O direito penal não está aí para solucionar crises

Jornal GGN – Em artigo no Justificando, o advogado criminal Fernando Hideo Lacerda evoca a parábola do quitandeiro para explicar como o Direito Penal deve se comportar quando a sociedade se voltar a ele em busca de soluções para crises.

“Se uma pessoa vai a uma quitanda e pede um antibiótico, o quitandeiro lhe dirá para ir à farmácia, porque ele só vende verduras. Nós, penalistas, devemos dar este tipo de resposta saudável sempre que nos perguntam o que fazer com um conflito que ninguém sabe como resolver e ao qual, como falsa solução, é atribuída natureza penal”, explicou citando o magistrado argentino Eugenio Raul Zaffaroni.

“O que sabemos é apenas o que o direito penal pode fazer (aplicar uma pena rigorosa mediante a individualização de uma conduta) e que, em todas estas situações de crise, dito mecanismo não se presta a resolver o conflito social”.

O articulista cita também outra parábola de Zaffaroni, a do açougueiro:

“O açougueiro era um homem que tinha uma loja de carnes, com facas, facões e todas essas coisas necessárias para o seu comércio. Um certo dia, alguém fez uma brincadeira e pôs vários cartazes de outras empresas na porta do açougue, onde se lia: ‘Banco do Brasil’, ‘Agência de Viagens’, ‘Consultório Médico’, ‘Farmácia’. O açougueiro, então, começou a ser visitado por outros fregueses que lhe pediam pacotes turísticos para a Nova Zelândia, queriam depositar dinheiro em uma conta, queixavam-se de dor de estômago, etc. O açougueiro, sensatamente, respondia: ‘Não sei, sou um simples açougueiro. Você tem que ir para um outro lugar, consultar outras pessoas’. E os fregueses, então, se enojavam: ‘Como é que você está oferecendo um serviço, tem cartazes em sua loja que oferecem algo e depois não presta o serviço oferecido?’. Então, o açougueiro começou a enlouquecer e a pensar que realmente ele era capaz de vender pacotes para a Nova Zelândia, fazer o trabalho de um bancário, resolver problemas de estômago etc. E, mais tarde, tornando-se ainda mais louco,  começou a fazer todas aquelas coisas que ele não podia e não tinha capacidade para fazer, e os clientes acabavam com buracos no estômago, outros perdendo todas as suas economias etc. Mas, se os fregueses também ficassem loucos e passassem novamente a procurá-lo e a repetir as mesmas coisas, o açougueiro acabaria realmente convencido que tinha a responsabilidade de resolver tudo”.

Para ele, é preciso acabar com a noção de que o aumento de penas reduzirá a criminalidade. A solução verdadeira depende de reformar as estruturas que reproduzem injustiça social. “Não existe passe de mágica: penas severas e garantias mínimas servem exclusivamente ao controle social e à dominação”.

Abaixo, a íntegra do artigo:

Do Justificando

O que o criminalista pode aprender com o quitandeiro?

Por Fernando Hideo Lacerda

O que o criminalista pode aprender com a lógica do quitandeiro? A partir da parábola de Eugenio Raul Zaffaroni, que lições tirar da experiência do açougueiro?

Em situações de crise (moral, política, social, econômica, militar, sanitária etc.), costuma-se buscar respostas no direito penal. Recorre-se à ampliação das penas acompanhada da relativização das garantias fundamentais: sanções mais severas e redução dos “direitos humanos” são as bandeiras vulgarmente hasteadas.

Quando os argumentos racionais desaguam em medidas que se pretendem pragmáticas ― mas que, em verdade, não passam de um discurso vazio e oportunista ―, inflama-se o combate do inimigo por meio do direito penal. Terroristas, traficantes, corruptos, estupradores, camelôs, ladrões, comunistas, subversivos e quem quer que nos incomode a ponto de merecer um rótulo: o que o direito penal poderia fazer para combatê-los?

Zaffaroni responde a essa questão com a lógica do quitandeiro, “com a qual nós, penalistas, temos muito que aprender. Se uma pessoa vai a uma quitanda e pede um antibiótico, o quitandeiro lhe dirá para ir à farmácia, porque ele só vende verduras. Nós, penalistas, devemos dar este tipo de resposta saudável sempre que nos perguntam o que fazer com um conflito que ninguém sabe como resolver e ao qual, como falsa solução, é atribuída natureza penal”[1].

Nesse contexto, os criminalistas devem ficar com a sábia lição do quitandeiro. O que sabemos é apenas o que o direito penal pode fazer (aplicar uma pena rigorosa mediante a individualização de uma conduta) e que, em todas estas situações de crise, dito mecanismo não se presta a resolver o conflito social.

Não é preciso um raciocínio complexo para entender. Basta encarar os fatos e perceber que estamos varrendo o inimigo da vez para debaixo de um tapete curto e sombrio: prisões que não devem em nada para as masmorras medievais. E eles vão sair. Em cinco, dez, quinze ou trinta anos. Nesse ínterim, ainda ficaremos preocupados com o indulto de dia das mães e natal ― como se fosse este o grande problema ―, mas cedo ou tarde eles vão sair definitivamente e voltarão a esbarrar com a gente na fila do pão.

O que fazer: aumentar o rigor, clamar por prisão perpétua e pena de morte? Será mesmo que você seria capaz de manter essas convicções diante de um sistema que descaradamente se vale dos instrumentos penais com finalidade política e econômica? Até por uma questão de egoísmo, não parece ser uma boa alternativa, pois não há garantia de imunidade na escolha do próximo inimigo da vez. Será que já não está na hora de procurarmos essas respostas fora do direito penal?

Para Zaffaroni, “a resposta é bastante óbvia: se ninguém faz nada, o direito penal nada pode fazer”. A resposta criminal emergencial serve apenas para que o aparelho burocrático justifique a sua existência, de modo que “são absolutamente ineficazes para prover alguma segurança frente ao inimigo de plantão, porém elas são imediatamente aproveitadas pelas agências executivas de cada país para seus próprios objetivos setoriais (desde eliminar indesejáveis e controlar a massa de excluídos até criar novas fontes de arrecadação ou cobrar proteção)”.[2]

Em tempos difíceis como os nossos, busca-se lamentavelmente cada vez mais respostas no direito penal. Da esquerda revolucionária à direita conservadora, o ponto de consenso muitas vezes parece ser o porrete do direito penal. Preocupante, pois a única reação que ele pode nos oferecer é o aumento do arbítrio, da dominação e do controle social.

Valer-se do drama individual de alguém para comprovar um ponto de vista é de uma canalhice desprezível. Se a dignidade humana passa pelo reconhecimento de que cada pessoa é um fim em si mesmo, refuto de plano a utilização da tragédia de alguém como um meio a serviço do próprio argumento. Não falo, portanto, especificamente do estupro coletivo ocorrido na última semana, mas do legado deixado, da esquerda à direita, por crimes notórios como tal: a resposta punitivista.

Após episódios emblemáticos, forma-se o consenso pela ampliação do direito penal. Por um lado, é comum observarmos movimentos de esquerda apoiando a criminalização de condutas contra grupos minoritários e vibrando com a violação dos direitos de uma elite política e econômica dominante (como se mais direito penal fosse solução). De outra parte, são rotineiras as pautas conservadoras aliadas ao movimento “Lei e Ordem”, que clamam por medidas “tolerância zero”, ampliação das penas e restrição de direitos.

Estabelecido o consenso, a resposta sempre chega na forma de legislação penal mais rigorosa. Dos anticoncepcionais adulterados (“pílulas de farinha”) ao vazamento de fotos de uma atriz global, dos atentados terroristas à divulgação seletiva de escândalos de corrupção. Constrói-se o inimigo para combatê-lo por meio de um direito penal simbólico, que num primeiro momento satisfaz a sociedade amedrontada, mas ― tal o lendário Cavalo de Tróia ― traz em seu bojo sementes antidemocráticas predestinadas a espalhar frutos autoritários.

Vejamos o exemplo da legislação penal que reagiu ao episódio das “pílulas de farinha”, em 1998. A pretexto de combater tais condutas, a pena foi aumentada para entre 10 e 15 anos de reclusão (era de 1 a 5 anos) e foram tipificadas, como condutas equivalentes à venda de medicamento adulterado, a comercialização de cosméticos e saneantes de procedência ignorada ou sem as características de identidade e qualidade admitidas para a sua comercialização (artigo 273 do Código Penal).

É isso: o tiozinho do caminhão da água sanitária e a vizinha que está vendendo um batom caseiro para ajudar na renda da família estão sujeitos à pena mínima de 10 anos de prisão, em regime inicial fechado.

Paralelamente, convém ressaltar que as mesmas mãos que ontem aplaudiam a condução coercitiva de uma elite política poderão amanhã estar sendo puxadas com a mesma coerção. Nesta semana, agentes da Polícia Federal cumpriram 40 mandados de condução coercitiva simultaneamente em uma única operação [3]. Quarenta. Simultaneamente. Em uma única operação. São quarenta investigados, em uma só tacada, a quem foi violado o direito de ir e vir, que não tiveram respeitada a garantia mínima de serem intimados para ter conhecimento dos fatos em apuração e poderem exercer adequadamente a sua defesa no interrogatório.

Nesse mesmo caminho, a nova moda é a “privatização das interceptações telefônicas”. Após a decadência do modelo “delação mediante sequestro”, essa parece ser a tendência para o inverno/2016, estimulada pelo Ministério Público Federal ao celebrar acordos de delação premiada com base em gravações unilaterais de conversas telefônicas particulares.

Se o procedimento para viabilizar interceptações telefônicas lícitas é muito garantista (pressupõe a existência de indícios razoáveis de participação em um crime, exige decisão judicial, duração máxima de 15 dias), muito mais fácil é estimular a gravação unilateral de conversa por um dos interlocutores e barganhar, na sequência, um acordo de delação premiada.

É a trairagem premeditada estimulada pelo Estado, o ápice do mau caratismo premiado. Uma mistura de infiltração ilegal de agente, interceptação telefônica forjada e delação oportunista.

Precisamos refletir: qual é o nosso problema? O direito penal poderá solucioná-lo?

Sobre a identificação do problema, como bem sugerido por Gerivaldo Alves Neiva, é preciso uma reflexão sobre o ódio nosso de cada dia. Tratemos do patrimônio e da propriedade privada. Ilustrativamente, se os juros estratosféricos cobrados pelos bancos (a moderna escravidão por dívida), as tarifas abusivas cobradas pelas operadas de telefonia, provedores de internet e planos de saúde não te incomodam, mas a ocupação de um imóvel que não cumpre a função social e o furto de um celular lhe irradiam um ódio mortal, talvez seja o caso de equalizar essa relação de amor e ódio, prioridades e preconceitos, para identificar a verdadeira raiz do problema[4].

Em todo caso, seja para os problemas que endemicamente incomodam a sociedade, seja para as crises emergencialmente fabricadas sob medida aos propósitos mais obscuros, convém ainda a reflexão sobre a capacidade do direito penal de contribuir para a sua solução.

No mais das vezes, partimos do pressuposto segundo o qual o direito penal é um aliado nesse combate, para festejar a implementação de grandes mudanças simbólicas que acabam deixando tudo como estava (só que pior).

Aí entra a parábola do açougueiro, formulada também por Zaffaroni e bem destacada por Rômulo de Andrade Moreira:

“O açougueiro era um homem que tinha uma loja de carnes, com facas, facões e todas essas coisas necessárias para o seu comércio. Um certo dia, alguém fez uma brincadeira e pôs vários cartazes de outras empresas na porta do açougue, onde se lia: ‘Banco do Brasil’, ‘Agência de Viagens’, ‘Consultório Médico’, ‘Farmácia’. O açougueiro, então, começou a ser visitado por outros fregueses que lhe pediam pacotes turísticos para a Nova Zelândia, queriam depositar dinheiro em uma conta, queixavam-se de dor de estômago, etc. O açougueiro, sensatamente, respondia: ‘Não sei, sou um simples açougueiro. Você tem que ir para um outro lugar, consultar outras pessoas’. E os fregueses, então, se enojavam: ‘Como é que você está oferecendo um serviço, tem cartazes em sua loja que oferecem algo e depois não presta o serviço oferecido?’. Então, o açougueiro começou a enlouquecer e a pensar que realmente ele era capaz de vender pacotes para a Nova Zelândia, fazer o trabalho de um bancário, resolver problemas de estômago etc. E, mais tarde, tornando-se ainda mais louco,  começou a fazer todas aquelas coisas que ele não podia e não tinha capacidade para fazer, e os clientes acabavam com buracos no estômago, outros perdendo todas as suas economias etc. Mas, se os fregueses também ficassem loucos e passassem novamente a procurá-lo e a repetir as mesmas coisas, o açougueiro acabaria realmente convencido que tinha a responsabilidade de resolver tudo.”[5]

Tal qual o açougueiro que enlouqueceu com as mais diversas responsabilidades bizarramente atribuídas, Zaffaroni identifica a mesma situação com o direito penal, cuja função essencial se perdeu no meio do caminho, desvirtuada por combates que não pode vencer, missões dadas que jamais serão cumpridas, pois é o veneno ministrado como antídoto.

Se você acha que a melhor resposta para um estupro bárbaro é a prisão perpétua, que o caminho para acabar com a violência nas ruas é instituir a pena de morte e que o caminho para acabar com a corrupção é a violação de todos os sigilos e liberdades para desvendar as práticas ilícitas, desculpe te decepcionar. Está receitando o veneno.

É preciso acabar com a mistificação do aumento de penas para reduzir a criminalidade. Da mesma forma, não podemos apostar nossas fichas em delações premiadas ilegais e conduções coercitivas arbitrárias para simplesmente substituir as peças de uma engrenagem podre.

A solução passa, sim, pelo debate sobre as estruturas que reproduzem injustiça social, pela necessária e urgente reforma política, por repensar as práticas machistas enraizadas em nosso cotidiano. Não existe passe de mágica: penas severas e garantias mínimas servem exclusivamente ao controle social e à dominação.

Nesse sentido, basta olhar no retrovisor para perceber que a atribuição da condição de ser humano aos escravos ocorreu para que lhes pudesse ser imputada a prática de crimes. “Coisas” não cometem crimes, logo é preciso transcender a condição de “coisa possuída por um senhor” para possibilitar a aplicação de sanções criminais. Assim é que “o primeiro ato humano do escravo é o crime, desde o atentado contra o seu senhor à fuga do cativeiro”[6]. Pura e simples dominação.

Basta, também, perceber que ainda hoje existem muito mais países que criminalizam a homossexualidade do que nações onde a união homoafetiva é regulamentada. Puro e simples controle moral.

Basta, ainda, notar que não há como escapar das sanções criminais referentes ao furto de uma simples bicicleta, mas para passar uma borracha em todas as consequências penais da sonegação de milhões de reais em tributos, é só fazer um acordo administrativo e quitar os débitos anos depois. Pura e simples conveniência econômica.

Basta, por fim, perceber o uso despudorado que tem se feito das estruturas do processo penal para viabilizar um golpe político, financeiro, jurídico e midiático em nosso país. Pura e simples seletividade manipulada pelas estruturas de poder.

Basta.

Vivemos em constante evolução e o direito penal é um freio de dominação e controle. Libertemo-nos!

Não espere de um criminalista a resposta certeira para todos os males, mas esteja certo de que a solução para as situações de crise certamente não passa pelo arbítrio do direito penal. Assim como o quitandeiro provavelmente acabaria matando com a sua prescrição médica e o açougueiro teria enlouquecido com as responsabilidades incompatíveis e inconciliáveis, é de rigor que o criminalista não tome o veneno por antídoto e lute incessantemente pela contenção do poder punitivo aos limites menos irracionais possíveis.

Fernando Hideo Lacerda é Advogado criminal e Professor de Direito Penal e Processual Penal na Escola Paulista de Direito (EPD), nos cursos de graduação e pós-graduação. Mestre e doutorando em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).


[1] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p.184/185.

[2] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p.185/186.

[3] http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/operacao-hipocritas-da-procuradoria-e-da-pf-mira-em-40-por-fraudes-em-pericias-medicas/

[4] https://www.facebook.com/gerivaldo.neiva?ref=ts&fref=ts – publicação do dia 10 de maio de 2016, às 11h52.

[5] http://www.pauloqueiroz.net/os-novos-crimes-contra-portadores-de-hiv-e-politica-criminal/

[6] GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 3. ed. São Paulo: Ática, 1980, p. 62-63.

Redação

1 Comentário

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  1. Sonhar

    A polícia está para a sociedade assim como os sonhos estão para o homem.

    A realidade não é mais suportável, o que pode acontecer por diversos motivos, inclusive a ação dos prórios homens, sozinhos ou em quadrilhas.

    Mas que no dia a dia a polícia e o direito penal não resolvem o problema do Brasil, qualquer um minimamente inteligente e informado percebe.

    Vivemos em tempos interessantes.

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