin, precisamos levar o direito à sério.

Theuan Carvalho Gomes da Silva é Mestrando em direito pela UNESP. Pós-graduando em Direitos Humanos pela USP. Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Aprisionamento e Liberdades (NEPAL-UNESP). Associado ao IBCCRIM e ao IDDD. Advogado criminalista. [email protected]

 

Redação

4 Comentários

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  1. OAB não aderiu ao golpe ?

    Se advogados estão ameaçados , melhor culpar seu orgão de classe. Para quem não é do ramo só resta escrachar responsáveis por este estado de coisas.

  2. Nenhuma novidade.
    Voltamos

    Nenhuma novidade.

    Voltamos aos tempos em que os indesejados eram “despedaçados na boca do canhão”. Foi isto que ocorreu no caso do pobre índio sentenciado por Thomé de Souza a morrer desta maneira infame em 1549. Alguns séculos depois, em 1971 a ditadura mataria Stuart Angel arrastado e com a boca no escapamento do carro em movimento.

    O Brasil é um país estranho, só caminha para frente avançando para traz. O Estado brasileiro não é um Leviatã e sim um Curupira. 

    Sempre voltamos à barbárie original. 

    Qual será a versão da tirania de Michel Temer para a “morte na boca do canhão”? 

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