Lembrando Welzel que tanto influiu na reforma penal

Introduzindo o leitor à teoria do direito penal Hans Welzel começa falando do significado e da missão do direito penal para ensinar os fundamentos da administração da justiça na esfera criminal:

“1. Como ciência sistemática, o direito penal tem por objetivo construir e oferecer o fundamento para uma equânime e justa administração da justiça, na medida em que somente a compreensão da estrutura sistemática interior do direito pode elevar sua aplicação acima da causalidade mecanicista e da arbitrariedade.  Não somente porque serve à administração da justiça, mas porque – em um sentido mais profundo – é uma teoria do agir humanojusto e injusto, a ciência do direito penal é uma ciência prática.

2. É missão do direito penal proteger os valores elementares da vida social e comunitária. Toda ação humana, para o bem ou para o mal, está sujeita a dois aspectos distintos de valor: de um lado, pode ser valorada pela medição do resultado que alcança (valor do resultado ou valor material).  Por outro lado, independentemente do resultado que se obtenha, pode ser valorada pela compreensão do sentido da conduta em si mesma (valor do ato, da escolha que o sujeito fez).  Exemplo: um dos valores humanos mais básicos é o trabalho. O seu valor pode ser apreciado, em parte, vendo o resultado material – a obra produzida pelo esforço (Valor resultado ou valor material – critério técnico).   Porém, independentemente de que a obra tenha sido alcançada ou não, o trabalho – em si mesmo – é um valor na existência humana.  O comportamento, como tal, tem um significado na vida humana tão somente como conduta de escolha (decisão), ou seja, como atividade dirigida para alcançar uma obra.   Porém, esse sentido é mantido em face da atividade, mesmo quando a conduta não tenha produzido o resultado, a obra.  (Valor do ato, valor moral – critério ético).

Ambos os tipos de valores têm significado para o direito penal. Direito penal visa, em primeiro lugar, proteger determinados bens da vida da comunidade, tais como a existência do estado, a vida, a saúde, a liberdade, a honra, a propriedade, etc. (os chamados bens jurídicos), determinando consequências jurídicas (pena, medida de segurança ou medida protetiva) à lesão desses bens.

            “3.  Bem jurídico é um bem vital do grupo ou do indivíduo que, por causa de sua importância social, é legalmente protegido.  Em outras palavras  é, portanto, todo status social desejado que o legislador  quer proteger contra lesões. A soma dos bens jurídicos não constitui um “montante atomizado“, mas sim a ordem social, e, portanto, o significado de um bem jurídico não deve ser apreciado isoladamente, mas apenas em relação ao conjunto de toda a ordem social.  O direito penal contém apenas proteção dos bens jurídicos selecionados contra determinada classe de agressões.

4. É missão do direito penal a proteção dos bens jurídicos por meio do amparo aos valores ético-sociais básicos da ação humana.   O direito penal cumpre a sua missão de tutela dos bens jurídicos, proibindo ou impondo ações de determinados tipos. Por trás dessas proibições ou comandos estão os deveres ético-sociais básicos (valor do ato), cuja vigência é assegurada pela ameaça de pena às ações que os lesionem. Assim, o direito penal obtém uma proteção ampla e duradoura dos bens jurídicos e, por outro, a limitação tipológica das formas de agressão éticas socialmente reprováveis.

Limitando-se à proteção dos bens jurídicos, mediante o cumprindo dos deveres básicos, o direito penal desempenha uma importante função, na medida em que presta contribuição à formação do comportamento moral. Certamente, o direito penal é somente um fator dentre as inúmeras forças que constituem a moral de uma época; daí, que a relação entre esses dois deveres deve ser considerada como de importância fundamental.   Pelo fato de que: (a) destaca a vigência efetiva dos deveres ético-sociais básicos, punindo àqueles que os lesionam; (b) modela e consolida eficazmente o juízo moral e o senso jurídico dos homens submetidos ao Estado de direito.  

A segurança do juízo ético-social dos indivíduos depende, essencialmente, da segurança e da prudência com que o Estado pronuncia e impõe os seus juízos de valor. É certo que essa segurança do juízo estatal não é determinada tanto pela severidade, como o é pela certeza da aplicação das penas. Ou seja, a chave é a continuidade permanente da aplicação da sanção (sustentabilidade), sem distinções ou privilégios (igualdade).

            E aonde a validade dos deveres sociais básicos vai perdendo terreno, devido a uma administração da justiça penal despreocupada de si mesma, o relaxamento não é limitado aos deveres ético-sociais básicos, mas afeta a totalidade valores éticos do mundo normativo. Aqui reside o impacto mais profundo do direito penal: por mais que as suas normas se limitem a abranger os deveres ético-sociais elementares, resulta em que acaba dando suporte para a existência do mundo moral (comportamento voluntário e espontâneo de interferência subjetiva)

Assim, o direito penal se eleva a si mesmo e toma seu importante lugar na plataforma da cultura total de sua época histórica.  Mas só cumprirá esse papel se o administrador da justiça souber limitar sabiamente os meios de que dispõe. O excesso na aplicação das penas desmontará suas armas. O direito penal deve limitar-se à punição dos fatos que lesionem os deveres ético-sociais básicos e, nesse sentido, tem um caráter fragmentário (BINDING, H. MAYER).”

5 – No julgamento da AP 470 há consenso, unânime quanto a condenação dos réus, mas há discenso quanto a medida de dosagem da pena.  O fato de o plenário do STF ter reduzido seu quórum de votação neste ponto de divergência acabou determinando a mutilação da amplitude de sua vontade coletiva, como forma de impor a visão de mundo e de direito do segmento majoritário daquele órgão coletivo.  Na prática, suprimiu-se a vontade da tendência minoritária.  Na prática, esta manobra poderia ser comparada – guardada as devidas proporções – a uma decisão do congresso nacional em que os parlamentares vencidos na votação de uma emenda constitucional fossem excluídos da discussão e votação do projeto de lei que, por sucessão, estivesse o mesmo congresso obrigado a editar para regulamentar a dita mudança constitucional.

E há uma agravante no comportamento do STF: o ministro revisor foi excluído da participação, o que diminuiu a possibilidade de os demais ministros, na posição de meros vogais (não conhecedores dos detalhes importantes dos fatos, por não terem obrigação de estudar detidamente o processo), debaterem com o ministro relator – detentor soberano e único da ‘verdade factual’ (domínio dos fatos).

Ora, todo julgamento sofre influxo de fatores econômicos, políticos e ético-sociais.  A questão, na esfera econômica já foi reduzida ao seu real valor pela leitura corretiva que o ministro Barroso fez na introdução de seu voto.  

No plano ético-moral, a tarefa técnica de escolha da tipificação da conduta dos réus nos crimes de corrupção ativa e passiva constitui o problema que está no centro do debate que foi brusca e ilegitimamente interrompido na última sessão do tribunal.  O ministro   Lewandowsky entende que se trata de crime formal, portanto com sua consumação determinada pelo critério ético, que foca a conduta em si, valorando o momento da manifestação da vontade do sujeito quando aceitou  a proposta lesiva aos interesses da Administração pública.  O ministro Barbosa vê a corrupção como crime material, focando ao fato no momento em que se  dá o pagamento em dinheiro, o que se justificaria se nesse delito o fundamento da reprovação se desse pela valoração técnica desse resultado (valor material).   

Na verdade, parece evidenciado que, no caso, o relevo da reprovação tem forte apelo ético: a importância do evento não está no recebimento da propina, mas sim no alegado negócio que teria sido realizado com o fim de conspurcar a democracia representativa, viciando a votação dos projetos de leis  de iniciativa e interesse do governo dentro de uma das casas do congresso nacional.   Aliás, resultado que seria impossível alcançar pela alegada  ação delituosa uma vez seria que insuficiente para garantir a aprovação no Senado.

 

Finalmente, no julgamento da AP 470 as energias dos impulsos políticos sobrepõem às das outras duas esferas, exatamente porque a sociedade está contaminada pelo calendário eleitora, envolta numa constelação de Fla-Flu.  Do lado dos que focam o valor material aos delitos, dois dos ministros fazem questão de não esconder o temor que dizem ter das ruas (ou do partido da grande mídia?).  Ora, se na subjetividade do julgador a questão recebe esse grau de influxo político, é bom não esquecer que o que identifica a legitimidade de uma maioria na democracia não é o número de pessoas que vão às ruas, cada uma com sua demanda diferenciada e específica.  O que determina o tamanho das massas por suas posições políticas é a voz da Urna.  Quanto a isto, até o mundo mineral está cansado de saber em que lado continua fincada a vontade legitimadora da imensa maioria dos brasileiros.

Redação

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