O dever do advogado de defender o Estado Democrático de Direito, por Pedro Pulzatto Peruzzo

Do Justificando

A luta não para e não vai parar

Por Pedro Pulzatto Peruzzo

Tenho assistido, participado e incentivado grupos de juristas que se valem de suas funções para fazer oposição à opressão que a pequena parcela rica da população está colocando em curso cada dia com mais vigor no país. Em 2013, surgiram os Advogados Ativistas, que acompanharam com pouquíssimo ou nenhum apoio da OAB as manifestações populares em São Paulo e ainda foram presos e agredidos pela Polícia Militar. Jovens dispostos a fazer valer a Constituição na rua e não sentados em cadeiras de veludo reverenciando coronéis e aristocratas.

Em Campinas, o grupo Advogados Independentes se reuniu no dia 12 de abril de 2016 para registrar oposição ao apoio que a OAB Federal e a maioria das Seccionais e Subseções estão dando ao impeachment da Presidenta Dilma, e a expectativa é que esse grupo se fortaleça ainda mais para dar continuidade às lutas necessárias neste momento histórico da política brasileira.

Quando fui convidado pelo grupo que organizou o ato em Campinas para registrar algumas palavras a respeito da situação política do nosso país, procurei entender o movimento e, tendo aceitado o convite, o primeiro registro que fiz é que eu só tinha aceitado estar no ato pelo fato de se tratar de um encontro de juristas independentes que se reuniram pela democracia.

Este texto é uma reflexão sobre a necessidade de fortalecimento do

s grupos que superam a bajulação classista dos conselhos profissionais e avançam em direção à consolidação da autonomia plena do cidadão e do profissional. Aqui estou falando como advogado, e advocacia independente não significa “advocacia desamparada”, não significa “advocacia paralela”, não significa “advocacia desinstitucionalizada”, mas significa, isso sim, uma advocacia de resistência, uma advocacia livre, pois comprometida com a autonomia popular e com o Estado Democrático de Direito.

Tenho apoiado esses grupos de juristas, pois no juramento que fiz quando recebi minha carteira da Ordem dos Advogados do Brasil, me comprometi publicamente a defender esse Estado Democrático de Direito que hoje se encontra agredido e, na minha concepção, defender o Estado Democrático de Direito significa ser intransigente com decisões aristocráticas, oligárquicas, coloniais, opressoras e elitistas tomadas e impostas de cima para baixo sem a participação do real titular do poder, ou seja, do povo e, no que diz respeito à nossa classe, sem a consulta a todas e a todos os advogados que labutam diariamente para honrar a missão de auxiliar a Justiça.

Apenas para reanimar a memória, o que eu jurei foi o seguinte: Prometo exercer a advocacia com dignidade e independência, observar a ética, os deveres e prerrogativas profissionais e defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração da justiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas.

Fiel ao meu juramento, eu sou absolutamente intransigente com qualquer ato de opressão e não bajulo advogado, não bajulo entidade de classe, juiz, promotor, parlamentar, policial ou qualquer outra pessoa ou instituição que caminhe na contramão da democracia participativa, que agrida as minhas prerrogativas profissionais e, principalmente, as minhas prerrogativas de cidadão.

Eu não bajulo e não compactuo com pessoas que se valem de artimanhas e do conhecido jogo sujo do cinismo e da cordialidade para manipular o povo, especialmente os menos favorecidos que, no Brasil, sempre estiveram à margem das políticas públicas e sempre suportaram o peso da péssima distribuição de renda, do racismo, do machismo e do colonialismo que ainda persistem na estrutura de um Estado que não concluiu devidamente o seu processo de transição para a democracia.

Também quero registrar que não tenho nenhum, absolutamente nenhum rabo preso com empresários que só pensam em garantir os seus lucros e nada mais, empresários que financiaram a escravidão dos negros e o genocídio dos povos indígenas, e que há pouco tempo atrás financiaram também a ditadura civil-militar no Brasil e em toda a América Latina, e que hoje se concentram na cúpula da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo para repetir e fortalecer a lógica que manchou de sangue a história do nosso país.

O meu compromisso é e sempre será com a democracia e com um desenvolvimento econômico e social que não se faz com o fortalecimento de parlamentares e servidores públicos corruptos, como o Eduardo Cunha, o Paulo Maluf e tantos outros que integram a comissão do impeachment, mas sim com a realização e a concretização absoluta do que está disposto no artigo 170 da nossa Constituição Federal, ou seja, que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa e tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.

Se nós queremos realmente fortalecer a nossa economia, como estão dizendo por aí, então precisamos parar de inflar patos amarelos e de subornar parlamentares dispostos a precarizar ainda mais a legislação trabalhista e, então, começar a construir as bases de uma economia popular que tenha por finalidade distribuir a renda e assegurar a todos (e não apenas a alguns) existência digna conforme os ditames da justiça social. Isso é pra ontem. Já estamos muito atrasados e ainda existem muitas pessoas passando fome, ainda existem muitos índios na beira das estradas, ainda existe latifúndio, ainda existe muita concentração de renda, ainda existe trabalho escravo e ainda existe xenofobia, racismo e machismo nas estruturas do Estado brasileiro. Com isso tudo não dá pra falar em desenvolvimento econômico e social e muito menos em fim da corrupção!

O Brasil está vivendo um momento decisivo para a democracia e se nós não soubermos ou não conseguirmos realizar mudanças estruturais de natureza econômica, política e social, em muito pouco tempo nós estaremos vivendo outra crise como esta que estamos vivendo agora. Enquanto aqueles que concentram a maior parte da riqueza do país estiverem dispostos a colocar o Estado exclusivamente a serviço dos seus interesses, não haverá nenhuma possibilidade de superarmos a triste marca da corrupção que, é importante deixar claro, não está apenas nos altos patamares do governo, mas faz parte do cotidiano de cada brasileiro e de cada brasileira que desde pequeno aprende a passar o outro pra trás, a puxar o tapete, a ser egoísta, a dedicar a vida mais ao dinheiro do que ao respeito e a compreender a liberdade a partir do conceito da propriedade privada, ou seja, “aquela liberdade que termina onde começa a liberdade do outro”.

A minha liberdade termina onde termina a liberdade de vocês e começa exatamente onde começa a liberdade de vocês. Se nós não superarmos a concepção cercada, murada, demarcada de liberdade, nós vamos continuar vivendo no egoísmo, na guerra e na corrupção. Todos os brasileiros (ou a maioria) estão dispostos a lutar por um país sem corrupção, mas isso deve começar na mudança que devemos estar dispostos a fazer em nós mesmos.

Não vamos construir um país sem corrupção fortalecendo parlamentares corruptos ou derrubando um governo que, apesar de todos os problemas, foi escolhido através das urnas. As elites econômicas, no Brasil, nunca gostaram das urnas e não é agora que vão gostar! No entanto, o impeachment não é um jogo de truco em que ganha aquele que grita mais alto, mas um procedimento excepcionalíssimo previsto na Constituição para assegurar a existência das próprias instituições democráticas. Ocorre que o impeachment está sendo usado como instrumento de vingança de classe, e de uma classe que não tem nenhum compromisso com a justiça social, com a economia, com a imagem internacional do país e muito menos com as nossas instituições democráticas.

Ora, as instituições estão funcionando! Nós podemos listar várias críticas, mas a Polícia Federal está trabalhando, o Ministério Público está trabalhando, o Supremo Tribunal Federal está trabalhando, pessoas ricas estão sendo presas (o que é novidade na nossa República) e o que é principal, apesar da grande mídia ter escolhido apoiar o retrocesso democrático, nós ainda temos muitos espaços públicos onde podemos conversar livremente sobre política.

Neste momento nós devemos superar qualquer proposta que legitime qualquer um que esteja envolvido com corrupção e que queira deslegitimar o resultado que alcançamos nas urnas. Neste momento nós devemos fortalecer e assegurar autonomia e independência para que as instituições democráticas continuem fazendo o seu trabalho e, especialmente, precisamos dedicar esforços para que o resultado dessa crise toda seja uma reforma política de verdade que quebre todos, absolutamente todos os laços que ainda existem entre os interesses privados de uma minoria rica e os interesses públicos, que também devem prestigiar os interesses dos mais pobres.

Qualquer mudança estrutural exige a autonomia do povo, mas sem a democratização da mídia essa autonomia será apenas um devaneio. A democratização da mídia é outra conquista que necessariamente deve emanar desse processo de crise que nós estamos vivendo, pois enquanto existir a Rede Globo vai continuar existindo opressão!

Uma reforma política deve ser a consequência direta de uma reforma econômica e também de uma revolução cultural, pois nós também precisamos desmilitarizar a política (e também as Polícias), pois enquanto existirem figuras como Bolsonaro e Coronel Fulano ou Coronel Ciclano (sórdida lembrança genocida dos bandeirantes), nada de novo vai ser feito na política, pois não é com sangue dos pobres, não é com sangue dos negros, não é com sangue dos índios e não é com sangue de mulheres e homossexuais vítimas do machismo e do preconceito que nós vamos construir uma sociedade mais livre, justa e solidária.

O convite que eu faço hoje é no sentido de não perdermos o foco da nossa luta, que é pela Democracia e pelos Direitos Humanos não enquanto semântica da homogeneidade, mas sim enquanto fundamento para a promoção das diferenças. A nossa luta não começa e nem termina nesse processo golpista de impeachment, da mesma maneira que a corrupção não começou agora, mas sim no momento em que os primeiros invasores coloniais aportaram nestas terras dispostos a saquear os nossos recursos naturais, exterminar os povos tradicionais e implementar um estado burocrata, oligárquico e uma economia estruturada no latifúndio, na monocultura e no trabalho escravo.

Nós precisamos radicalizar (no sentido de enraizar) a democracia. A transição para a democracia ainda não se consolidou, pois a Polícia ainda mata muito mais negro do que branco. Pois, apesar de a Constituição ter dito que todas as terras indígenas deveriam ter sido demarcadas até o ano de 1993, ainda existem muitos conflitos agrários e a matança de índios no Brasil configura crimes contra a humanidade ainda não apurados.O cacique Babau está preso na Bahia e os Guarani-Kaiowa do Mato Grosso do Sul estão sendo impedidos de depor na CPI do CIMI no seu idioma tradicional ainda que a legislação brasileira e a própria Constituição disponha em sentido contrário.

A transição para a democracia ainda não se consolidou uma vez que a coisa pública ainda está a serviço de interesses privados de minorias ricas e a reforma política que nós precisamos ainda está muito longe de acontecer. A transição para a democracia ainda não se consolidou, pois nós somos o 5º país no mundo que mais mata mulheres e ainda não superamos a vergonhosa trans/homo/lesbofobia que orienta discursos de ódio por todas as partes, inclusive dentro de salas de aula.

Nós queremos que o impeachment não seja apenas mais uma ferramenta dos coronéis para impor ao povo a repetição de um modelo político e econômico falido. O que nós queremos é que o povo possa deliberar sobre o destino do nosso país, pois a democracia participativa está prevista no primeiro artigo da nossa Constituição. No entanto, aconteça o que acontecer, não nos esqueçamos que política não se confunde com politicagem e que política nós devemos fazer a vida toda! É na luta que nós nos fortalecemos, é na luta que nós nos educamos, é na luta que nós vamos construir as novas estruturas para realizarmos a transição democrática que precisa ser feita.

Aconteça o que acontecer, o sol de amanhã vai continuar iluminando as nossas lutas, pois as nossas lutas nunca deixaram de existir e não vai ser um grupo restrito de políticos corruptos e uma cúpula de empresários golpistas que vai atrapalhar a continuidade do nosso agir histórico.

Força ao povo! Força à democracia! Força aos juristas independentes!

Pedro Pulzatto Peruzzo é advogado, professor pesquisador da PUC-Campinas e diretor da Comissão de Direitos Humanos da OAB-Jabaquara.

Redação

8 Comentários

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  1. com certeza, esses advogados

    com certeza, esses advogados defensores do verdsdeiro estado

    democrático de direito sempre serão lembrados pela história com dignidade,

    ao contrário dos infames que negam o garantismo, o direito de defesa das pessoas,

    pois sem isto o  que há           é   o estado de exceção, onde não existe

    nem a função advocatícia no seu sentido mais profundo…

  2. Espero que não ocorram atos

    Espero que não ocorram atos de violência, que manifestantes de esquerda lembrem que repórteres são apenas figurantes, meros empregados do andar de baixo dos oligarcas da informação, que guardinhas e meganhas são pobres paus mandados em troco do leite que sustentam suas famílias, que a maior parte dos que se manifestam em contrário são apenas inocentes manipulados, trouxas ou simplórios ignorantes que lutam contra seus próprios interesses e contra a pátria enganados pelos mandantes do golpe.

    E que não esqueçam jamais os nomes dos mandantes, principalmente dos donos de oligopólios financeiros, da informação, de organizações patronais chefiadas por canalhas, ladrões e demais bandidos escondidos atrás de mandatos ou mesmo cargos sem mandato obtidos via concursos públicos.

    Lembrem dos falsos pastores milionários, vigaristas que vivem nababescamente pregando ódio e coerção social  e recolhendo dízimos sem pagar impostos, lembrem dos integrantes da chamada bancada bbb – da bala, do boi e da bíblia, de escroques tipo Cunhas, Paulinhos e outros larápios e oportunistas representantes de si mesmos.

    Que a democracia está sendo derrocada por esses gorilas, que um projeto de transformação social, de independência real da Brasil, de desenvolvimento com equilíbrio está sendo solapado.

    Não esquecer jamais os nomes dos responsáveis.

    Nem dos traidores.

     

  3. A voz dos “sem voz”

    Nassif: essa é a OAB que realmente representa o espírito da classe. Peruzzo não disse tudo, mas o suficiente para restabelecer a dignidade da instituição, perdida desde o irresponsável discurso de posse do Dr. Claudio Lamachia, como presidente, quando, demagogicamente, enalteceu o Ministério Público e os Magistrados, sem um aceno sequer a classe para a qual foi “aclamado” para representar.

    De seguinte, fez do nobre órgão reles palanque político-partidário, especialmente com seu fantasioso pedido de impeachment, quando foi vergonhosamente escorraçado pelo deputado e presidente da Câmara, Dr. Eduardo Cunha, que só faltou chama-lo de incompetente.

    São atos desse quilate que mostra nem tudo esta perdido naquela em quem a democracia brasileira, em tempos de glória, sempre depositou toda confiança.

    É consolo e alívio saber que um número significativo de membros da nobre classe não busca os holofotes da grande mídia, ocupados que estão na defesa da maioria “sem voz”, que clama Justiça em face de um Judiciário acovardado, por um lado, ou agindo como cão raivoso, digno dos justiceiros da baixada fluminense, a se utilizar de atos tão baixos e criminosos quanto àqueles a quem acusa, processa e condena.

    Esta, sim, é a verdadeira Ordem dos Advogados do Brasil. Porque advogado não tem de ser bom ou mau. Apenas que ser justo, na defesa intransigente daqueles desvalidos da sorte, ora roubados pelos políticos, ora acuado por boa parte dos “novos” magistrados, estes, ansiosos por fama e dinheiro.

  4. Mane dever….
    Seu dever é ser uma pessoa honesta. E acabou.

    Este é exatamente o pensamento que permite que advogados sejam alçados em nossa sociedade em um patamar que não corresponde ao ideal.
    Não existe relação entre advocacia, defesa de Estado, defesa de não sei o que.
    Isso nunca existiu!

    Não caia na pegadinha da OAB! O dever de um advogado é o mesmo de um frentista.

  5. Não consigo mais acreditar nisso..

    Advogados que estudam “direito” fazem o papel de entortar o certo e acomodar o errado.

    Moros, Janot e GM são advogados..

    Não são só os advogados .. médicos e outros profissionais que agem de forma mesquinha, covarde e interesseira.

    Não acredito nisso ..

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