Direito à moradia e a decisão do STF no caso Vila Soma

Do Justificando

A Soma e o Déficit: a decisão do STF no caso Vila Soma e o direito à moradia

Rafael de Sá Menezes

Em 13 de janeiro de 2016, a pedido da Defensoria Pública de São Paulo, o STF proferiu decisão suspendendo ordem de reintegração de posse contra moradores da Vila Soma, em Sumaré. A reintegração da posse da área estava agendada para o dia 17 de janeiro de 2016 e a decisão conferiu efeito suspensivo ao recurso extraordinário, ainda pendente de exame de admissibilidade no TJ-SP. Residem na Vila Soma cerca de 2,5 mil famílias há mais de três anos – antes, tratava-se de um terreno abandonado há pelo menos 20 anos, de propriedade da massa falida da empresa Soma Equipamentos Industriais.

Na decisão do Ministro Enrique Lewandowski, este considerou que a retomada da posse poderia exacerbar o conflito, “em especial quando o cumprimento da ordem judicial é levada a efeito por força policial desacompanhada de maiores cuidados com o destino dos evictos”. Assim, em razão de não haver “qualquer indicação de como será realizado o reassentamento das famílias”, o Ministro entendeu ser o caso de suspender a ordem de reintegração.

A preocupação com “o destino dos evictos” e com “o reassentamento das famílias” é o que sobressai no pedido da Defensoria Pública e na decisão do STF. O entendimento adotado pela Corte Suprema é inovador para o Poder Judiciário e pode proporcionar maior efetividade ao direito à moradia e à função social da propriedade. De fato, a maior parte do Judiciário, em ações possessórias, relega a segundo plano a análise destes direitos, privilegiando a posse decorrente da propriedade. O julgado do TJ-SP, atacado pelo recurso extraordinário, é emblemático e basta para exemplificar este entendimento:

“(…) pretensão de suspensão do cumprimento da reintegração de posse para aguardar desate da questão a respeito do destino das famílias ocupantes do local, pelos órgãos públicos competentes – descabimento – ordem proveniente de decisão transitada em julgado – direito dos agravados que não pode ficar à mercê de decisões políticas – reintegração que será acompanhada pelo Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (GAORP) deste Tribunal – problema social da falta de moradia que não deve ser enfrentado por decisões judiciais que, em detrimento do direito constitucional de propriedade, legitimem ou façam perdurar esbulhos possessórios evidenciados – função social da propriedade que deve se conformar aos requisitos constitucionais e legais que a disciplinam e não servir de justificativa para comportamentos ilegais que se travestem de justiça social – necessidade de resposta célere do Poder Judiciário” (Agravo de Instrumento 2088936-45.2015.8.26.0000).

A decisão reconhece que há um “problema social” de “falta de moradia” e, neste ponto, está coberta de razão: segundo a Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional em 2013 era de 5,846 milhão de domicílios[1]. Por outro lado, segundo dados do Censo 2010 do IBGE, há 6,07 domicílios vagos no Brasil[2]. O confronto destes dados mostra que o “problema social” em questão não ocorre no sentido de inexistência de imóveis suficientes para atender a todos – o número de domicílios vagos é superior ao número de pessoas sem teto. Este “problema social” ocorre por razões econômicas[3] e com respaldo do direito – incluindo aí o modo pelo qual o Judiciário lida com o problema.

As quase 6 milhões de famílias que sofrem da “falta de moradia” não conseguem pagar aluguel, muito menos um financiamento imobiliário, sem prejuízo do próprio sustento. O poder público não dispõe de programas habitacionais que proporcionem acesso universal à habitação – atualmente, a política pública habitacional em todo o Brasil se apoia principalmente no Programa Minha Casa, Minha Vida[4], um programa que busca não o acesso universal à habitação, mas o aquecimento dos mercados imobiliário e de construção civil. As políticas fundiária e urbana não se valem de instrumentos que reprimam o uso especulativo da terra urbana e o descumprimento da função social da propriedade – os instrumentos do Estatuto da Cidade ou outros instrumentos, como os previstos no projeto de lei de responsabilidade territorial, PL 3057/2000, são enfaticamente ignorados por quase todos os municípios. O caso da Vila Soma mostra bem esta dinâmica: um terreno de quase 1 milhão de metros quadrados, próximo ao centro da cidade – portanto, próximo a toda infraestrutura urbana custeada por todos ao longo dos anos – jaz intocado e com dívida de IPTU estimada em cerca de 10 milhões de reais.

Todas estas ilegalidades não interessaram ao TJ-SP diante do “direito constitucional de propriedade”. Tampouco entendeu o Tribunal haver prejudicialidade entre demanda para atendimento habitacional prévio dos moradores da Vila Soma e a retirada das pessoas das suas habitações. Neste sentido, decretou o julgado que o “problema social da falta de moradia … não deve ser enfrentado por decisões judiciais que, em detrimento do direito constitucional de propriedade, legitimem ou façam perdurar esbulhos possessórios evidenciados”.

A importância da decisão do STF está em estabelecer novo marco jurídico sobre a questão: confere juridicidade, efetividade e oponibilidade a dois direitos básicos, o direito à moradia e a função social da propriedade. Afinal, por que decisões judiciais não devem enfrentar o problema social da falta de moradia? Em outros termos, por que o direito à moradia e a função social da propriedade não são oponíveis a outros direitos, como a posse e a propriedade? O descumprimento da função social, assim como o direito à moradia, deve ser oponível ao proprietário ou possuidor.

A decisão do STF soma justamente ao firmar que o atendimento habitacional prévio pelo poder público é prejudicial à reintegração de posse. O destino dos evictos deve ser objeto de tutela jurisdicional, seja em ação autônoma, seja por providências judiciais quando do cumprimento da reintegração de posse – inclusive, em caso envolvendo particulares, com a intimação do poder público para providências que garantam este atendimento.

Ainda precisamos de muitas reviravoltas jurídicas e políticas para que tenha plena eficácia o direito à moradia e o consequente direito ao atendimento habitacional prévio em casos de reintegração de posse. A luta da Vila Soma permitiu vermos uma decisão que pode iniciar uma destas reviravoltas, pela qual direito combaterá, ao invés de respaldar, o déficit habitacional.

Rafael Lessa V. de Sá Menezes é Mestre em direitos humanos pela USP; Doutorando em direitos humanos pela USP; Defensor Público do Estado de São Paulo

[1] MINAS GERAIS. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Déficit Habitacional no Brasil 2013: Resultados Preliminares. Disponível em http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/cei/deficit-habitacional/596-nota-tecnica-deficit-habitacional-2013normalizadarevisada/file, consulta em 17/01/2015.
[2] Vide INSTITUTO POLIS. Moradia é Central – Lutas, Desafios e Estratégias, 2012, disponível em http://www.polis.org.br/uploads/1512/1512.pdf, consulta em 17/01/2015.
[3] Para uma leitura mais aprofundada sobre o tema, vide VILLAÇA, Flávio. O que todo cidadão precisa saber sobre habitação. São Paulo: Global, 1986.
[4] Para uma análise do programa, vide ROLNIK, Raquel. Guerra dos Lugares. São Paulo: Boitempo, 2015.
Redação

3 Comentários

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  1. E quem mora em área de risco???

    O que dizer dos que moram em áreas de elevado grau de risco?

    Eles tem casa. Mas…

    Este é um dos pricipais focos da Ocupação Chico Rei em Ouro Preto MG.

    Outro, é a preservação do Patrimônio Cultural da Humanidade.

    Mais, no face da Associação Ouro Preto Moradia, Preservação e Cidania.

    https://www.facebook.com/AssociacaoOuroPretoMoradiaPreservacaoECidadania/?ref=hl

    ***

    Publicado em 1º de janeiro deste ano. Inclusive aqui no blog
     

    PRIMEIRO MANIFESTO OCUPAÇÃO CHICO REI – OURO PRETO MG (As palavras do poeta Manuel Bandeira continuam atualíssimas. “Meus amigos, meus inimigos, salvemos Ouro Preto”). 1 – Hoje, um dos principais desafios da cidade, elevada à condição de Vila em 11 de julho de 1711, é a questão da moradia/planejamento urbano/preservação do patrimônio histórico. 2 – Formada, basicamente, por um centro histórico cercado de montanhas constituídas em grande parte por áreas de elevado grau de risco, Ouro Preto possui poucas alternativas para se expandir. 3 – Diante da falta de planejamento por parte do poder público e com as terras menos acidentadas nas mãos de poucos, dentre eles a norte americana Novelis (sucessora da canadense Alcan), pertencente ao grupo indiano Aditya Birla, restaram ao povo da cidade as encostas para construir suas moradas. 4 – Ironicamente, o grande crescimento populacional de Ouro Preto, ocorrido nas décadas de 1950 e 1960, se deu exatamente em função da empresa que aqui se instalou nos anos 1940, tendo fechado as portas em 2013. 5 – Além do risco à integridade física e às vidas das pessoas (uma tragédia seguida da outra a cada temporada de chuvas), as ocupações das encostas causam grande impacto paisagístico. 6 – A falta de lugar adequado para se edificar, também pressionou a classe média, que mora no centro histórico, a fazer novas construções e adaptações irregulares, contribuindo para o processo de descaracterização do conjunto arquitetônico tombado pela UNESCO, em 1980, como Patrimônio Cultural da Humanidade. 7 – Devido à omissão e negligência de autoridades de Estado, o povo começou a se organizar em 2004, a fim de cobrar uma política de moradia e planejamento urbano. 8 – Tendo em vista o pouco caso dos governos locais, teve início uma série de ocupações organizadas de imóveis, a fim de intensificar a cobrança de atitudes. 9 – A partir do último Natal, cerca de 500 famílias (em sua maioria, moradoras em áreas de risco e sem casa) ocuparam um terreno de aproximadamente 15 hectares (um dos poucos de boa topografia que ainda restam), cuja vegetação é constituída exclusivamente de eucaliptos, localizado nas imediações da fábrica da Novelis (Grupo Aditya Birla) e que ela alega ser dela. (Apareça p conhecer de perto!) 10 – É voz corrente na cidade que, ao longo do tempo, a empresa teria recebido terras da Prefeitura como forma de incentivar a geração de empregos, além de, possivelmente, ter praticado grilagem. 11 – A gota d’água para o surgimento da ocupação, que ganhou o nome de Chico Rei, foi a junção de três fatos recentes: a metalúrgica está vendendo as terras, mesmo estando em curso uma investigação do Mistério Público para saber quem são os verdadeiros proprietários; os responsáveis pelo que ainda resta da metalúrgica em Ouro Preto se recusaram a conversar com integrantes do movimento de luta por moradia; o enorme passivo ambiental, formado inclusive por uma barragem de rejeito altamente tóxico (Barragem do Mazargão,  que tem a soda cáustica como um dos componentes), colocando em risco as comunidades de vários bairros. (Tudo documentado). 12 – Mais alguns passivos ambientais são um lago de lama dentro da cidade, bairro Jardim Alvorada, conhecido como Buraco Quente; área de rejeito onde funcionava a antiga panificadora Itacolomi, próximo à garagem da Turim; lugar onde retirava bauxita dentro do Parque Natural da Cachoeira das Andorinhas, cabeceira do Rio das Velhas, afluente do São Francisco e que abastece grande parte se Belo Horizonte; uma grande erosão numa encosta nas imediações da Praia do Circo, atrás da academia, consequência de direcionamento de água de chuva, quando desaterraram parte da Vila São José para cobrir o lago de lama do Buraco Quente; sem falar na morte do rio Tripuí, Rio da Barra; além de terem secado o trecho do rio Maynart, justamente na parte que corta a sede do distrito de Santo Antônio do Salto, para a construção de três hidrelétricas. 13 – Reivindicamos basicamente três coisas: que sejam cessadas imediatamente as vendas das terras até a conclusão do inquérito pelo Ministério Público; que a Prefeitura desaproprie o imóvel para construção de um bairro, caso seja confirmado que a propriedade é da Novelis; que a metalúrgica discuta com o povo da cidade o que fazer com suas enormes instalações, a fim de gerar emprego e renda. 14 – Queremos um bairro modelo em termos de planejamento, podendo, para isso, serem feitas parcerias com a COHAB (Companhia de Habitação de Minas Gerais), com o programa Minha Casa Minha Vida, com a Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), com o Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) – ambos com campus da cidade -, com os movimentos sociais de todo o País ligados ao tema, dentre outros. 15 – O lugar funcionará também como um cérebro para pensar moradia, planejamento urbano e preservação do patrimônio histórico de Ouro Preto. 16 – Há também o desejo de que ali funcionem oficinas para producão e transmissão de conhecimentos referentes a métodos construtivos alternativos e ambientalmente sustentados. 17 – As famílias estão conscientes de que os lotes estão sendo marcados SIMBOLICAMENTE e de que o local definitivo da moradia só será decidido após o planejamento do bairro (não sabemos ainda se serão casas ou prédios). 18 – É claro que numa situação dessa (ocupação envolvendo, diretamente, cerca de 500 famílias) é muito provável que ocorram falhas, problemas, mas que serão enfrentados com muito diálogo, a fim de que não sejam cometidas injustiças. 19 – Agende uma visita, venha passar um tempinho com a gente, traga suas sugestões e tire outras dúvidas. 20 – Ajude-nos a divulgar este primeiro manifesto. 21 – As famílias da Ocupação Chico Rei agradecem sua atenção, pedem seu apoio e desejam a tod@s um “Feliz Ano Novo, que tudo de realize no ano que nasceu, com muita CASA pro povo, saúde pra dar e compartilhar”. *** APAREÇA NA NOSSA REUNIÃO DESTA SEGUNDA-FEIRA (4), ÀS 18H, NO BARRACÃO CENTRAL DA OCUPAÇÃO CHICO REI. VENHA TRAZER SUGESTÕES E TIRAR DÚVIDAS.  *** Para entender melhor, não deixe de ler também o artigo contido no link a seguir, de autoria de professores da UFOP.  http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0370-44672003000300004

  2. Coincidência esse tema agora.

    Interessante notar agora a coincidência dessa notícia em que o entendimento habitual do TJSP, em favor da interpretação do direito à propriedade como absoluto e não condicionado, é posto sob questionamento, porque foi a tese defendida em apoio ao TJSP, em entrevista concedida para o Nassif no Brasilianas, pelo Desembargador Renato Nalini, que passa a integrar a equipe do Governo do Estado na pasta da Educação. A boa memória do Nassif deve lembrar-se bem do que disse o democrático magistrado sobre os direitos sociais insculpidos na Constituição de 1988. Daí fica fácil entender porque o déficit de moradias não recua nunca. E não ha de faltar quem diga que é culpa do Governo Federal.

  3. Não entendi porque nominar o

    Não entendi porque nominar o grande jurista e patrono de muitas causas nobre, pelo primeiro nome,  grande maioria não sabe seu nome completo – Enrique Ricardo Lewandowski. Por favor, o nome desse grande brasileiro quando listado  pela mídia é apenas  RICARDO LEWANDOSWSKI, e ai não temos dúvidas de quem se trata,  ponto.

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