Delação Premiada, um instrumento de Justiça?, por Beatriz Conde Miranda

A delação premiada é um instituto processual pela qual um suspeito ou acusado celebra um acordo com a acusação em troca de uma redução ou não aplicação de uma possível sanção, comprometendo-se a fornecer elementos probatórios em desfavor de terceiros.

do Diálogo e Ação Petista

Delação Premiada, um instrumento de Justiça?

por Beatriz Conde Miranda
Colaboradores: Roberto Elias Salomão e Bruno Falci

Em épocas nas quais temos visualizado o Poder Judiciário atuando como um juiz de futebol que apita e chuta para o gol a favor de uma das partes, resolvemos obter mais informações a respeito da “Delação Premiada”, utilizada ultimamente em diversos processos aos quais a mídia tem dado relevante destaque, principalmente no que diz respeito à prisão do ex-presidente Lula.

Para tanto, conversamos com o juiz federal Flávio Antônio da Cruz, juiz desde o ano de 2002, especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito de Curitiba, mestre em Direito Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC) e doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná.

Flávio é um daqueles juízes que todo brasileiro gostaria de conhecer, pois é reconhecido pela sua seriedade e competência. Criterioso, trata com zelo todos os processos nos quais atua e, por conta dessa atuação, é tido como um juiz garantista, ou seja, que respeita as normas constitucionais que impõem o dever de, perante um novo processo, defender a presunção de inocência como um norte a ser rompido apenas mediante a apresentação de provas sérias, fidedignas, o que acaba por proteger a sociedade como um todo da ameaça de prisões arbitrárias, já outrora realizadas em nosso país e que promoveram inúmeros tribunais de exceção. Segue então a entrevista, mais que elucidativa.

Em que consiste a “Delação Premiada”?

A delação premiada é um instituto processual pela qual um suspeito ou acusado celebra um acordo com a acusação em troca de uma redução ou não aplicação de uma possível sanção, comprometendo-se a fornecer elementos probatórios em desfavor de terceiros.

Esse instrumento apenas pode ser corretamente compreendido e avaliado quando se tomam em conta os distintos discursos sobre a finalidade do processo penal. Note-se que o Estado é conceituado, em uma democracia, como o detentor do monopólio do exercício legítimo da força (Max Weber, “Economia e Sociedade”). Assim, seria excepcional o emprego válido da violência por parte dos particulares, a exemplo da legítima defesa ou do estado de necessidade.

Ora, para infligir castigos, o Estado não careceria, a rigor, do processo penal. A mera aplicação de sanções poderia ser promovida com a contratação de carrascos. Há guerra sem devido processo e há punição sem devido processo. Contudo, não há justiça sem efetivo contraditório e ampla defesa. Importa dizer: a justiça pressupõe legitimidade dos fins e também a legitimidade dos meios, truísmo dizê-lo.

O processo penal deve ser concebido e aplicado, tanto por isso, como um mecanismo de tutela das liberdades públicas, de modo a garantir não apenas os direitos dos suspeitos e acusados de ocasião, mas sim garantir também os direitos de todas as pessoas que possam ser alvo de desconfianças ou imputações promovidas pelo sistema de repressão penal. Na sua base, encontra-se o pressuposto ético de que é inaceitável a condenação de um inocente, a despeito de qualquer argumento utilitarista que pudesse ser invocado para isso.

Ou seja, em uma democracia, o processo penal deve ser orientado a assegurar que nenhum inocente tenha a sua liberdade ceifada, mesmo quando haja eventual torcida organizada ou grupos de pressão – isto é, maiorias de ocasião – exigindo a sua condenação ou fazendo campanha para o seu linchamento público. Daí que, para que sobrevenha uma condenação, a liturgia processual deve viabilizar um grau elevado de certeza objetiva, fundada em provas densas – o que não se confunde com a mera convicção subjetiva dos acusadores ou dos juízes a respeito da responsabilidade criminal do denunciado.

Há, todavia, duas formas de se conceber o processo penal.

Por um lado, há uma visão inquisitorial, que reputa que o bom juiz é uma espécie de investigador, a exemplo do Hercule Poirot, do inspetor Javert ou de Sherlock Homes. Quem acusaria seria uma espécie de magistrado (o juiz do piso: Parquet), sendo imaginado como um personagem dotado de isenção de ânimos e suposto como “custus legis” (guardião da lei). Para essa concepção, a finalidade do processo seria a de devassar o passado, traduzindo o mundo em palavras. A verdade seria a adequação da mente à coisa, dizia Aristóteles. O processo seria uma espécie de máquina histórica, estando orientado a reconstruir os fatos, da forma como realmente teriam ocorrido. A confissão é imaginada, nesse âmbito, como a rainha das provas, dado que permitiria o acesso à psique do suspeito/acusado.

Também há uma concepção do processo como duelo ou jogo, pelo qual ele é imaginado como um mecanismo de solução de conflitos sociais, sem a pretensão de realmente encontrar a verdade dos fatos. Nesse âmbito, o bom julgador é imaginado como o árbitro de uma partida de xadrez que ele não joga. Logo, para esse ideário, o juiz não poderia movimentar as peças do jogo, cabendo-lhe apenas garantir o fair play entre as partes da disputa. Quem acusa é imaginado, nesse âmbito, como uma espécie de advogado, com interesses na solução do caso, sem que possa ser imaginado como isento. O Ministério Público não poderia começar a partida ganhando, como se fosse mais desinteressado do que a defesa. Busca-se, nesse âmbito,maior paridade de armas entre quem acusa e quem defende. A verdade é imaginada como fruto de um consenso entre as partes, e não como o intento de se resgatar os fatos havidos nas entranhas do passado. A confissão é suposta como uma forma de capitulação, pela qual o acusado desiste da partida.

Ambos os modelos possuem certos defeitos.

O principal defeito do modelo inquisitorial é o de tornar o juiz refém das suas próprias primeiras impressões e suspeitas. ‘Quem tem juiz como acusador precisará de Deus como defensor’, sabe-se bem. Há, nesse âmbito, o elevado risco de que o magistrado assuma uma função policialesca, sem a necessária isenção de ânimos para avaliar os elementos probatórios amealhados nos autos e os argumentos articulados pelas partes. Por seu turno, o risco do modelo do processo como jogo é o de converter o rito em uma mera disputa entre advogados. E, infelizmente, nem todos podem contar com os melhores e mais combativos advogados, como é notório.

O fato é que a delação premiada é um instrumento muito antigo, eis que associado à inquisição religiosa e empregado no âmbito de distintos regimes opressores, ao longo da história. Ela esteve presente na condenação do Cristo e também de Tiradentes, para mencionar apenas dois famosos exemplos. Ela é retrato, a um só tempo, de uma lógica inquisitorial – diante do intento de se obter, a todo custo, a punição do maior número possível de suspeitos – e também retrato de uma lógica do processo como duelo, eis que fundada na busca da negociação entre o acusado e a acusação.

Esse mecanismo tem sido muito empregado no âmbito dos Estados Unidos da América e da Inglaterra, países vinculados ao sistema da Common Law. Há algumas décadas, porém, o sistema de acordos (plea bargaining) passou a ser difundido para sistemas vinculados ao sistema romano-germânico (Civil Law). Autores como Maximo Langer têm denominado esse instituto de ‘cavalo de Tróia’ da Common Law, diante do modo como isso tem adentrado em outros ordenamentos jurídicos.

Ela cumpre um papel nos casos de delitos que não costumam deixar rastros probatórios, a exemplo da prática de corrupção ou de delitos que não deixam vítimas determinadas, atingindo coletividades indefinidas. A prática de corrupção, por parte de um agente público, no interior de um gabinete ou repartição estatal, não costuma deixar testemunhas ou provas documentais. Daí que a delação premiada acabe sendo imaginada como uma forma de se obter elementos de convicção a respeito de delitos empreendidos entre quatro paredes e sem vítimas específicas e bem delimitadas.

O professor Geraldo Prado tem sustentado que a delação premiada destinar-se-ia a substituir a investigação objetiva dos fatos pela ação direta contra suspeitos e acusados, visando torná-los colaboradores e, pois, uma fonte de prova. E, tanto por isso, o instituto causa graves perplexidades, diante do risco de se converter um acusado em testemunha contra outro suspeito. Mas, acusados não são verdadeiras testemunhas, eis que podem ser tentados a dizer mentiras, na proteção dos seus próprios interesses.

Sabe-se, aliás, que um dos melhores lugares para se esconder mentiras é no meio de um tanto de verdades. Há sempre o risco de que os delatores – depois de terem contado fatos que realmente tenham ocorrido – possam também ser instrumentalizados, de modo a atingir seus próprios desafetos políticos ou os desafetos de quem tenha o poder de celebrar tais pactos. Deve-se examinar, tanto por isso, esse instituto com grandes reservas, diante do risco significativo de que possa levar a condenações injustas, privilegiando-se suspeitos oportunistas.

O problema é que o tema é razoavelmente complexo, que demanda um exame a respeito dos ritos abreviados – isto é, qual o limite da negociação entre delatores e acusação -, a respeito também dos fundamentos para que a pena do delator seja reduzida ou exonerada (o que exigiria comparação com outros institutos penais que tratam da punibilidade) e também a respeito da eficácia probatória de tais delações no que toca a terceiros. Há ainda a questão quanto à moralidade de tais instrumentos, o que exigiria a sua contraposição com distintos discursos éticos, a exemplo do hedonismo, epicurismo, ética kantiana, pragmatismo, utilitarismo, etc.

Você diz em seu artigo “Delação Premiada: observações pontuais”, que os Estados Unidos, através da National Advisory Commision on Criminal Justice Standards Goals advogou a extinção da delação premiada. Quais foram as razões?

A aplicação dos instrumentos consensuais – plea bargaining, plea of agreement etc – tem sido alvo, ao longo do século passado, de muitas polêmicas no âmbito da Common Law. Alguns autores sustentaram que o instituto acabava por beneficiar os suspeitos/acusados com maior culpabilidade, geralmente os delinquentes mais oportunistas. Note-se que o office-boy do crime e a ‘mula’ do tráfico de drogas dificilmente terão o que negociar com a acusação, dado não disporem de maior grau de informação ou de provas sobre as operações ilícitas. O acordo acabará sendo celebrado, então, com agentes situados na cadeia de comando ou em níveis intermediários de organizações delitivas, personagens embrenhados nas tramas delinquentes e que podem obter benefícios indevidos com esses pactos processuais.

Ademais, nos Estados Unidos da América, a celebração de tais acordos implica renúncia, por parte do acusado, à submissão dos elementos probatórios ao exame de um magistrado ou de um Júri. Naquele país, a celebração de um acordo enseja o automático reconhecimento de culpa e aplicação da sanção pelo sistema de repressão penal. Há situações muito particulares, em que o sujeito celebra acordo, confessa o crime e, ainda assim, pede para fazer constar no termo de negociação que ele é inocente (Kenney plea e Alford plea, por exemplo), o que causa algumas perplexidades.

Há um risco razoável de que inocentes celebrem acordos processuais com a acusação, confessando crimes que não tenham cometido, justamente por não acreditarem na capacidade do sistema de justiça em assegurar a sua liberdade. Diante da elevação significativa das penas criminais, promovida pela reforma do Guidelins dos Estados Unidos, em 1984, muitos acusados passaram a ser premidos a celebrarem acordos como esses, por força da probabilidade elevada de serem condenados injustamente ao cumprimento de penas exageradas. Ademais, há também o risco de que provas ilícitas sejam utilizadas ou simplesmente não sejam apreciadas, dado que – no referido sistema – a celebração do acordo implica renúncia ao processamento criminal. Algo distinto ocorre na Alemanha, com o instituto do Absprachen, ou mesmo no Brasil, dado que a mera confissão do arguido não é suficiente para justificar a prolação de uma sentença condenatória.

Na delação premiada, técnicas de manipulação psicológica são comumente utilizadas pelos acusadores e juiz. Quais os prejuízos que resultam para o réu, em termos de violação de direitos constitucionais processuais? Quais as chances de serem realizados atos em abuso de direito e portanto, violadores da lei?

Não raro, emprega-se nesse âmbito uma lógica estratégica, bastante comum em jogos de cartas ou de tabuleiros. O jogador deve se antecipar aos elementos probatórios que ele imagina estarem à disposição da outra parte. E, tanto por isso, há a tendência ao emprego do blefe. A acusação pode vir a blefar, dando a entender possuir os elementos probatórios de que não dispõe, a rigor. O acusado também pode eventualmente dar a entender possuir mais conhecimento ou provas contra terceiros, do que realmente possui.

O fato é que a legislação acaba sendo um tanto porosa e vaga, dado não definir totalmente com que critérios a acusação pode celebrar ou deixar de celebrar o pacto. Note-se que o Estado de Direito está fundado na premissa de que todo exercício de poder há de ser controlado, reduzindo-se os espaços de discricionariedade no que toca à atuação de promotores e juízes. Mas, nesse âmbito, há risco de que a acusação simplesmente escolha, de modo um tanto subjetivo ou idiossincrático, fazer acordo com um acusado e não com outro, sem maiores motivações para isso.

Ademais, também há o risco de que alguém celebre acordo com o fim de obter, de modo mais célere, benefícios processuais ou materiais, a exemplo do que pode ocorrer com delações promovidas por suspeitos presos. Há o risco, ademais, de que os delatores passem a vender o silêncio, deixando de apresentar todos os elementos probatórios de que disponham, com o intuito de favorecer ou proteger terceiros, convertendo o processo em uma espécie de ‘mercado persa’.

A legislação brasileira dispõe que ninguém pode ser condenado com base apenas na palavra do delator. Contudo, tem sido comum o emprego de delatores para promover uma espécie de decodificação de elementos probatórios já colhidos pela acusação. Um delator pode ser empregado para decodificar apelidos veiculados em uma agenda de câmbio paralelo ou ainda para explicar movimentações em extratos bancários. Saber se isso afronta a lei brasileira é tema um tanto quanto polêmico.

Registre-se apenas que, por força até mesmo da sua origem – associada a regimes de opressão e práticas de inquisição – esse instrumento deve sempre ser alvo de crítica pública e de filtro racional, a fim de se impedir que inocentes sejam condenados e tenham seus direitos aniquilados por conta do que delatores afirmam. O caso Tortora, havido na Itália, e bastante conhecido, é um triste exemplo disso.

Há riscos de que tais instrumentos sejam empregados de modo desproporcional,a exemplo de quem faça acordos com homicidas para obter provas contra servidores públicos acusados de prevaricação, em um exemplo mais absurdo. Também há o perigo de que não sejam submetidos ao controle dos tribunais, eis que – em solo brasileiro – o STF tem enfatizado que apenas o delator ou o Ministério Público poderiam impugnar, em juízo, as cláusulas do acordo celebrado. Logo, a vingar essa premissa, o delatado não poderia insurgir-se contra a desproporcionalidade entre os benefícios ofertados ao delator e os elementos probatórios por ele apresentados; ou entre a gravidade dos crimes cometidos pelo delator, se confrontados com as suspeitas por ele narradas etc.

A delação premiada é então a utilização de uma suposta confissão do réu, comumente utilizada em situações em que existam hipoteticamente co-autores e partícipes. E acaba por subverter papéis, transmutando supostos réus em testemunhas. De outro lado, consideramos no direito que a prova testemunhal é a ‘prostituta das provas’, com valor probatório ínfimo, de pouca utilidade, já que estatisticamente são inúmeras as situações em que a testemunha denuncia movida por medo, mentira, vingança, ganhos e chantagem. Como legitimar esta nova narrativa? Não é uma contradição na atual afirmação dos direitos humanos? Não seria então o instituto da delação premiada uma maneira de fazer preponderar a prova que em direito sempre se considerou duvidosa? Não violaria a presunção de inocência? Por que a palavra de um réu valeria mais que a palavra de outro?

Há graves e complexos problemas envolvendo a epistemologia processual penal. Mesmo abstraindo-se o caso da delação premiada, é fato que o sistema processual pode levar a significativo número de erros judiciários. Os atores processuais tentam reconstruir a verdade dos fatos, atuando à semelhança de arqueólogos que interpretam pinturas rupestres ou artefatos encontrados em escavações. A interpretação final pode estar equivocada, em que pese pareça consistente com os elementos colhidos.

Há sempre uma razoável probabilidade, enfim, de que as provas sejam mal compreendidas; ou que não tenham sido colhidas em sua totalidade. Até mesmo os documentos podem levar a equívocos de interpretação. Grosso modo, existem dois grandes modelos probatórios: (a) sistemas em que as provas são tarifadas pelos legisladores e (b) sistemas em que os julgadores devem tomar tudo em conta, havendo maior liberdade para atribuição de pesos para os elementos colhidos.

Na Antiguidade, diante de um sistema de provas tarifadas, dizia-se que ‘testis unus, testis nullus’. Ou seja, um único testemunho era insuficiente para justificar a condenação de alguém. Todavia, no aludido sistema, isso permitia a realização de diligências probatórias ignóbeis, a exemplo da tortura, como bem explicita Foucault ao início da obra ‘Vigiar e punir’, ao questionar o caráter ambíguo desse nefasto mecanismo (a tortura era, ao mesmo tempo, um elemento probatório e também uma sanção penal). Ainda hoje, essa questão alusiva à quantidade e qualidade de testemunhas é alvo de polêmicas, a exemplo do tema envolvendo a suficiência do testemunho policial para se condenar o sujeito por ele apreendido.

Ora, é sabido que a prova testemunhal é, por si, bastante deficiente. Algumas testemunhas mentem deliberadamente. Outras dizem mentiras, mesmo sem querer. Há testemunhas que acreditam terem visto o que não viram; ou que são influenciadas por distintas formas de preconceitos sociais, vieses e falsas memórias. Ademais, delatores não são efetivas testemunhas, dado que são suspeitos ou acusados; e, portanto, são interessados na solução do processo. Os delatores possuem o interesse de que a versão que apresentam seja acolhida pelo Judiciário, diante dos compromissos assumidos junto à acusação por época da celebração do acordo. No Brasil, a jurisprudência do Supremo Tribunal tem reiterado o entendimento de não ser válida a condenação de alguém com base apenas no que um outro suspeito ou acusado tenha falado (chamada de corréu). Tanto por isso, tampouco se pode condenar alguém com base apenas no que algum delator ou vários delatores alegaram, eis que não são efetivas testemunhas. Todavia, pode-se prolatar um decreto condenatório com lastro em provas efetivas que os delatores porventura apresentem, a exemplo de fotos, vídeos ou documentos, a serem examinados sempre com circunspecção, por conta das garantias processuais inerentes ao regime democrático.

Em muitos casos, de fato, o emprego da delação premiada pode dar ensejo a processos kafkianos, tolhendo-se o exercício do direito de defesa, sobremodo diante de premissas verificacionistas, para empregar aqui a categoria de Karl Popper. Há o latente risco de que magistrados e promotores se vejam em uma espécie de cruzada moral contra suspeitos, dobrando as provas ao sabor das hipóteses. Compare-se com a seguinte situação: um sujeito é um criacionista ferrenho e diz jamais terem existido dinossauros sobre a Terra. Confrontado com fósseis imensos, ele responde que se trata de um teste divino para sua fé. Um promotor alega para o juiz que a prova cabal da responsabilidade criminal está em uma caixa. Abre-se a caixa e ela está vazia; ao que o acusador alega: ‘viu só como é culpado! Conseguiu destruir até a prova!’. A delação pode ser empregada para se corroborar suspeitas, como se fosse expediente para se encontrar ‘verdades sabidas’.

O ponto é que uma sociedade persecutória, como costuma ser a brasileira, imagina que a prolação de sentenças condenatórias pelos juízes seria a máxima prova de probidade. ‘Aquele juiz é tão correto que não absolve ninguém!’. Essa mesma sociedade imagina que ninguém é inocente diante da suspeita. Assim, a desconfiança existente contra o investigado ou acusado pode facilmente ser transferida para o julgador que o tenha absolvido. ‘De tal culpado que era o acusado conseguiu corromper até o juiz que o absolveu!’

Com esse horizonte de sentidos, a delação premiada é um instituto bastante perigoso, na medida em que pode incrementar o grau de autoritarismo presente em Estados de modernidade tardia, dada a dificuldade em se promover efetivo exame criterioso e transparente dos seus requisitos e das consequências. Concordo também que há o risco de se comprometer princípios constitucionais inerentes ao devido processo, a exemplo do respeito ao estado de inocência, da distribuição constitucional do ônus da prova, do direito de ser julgado por um juiz imparcial etc.

Você cita um livro do Foucault. O mesmo autor afirma na obra “As palavras e as coisas” que o discurso e a palavra constituem a narrativa do poder. Como equilibrar o Contraditório e a Ampla Defesa em um Processo?

Foucault centraliza suas reflexões, em certa medida, no papel desempenhado pelo discurso, enquanto motor das práticas. Há, nisso, um epifenômeno, dado que o discurso também é projeção de determinadas práticas, de escolhas individuais. A sociedade costuma albergar, no seu interior, discursos antagônicos entre si; tanto há discursos racistas quanto há discursos emancipatórios; e ambos podem influenciar as práticas subjetivas, reforçando ou dando origem a novos discursos.

O problema é que esses instrumentos processuais, de lastro programático, acabam consolidando um indevido imaginário social de que as garantias seriam mera filigrana jurídica, ou de que o devido processo seria, quando muito, um mal necessário. Note-se, todavia, que não há justiça sem que haja efetivo devido processo. Não basta que o culpado seja condenado, isso deve ser promovido com respeito a regras democráticas. O devido processo não é um mal necessário; ele é um dos componentes do próprio conceito de justiça!

Lamentavelmente, tem vicejado, em muitos países, aquilo que Loïc Wacquant denominava de ‘Estado Centauro’: um Estado com discurso humanista e com práticas autoritárias e despóticas. Não raro, as promessas constitucionais restam descumpridas – gerando uma compreensível frustração coletiva -, justamente pela reduzida cultura de legalidade vigente. Costumo dizer que ‘lex habemus!’. Falta-nos, porém, enquanto comunidade política, uma maior cultura de legalidade; o reconhecimento de que as leis devem ser cumpridas, enquanto projeção de uma racionalidade pública e de compromissos fundamentais entre distintas gerações. As leis devem ser cumpridas sobremodo por aqueles que as aplicam e que falam em seu nome. O Estado deve dar o exemplo, não se pode arvorar na condição de violador da lei que publica e aplica.

A lei não pode nos fornecer a cultura de legalidade, dado que essa cultura deve ser justamente o ‘mundo da vida’ subjacente ao discurso jurídico. Cuida-se, portanto, de um problema sociológico, muito mais do que jurídico. As pessoas precisam compreender a importância do discurso e das práticas orientadas à efetivação dos direitos fundamentais. Se não o fizerem por empatia, que ao menos o façam por instituto de autopreservação. O sistema que não garante os direitos do suspeito ou do acusado do momento, provavelmente tampouco garantirá direitos no caso subsequente. Zaffaroni tem argumentado que, no âmago de cada Estado de Direito, dormita o dragão do Estado de Polícia. Talvez seja o contrário. Talvez o Estado de Direito seja um soluço no perene Estado de Polícia. O ponto é que precisamos atuar de modo cuidadoso e vigilante, em defesa das conquistas democráticas.

Beatriz Conde Miranda. Advogada.
Colaboradores: Roberto Elias Salomão. Jornalista. 
Bruno Falci. Jornalista.

Redação

8 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. “A delação premiada é um instituto processual pela qual um suspeito ou acusado celebra um acordo com a acusação em troca de uma redução ou não aplicação de uma possível sanção, comprometendo-se a fornecer elementos probatórios em desfavor de terceiros.”:

    Algumas adicoes aa historia do “plea bargaining” nos EUA:

    A adocao era inevitavel. Tendo um sistema penal estonteantemente punitivista, o judiciario aqui se viu aas voltas com centenas de milhares de casos contestados de, digamos, multas de transito, e ja nao conseguia desengarrafar o trafego, era impossivel. (E nem mencionemos as cadeias…) Portanto a delacao premiada… estritamente pra juizes que estudaram anos a fio pela profissao NAO terminarem com 30 anos de “trabalho forcado” de lidar com o que no Brasil se chamaria ladroes de galinha.

    Isso eh, a carga penal nas costas dos reus e logistica nas costas do judiciario era e continua sendo uma historia de horror porque a unica coisa que move aa elaboracao de leis nos Estados Unidos eh o gigantesco complexo de inferioridade institucional do governo.

    (Note se que o que aconteceu com o plea agreement dos EUA (essa obscenidade que voces estao vendo no Brasil) JAMAIS aconteceria com o Small Claims Court, que tem padroes definidos, e mais importantemente, limites escritos em granito.)

    Porem, nas procuradorias a historia eh MUITISSIMO diferente! Aqui tambem em, digamos, casos criminais, um procurador de merda e um delegado de merda estao livres pra te processar e pedir 30 anos de cadeia ou te oferecer 2 anos se voce colab… e se beijar bunda, melhor ainda.

    “Colabore” pelo bem da CARREIRA de delegados de merda e procuradores de merda, viu, gente?

    (Filho do vizinho eh um dos melhores public defenders de Queens, salvo engano, na proxima vez que eu o ver vou sondar um pouco o assunto com ele, se puder.)

  2. Notem a normalidade que eu vi, por exemplo, em duas multas em corte de Newark alguns anos atraz e que eu contestei…

    Fila gigantesca atraz de mim, o defender nem me deixou falar (concordo plenamente, nao eh reclamacao!), so me deu as opcoes “olha, se voce quizer pagar isso eu derrubo aquilo, se voce quizer declarar isso eu mudo as duas multas pra isso, e se voce escolher ir pro juiz tem uma chance muito boa de voce perder uns 500 dolares”.

    Rapidinho, no estalo, com educacao, e sem cara de pressa apezar da fila! Tudo normal.

    (O cara marcou se em mim alem de mera gratidao por exibir uma cabeca carequinha com o que parecia ser cicatrizes de garras de leao!

  3. Esclarecendo a situacao mais ainda:

    Plea bargaining e plea deal sao completamente diferentes. Plea deal foi o que me aconteceu na corte de Newark, eu “nao tinha direito” coffcoff de falar porque O SISTEMA estava me oferecendo um acordo! (Deal)

    No plea bargaining (verbo “pechinchar”) eu tenho direito de pedir isso e aquilo tambem, nao eh *concessao* do Estado como no primeiro caso. A falta de demarcacoes, limites, e o excesso de arbitrariedades viraram marca registrada do plea bargaining em ambos Brasil e EUA a um ponto tao absurdo que plea bargaining (com direito) esta sendo oferecido em casos gravissimos de crimes de terceiros dos quais o reu participou, porem aa base da pechincha na qual o reu ja eh culpado sabidamente e ainda tem direitos, enquanto em casos de reus sabidamente inocentes a coisa ja vira plea deal -teje preso ou denuncia aeh!- como se fosse uma concessao, um “favorzinho” do Estado por voce ter sido acessorio em um assassinatozinho ou dois… Quando nao foi.

    Resumindo: instrumento de chantagem ao gosto de procuradores e delegados. De merda.

    A lei do Brasil – que eu denunciei como ARMA DE DIREITA assim que foi aprovada, quem tava aqui no blog sabe disso- nao sabe sequer a distincao entre um e outro. E nao esta la tao longe disso aqui.

  4. Quando se afirma que o país compactua com a impunidade, ou ainda pior, com a impunibilidade, é preciso considerar toda a amplitude desta afirmação pois não se restringe aos criminosos, mas também aos que se pensam “cidadãos de bem”.
    Sobre os criminosos, há bytes e bytes de análises e referências muito melhores que as minhas, mas sobre o sinistro comportamento dos “cidadãos de bem” muito menos.
    Minha percepção é que o tal “cidadão de bem” que apóia a selvageria dos métodos para se apurar crimes reais ou imaginados, o faz porque se acredita acima de qualquer suspeita. Assim, tais métodos jamais serão empregados contra eles, pois gozam de impunibilidade.
    Curioso porque muitos destes cidadãos, graças ao furor dos legisladores, cometem diariamente diversos crimes, que ignoram solenemente, pois desconhecem “a lei”.
    Desde xingamentos, calúnias, agressões verbais que, se aplicadas à autoridade (ao cidadão comum também, mas é outra história) representaria crime. Passando por sonegações de impostos, atrasos nos pagamentos, comportamentos inadequados que poderiam criar enquadramentos e, seriam utilizados contra eles no momento de serem levados ao sistema que gostam de aplicar aos “inimigos”.
    Temos um claro desprezo pelo outro neste país. Comportamento mais e mais exacerbado pelo uso discricionário do poder, seja social, estatal, econômico.
    Para estes, a lei só deve ser aplicada aos outros. Sim, já fomos acusados disto e outros povos também. Nada mais humano que desejar a desgraça, a ruína, o castigo dos pecados do nosso semelhante.
    Inumano é considerar a igualdade diante dos direitos e deveres, a caridade, o respeito. O último tolo a propagar isto a plenos pulmões, foi morto cruelmente.
    Para não ficarmos mal na história, inventamos que ressuscitou. Assim, ao fim e ao cabo, podemos afirmar que não houve crime, pois o sujeito não morreu.
    De abuso em abuso ao direito alheio, de ignorância permanente sobre os direitos e deveres, caminhamos para a descrença no sistema legal. Quem sabe não pensem em usar inteligência artificial no direito, e assim, o negócio do futuro será construir prisões.

    1. “Para não ficarmos mal na história, inventamos que ressuscitou. Assim, ao fim e ao cabo, podemos afirmar que não houve crime, pois o sujeito não morreu”:

      Hei, nao mencione Queiroz… pega mal!

    2. Cuidadosamente pinssando mais que evangelico de merda, Ivan ataca “Ildginnnn” -nome de um queridissimo amigo de 83/4, eh seu nome em ingles)…

      “Sobre os criminosos, há bytes e bytes de análises e referências muito melhores que as minhas, mas sobre o *******sinistro comportamento dos “cidadãos de bem”******* muito menos”

      “Quem sabe não pensem em usar inteligência artificial”:

      Advinhe a relacao entre as duas citacoes…

      Ja usaram.

  5. Mais uma adicao:

    Lembram da “fila gigantesca” atraz de mim?

    Pois eh: quanto mais preta e pobre forem a cidade e jurisdicao, mais gigantescas as filas sao pois punitivismo eh overdosado a pretos, pobres, e hispanicos. Cidade branca e rica? Nao tem disso.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador