A experiência indica que os efeitos práticos de uma medida assim dependem menos dos políticos, e mais do Judiciário. Afinal, qualquer que seja a lei, velha ou nova, são os juízes que vão aplicá-la. A tese da anistia de crime anterior por lei posterior que criminalize a mesma conduta pode ser engenhosa, mas teses nunca adotadas preenchem bibliotecas inteiras e permanecem dormentes nos arquivos dos tribunais. A pergunta que interessa na prática é: o Judiciário será convencido?
Em primeiro lugar, tipos penais são categorias que tentam capturar fatos reprováveis que ocorrem na sociedade. Ou seja, ninguém “comete Caixa 2”, o que ocorre é que as pessoas deixam de contabilizar e declarar recursos financeiros recebidos. Ao fazer isso, podem estar cometendo diversos crimes, como falsidade ideológica, estelionato, lavagem ou ocultação de bens. O tipo “Caixa 2” ainda não existe no nosso direito penal, mas os atos que esse tipo tenta descrever, dependendo de certas especificidades de cada caso concreto, já se enquadram em outros tipos penais existentes.
Com isso, mesmo que ninguém possa ser condenado “por Caixa 2” antes de criação desse tipo penal, esses mesmos atos podem já se enquadrar em outros crimes – sendo, portanto, puníveis. Ou seja: quem deixar de contabilizar e declarar recursos financeiros recebidos pode até não ser condenado por “crime de Caixa 2”, mas pode ser condenado por falsidade ideológica, estelionato, lavagem ou ocultação de bens, bem como outros tipos penais existentes.
Não há aqui nenhuma novidade. Houve uma época em que “sonegação fiscal” não era criminalizada como tal, no entanto, quem falsificava um recibo para enganar a Receita respondia por falsidade documental. A tipificação não anistia aqueles que já cometeram crimes tipificados, apenas cria mais um tipo para enquadrar criminosos futuros.
Vai ser esse o caso do Caixa 2? A julgar pela prática do Judiciário brasileiro, a manobra do Congresso tem grandes chances de não dar certo nos nossos tribunais.
O caso do “Mensalão” é instrutivo. Durante o julgamento, diversos réus admitiram especificamente a prática de Caixa 2. A tática era confessar um ilícito eleitoral menor para evitar que os mesmos fatos levassem a condenações mais gravosas, por corrupção e lavagem de dinheiro. Não deu certo. Essa tese da defesa não foi capaz de convencer os ministros.
Assim como os réus no “Mensalão”, políticos tentam usar agora as armas que têm para tentar escapar de uma condenação. Mas o destino dos envolvidos em práticas desvendadas na operação Lava Jato não está só nas mãos dos legisladores. Aqueles que deixaram de contabilizar e declarar recursos financeiros recebidos poderão, com ou sem a nova tipificação do crime de Caixa 2, ser condenados por falsidade ideológica, estelionato, lavagem ou ocultação de bens.
Mais ainda, agentes públicos (ainda que fora da função ou antes de a assumir) que solicitaram ou receberam esses recursos como vantagem indevida para si ou para outrem, com ou sem a tipificação do Caixa 2, poderão ser condenados por corrupção. Corrupção é corrupção – tanto no Caixa 2, como no Caixa 1. Assim como ocorreu no “Mensalão”, sem convencer os juízes, a engenhosidade da tese não é garantia de nada.
Para o bem e para o mal, independentemente do sucesso dessa manobra legislativa, o destino da Lava Jato continuará nas mãos do Judiciário. Quanto a isso, o maior risco de impunidade não está na promulgação de uma lei de anistia implícita, ou mesmo na adoção de uma tese de defesa inovadora. O perigo está na ineficiência e na morosidade de sempre impedir a condenação de culpados, especialmente daqueles que tem direito ao foro privilegiado.
A multiplicação de inquéritos e ações no Supremo poderá demonstrar a incapacidade de o tribunal – que tanto sofreu com as dezenas de réus do “Mensalão” – julgar adequadamente as centenas de réus da Lava Jato ao mesmo tempo, enquanto corre contra o relógio da prescrição. Nada seria mais desolador do que se os crimes cometidos fossem “anistiados”, não por manobras legislativas, mas sim pela incapacidade do Judiciário dar efetividade às leis penais. Aí está o verdadeiro perigo. Evitá-lo depende apenas do Supremo.
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