Lawfare-Lula e ONU: afinal, para onde foram a consciência jurídica e a boa-fé?
por Eliseu Raphael Venturi
A cultura jurídica brasileira, embora o número considerável de fontes jurídicas de qualidade, é desastrosa em matéria formal e substancial de direitos humanos, e isto não é novidade alguma.
A cultura judicial brasileira é ainda mais medonha e, quanto mais arbitrária se manifesta, mais evidente é esta aberração. Estamos próximos de mais uma evidência neste sentido, ou o Judiciário mostrará alguma seriedade no assunto?
Efeitos de direitos humanos nos campos disciplinares específicos (no Direito Penal, no Processo Penal etc.), e que conferem nova potência à concretização dos direitos sonegados, causam pavor em muitos “operadores” do Direito que se colocam acima das normatividades que os obrigam – seja ético-jurídica, seja na finalidade do agir institucional.
Embora desde Kelsen[1] já se tenham linhas sólidas da interação entre ordenamentos internos e pactos internacionais e, quanto mais, se tenha reforçado uma “consciência jurídica universal” a partir dos horrores da Segunda Guerra Mundial e da profunda maturação do Direito Internacional[2] desde o mesmo período, ainda se tenta obnubilar a questão em pleno ano 2018.
A advertência político-jurídica sobre a necessidade de limitações do exercício de competências e de prerrogativas no seio da soberania parece ainda ser pouco ouvida.
Não é raro, na prática do Direito ou mesmo nos espaços acadêmicos, o desapreço pelos direitos humanos enquanto corpo substancial de direitos e fundamento de juridicidade, bem como enquanto mecanismo de controle da própria atuação judicial e pública, de um modo geral. São visões restritivas ao máximo e, assim, senão obtusas, antidemocráticas.
Com isto, ignoram-se as próprias razões históricas do desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos. É um problema, antes de mais nada, de hermenêutica e de argumentação jurídicas; antes mesmo das fraturas políticas mais perniciosas ao pensamento jurídico.
Posturas evasivas ao funcionamento institucional fazem parte desta cultura antijurídica que, por razões de manutenção de estruturas de poder e de privilégio, insiste em negar vigência aos direitos por meio de expedientes, odiosa e pretensamente teóricos, quando não declaradamente ignorantes mesmo.
E se os direitos fossem “realmente” levados a sério? Pelo número de suas violações na vida social, o cenário seria realmente estrondoso. Haja tutela coletiva para ser posta em movimento.
Mas, como o Direito não acontece despregado de uma realidade socioeconômica (embora esta não possa, no plano deôntico, ser determinante das titularidades jurídicas), as próprias relações intersistêmicas dão conta de conter o colapso que uma coincidência do dever-ser e do ser proporcionariam em termos de pretensões em execução e implementos concretos.
Assim, muito embora não seja novidade alguma esta cultura de despareço e de violação intencional de direitos, nunca se teve uma evidência tamanha como o caso do “lawfare” do Presidente Lula oferece a cada novo capítulo de seu tragicômico desenvolvimento institucional.
Parece que, mais uma vez, Lula alcança um novo lugar de representatividade significativa da população brasileira: a do jurisdicionado cujas autoridades julgadoras-administrativas, quando não ignoram o Direito, violam-no intencionalmente nas mais elevadas esferas e em detrimento das mais elevadas fontes, como ocorre ao momento, de modo flagrante.
O recente pedido do Comitê de Direitos Humanos da ONU, diante do fundamento jurídico de o Brasil ser signatário do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) [3], e sua recepção silenciosa[4], negativa, indiferente ou mesmo contrária por alguns “operadores” do Direito, é uma situação estrondosa.
Trata-se de tema já clássico em matéria de dimensões de direitos humanos e sequer deveria ser objeto de questionamento pelas autoridades, que mascaram, ou no mecanismo de garantia de cumprimento da medida, ou em seu simples e arbitrário desejo autoritário, uma alegada “irrelevância jurídica”[5] ou caráter de “mera recomendação”[6].
Olvidam-se, contudo, os efeitos decorrentes de o Brasil violar obrigações assumidas, assim como os danos irreparáveis advindos do descumprimento da medida – o que, obviamente, já se ignorou quando das conduções dos processos que deram azo ao pedido de pronunciamento internacional.
Viola-se, portanto, de plano, a boa-fé no cumprimento das obrigações internacionais[7]. O mundo continuará se perguntando com que tipo de Estado estão negociando, e os cidadãos a que tipo de Estado estão subordinados.
Há muito o Direito Internacional (é, ou deve ser) regido por mecanismos interpretativos complexos e interrelacionados, formando um composto hermenêutico que se articula diretamente com a ordem jurídica interna. Pensar o “dentro” é obrigatoriamente passar pelas conexões com o “fora”.
A “consciência jurídica universal”, fonte material do Direito Internacional, assim como a “humanização do direito internacional” e o “primado do direito internacional sobre a força” são pressupostos indispensáveis a uma visão atual destes mecanismos em regimes de proteção dos direitos da pessoa humana tendente a um “direito internacional da humanidade”[8].
Seja qual for o caminho, vimos violações “dentro” e “fora”. Agora é aguardar a próxima surpresa em mais uma quina do labirinto deste insano processo kafkaniano à brasileira. ]
Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.
1 KELSEN, Hans. CAMPAGNOLO, Umberto. Direito Internacional e Estado Soberano. Tradução de Marcela Varejão. São Paulo: Martins Fontes, 2002. KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 1990.
3 BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Decreto n. 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm>. Acesso: 17 ago. 2018. BRASIL. Câmara dos Deputados. Decreto Legislativo n. 311, 2009. Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decleg/2009/decretolegislativo-311-16-junho-2009-588912-publicacaooriginal-113605-pl.html >. Acesso em: 17 ago. 2018.
6 UOL Eleições 2018. Itamaraty diz que posição do comitê da ONU sobre Lula é “recomendação”. Disponível em: < https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/08/17/itamaraty-diz-que-posicao-do-comite-da-onu-sobre-lula-e-recomendacao.htm>. Aceso em: 17 ago. 2018.
7 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Princípios do Direito Internacional Contemporâneo. 2. ed. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2017. p. 162.
8 Todas as expressões decorrem de construções propostas, ao longo dos últimos 40 anos, por: CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A humanização do direito internacional. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2015.
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