O que há em comum nos casos Richa, Haddad e a advogada algemada?, por Lenio Luiz Streck

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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no ConJur

O que há em comum nos casos Richa, Haddad e a advogada algemada?

por Lenio Luiz Streck

No avanço civilizatório, aprendemos que a teoria da prova é o elemento que impede que as decisões sejam tomadas por subjetivismos, desejos, intuições etc. Trata-se de optarmos ou não pela democracia. Sentenças teleológicas baseadas em desejos (decido e depois fundamento) é inquisitivismo. Parece que o Brasil optou pelo inquisitivismo. É o perigo de uso político do Direito. Flertando com lawfare.

Exemplos não faltam. Há um “capítulo” da denúncia criminal contra o ex-prefeito Fernando Haddad (PT) que tem o título de “máxima de experiência”. E a seguir o promotor de Justiça de São Paulo pede o seguinte:

“O Juiz criminal, ao avaliar o contexto probatório, de forma mais especial em casos de criminalidade organizada, econômica, ou complexa, deve elaborar análise crítica das provas em face do seu contexto objetivo, mas também no seu “interior”, no respectivo subjetivismo, nas suas entrelinhas, nas “informações ocultas”, nas referências, na compreensão da representação e do significado do fato; nas circunstâncias que ele, como ser humano com capacidade analítica e interpretativa, consegue abstrair daquilo que não é claro, não é visível e nem aparente, que não está escrito, mas sabe existir, e pode fundamentá-lo”. (grifei)

Sim, acreditem no que leram. E releiam bem devagar. O promotor quer que o juiz avalie a denúncia a partir de seus — dele, juiz — critérios subjetivos. Ele quer que o juiz leia nas entrelinhas. O que seria isso? Uma nova teoria da prova, tipo “o pintinho envenenado da tribo Azembe”? Com 28 anos de Ministério Público, desde o meu estágio probatório sempre me disseram que a denúncia tinha que ser clara e objetiva. Trazer fatos. Mesmo que o promotor erre o tipo penal, vale a descrição do fato. Se isso é verdade — e é —, então como se pode pedir que o juiz seja subjetivo e leia nas entrelinhas dos autos?

Mais: o promotor pede que o juiz examine a denúncia, “como ser humano que é” (ainda bem, pois não?), com capacidade analítica e interpretativa, abstraindo daquilo que não é claro, não é visível e nem aparente, que não está escrito, mas sabe existir, e pode fundamentá-lo (sic).

Nunca se viu algo semelhante no mundo, mesmo que se queira trazer para o direito brasileiro uma espécie de padrão anglo-saxão de prova, um direito 4.0. Aliás, se o “pedido” de leitura nas entrelinhas e abstrações que o promotor fez na denúncia fossem objeto de concurso público, provavelmente o CNMP anularia a questão por exotismo, como já o fez com a teoria da graxa e similares (aqui).

Isso é ruim para a instituição do Ministério Público. Já escrevi aqui que me preocupo com o uso político do processo por parte da Instituição. Como é possível que um agente político do Estado, que possui as garantias da magistratura, comporte-se a partir de um agir estratégico, como se fosse advogado privado? Como é possível que se admita — e se peça ou se sugira — que o juiz julgue a partir de seu subjetivismo e de leituras nas entrelinhas e daquilo que não está dito nos autos?

Do mesmo modo, preocupa-me que fatos de 2014, cuja investigação terminou em 2016, possam justificar prisão temporária de um ex-governador (Beto Richa – PSDB-PR), em pleno processo eleitoral. Que fatos são esses que não ensejaram prisão ou busca e apreensões antes? Vai ver que o ex-governador e sua esposa mataram alguém e estão procurando o corpo. Prisão temporária? Nesse momento? Alguém governa um estado, vai para a disputa do Senado. Esses fatos — não discuto a gravidade — se deles pudesse redundar a prisão, esta deveria ter sido decretada também bem antes das eleições. E prender por que? Ele no poder, poderia subtrair provas. Mas, por favor, agora fora, que perigo representa? Na decisão, o juiz diz que a prisão garante maior probabilidade de sucesso para coleta de provas. Pergunto: ora, para prender já não tem de ter um material robusto? Interessante também é a fala do promotor do caso. Questionado sobre a interferência nas eleições, disse (ver aqui) saber “que quando atinge um candidato é óbvio que isso interfere [sic]”. E ele segue: “Mas” — sempre tem um “mas”, não? —, “mas não podemos parar os trabalhos por motivos desta natureza. Não foi pensado ou premeditado essa hipótese”.

Certo. Já que o tema é midiático, também respondo a partir do entretenimento. O “filósofo” Ben Stark, em Game of Thrones, já dizia: tudo que vem antes do “mas” não importa. Faça o teste, leitor: “Não sou racista… mas…”. “Não sou homofóbico… mas…”. “É claro que interferimos diretamente nas eleições ao prender um candidato em setembro de 2018 com base em investigações de um período entre 2012 e 2014… mas…”. Isso cai como uma luva para o caso Fernando Haddad também. Ah, esse “mas”! Pois é. Tenho muito medo disso tudo. Sem “mas”.

Assim, a denúncia contra Haddad e a prisão de Richa, entre outros atos desse jaez, desgastam as instituições, em vez de fortalecê-las. A corda estica, estica… Para ser mais claro: tudo o que poderia ter sido resolvido antes, não pode ser precipitado dias antes da eleição. Sobre a denúncia, mostrei já o absurdo do apelo ao subjetivismo do juiz e à leitura de algo que não está escrito (palavras textuais do promotor). Já a prisão do ex-governador do Paraná, neste momento, faz com que nos perguntemos sobre os motivos da prisão, sua necessidade real e quejandos. Nestes casos, sempre é bom ler algo sobre o significado de lawfare. Estamos transformando o processo penal em “direito processual do inimigo”. Lawfare. Exemplos de caderninho.

Nesse turbilhão de coisas, aparece, ainda, uma juíza leiga que prende em flagrante uma advogada — negra — no exercício de seu mister, conforme se vê nas filmagens (ver aqui) e nas matérias das mídias. A atitude da juíza leiga apenas demonstra o autoritarismo incontido de nossas autoridades. Ups: juíza leiga é autoridade? Piorou a coisa. A ver (sem h). De todo modo, ela aprendeu bem o seu ofício, diria um expert em patrimonialismo brasileiro. Lembrete: será que a juíza leiga vai processar quem filmou a cena e quem propagou na internet? Sim, porque, em outro episódio, o defensor Eduardo Newton foi processado por uma juíza de direito por ter postado no Facebook uma filmagem de uma prisão feita por ela, juíza; e quem filmou o ato também foi condenado. Estou curioso para ver os desdobramentos. Afinal, o que é liberdade de informação?

Além da barbárie do episódio, das algemas, da truculência, preocupa o grau de pusilanimidade de certos causídicos que assistem a esse tipo de atitude e nada fazem. A “plateia” quedou-se silente. Os advogados brasileiros estão cada vez mais domesticados. Discurso da servidão voluntária. De tanto apanharem cotidianamente nos fóruns e varas, acostumaram o lombo. Tudo ao contrário do fator Stoik Mujic que venho pregando: ali o sindicalista apanhava e se erguia, apanhava e se erguia…E só por isso sobreviveu. Por aqui, a advocacia se acostumou a apanhar. E advogar virou um exercício de humilhação cotidiana (leiam o que escrevi de há muito). Falta só o chicoteamento. Um imaginário autoritário leva a isso. Até o meirinho, a juíza leiga, o porteiro, o funcionário do balcão e o assessor olham — e tratam — o causídico de cima para baixo. Nem vou falar do tratamento nas audiências — cada coisa que me contam… Bom, e o que dizer das sustentações orais que, de imediato, como se não existissem, são seguidas de longo voto do julgador, sem nem mesmo olhar para o advogado. Ou nas alegações em audiência, que, concluídas, o juiz apresenta a sentença pronta. Há casos em que o juiz sai da sala e, na volta, dá a sentença. Ou não é assim? Cartas para a coluna. E a OAB reage a isso? Como ficou o caso do advogado de São Paulo que foi algemado por ter entrado no elevador privativo dos juízes?

Esses episódios mostram como não levamos a sério as garantias processuais-constitucionais. E nem as prerrogativas de advogado, cuja profissão está sendo dia a dia criminalizada. Esses episódios também mostram como falamos que respeitamos — da boca para fora — e, na prática, produzimos atos e decisões inquisitivas. Teleológicas. Algo como denunciava E.T.A. Hoffmann nas práticas policiais de então, no conto satírico “Knarrpanti”. Hoffmann era também juiz da Corte Suprema da Prússia: identificado o delinquente, depois é só ver o que ele fez. Isso não falha nunca. Bingo. Knarrpanti.

Um advogado, dias desses, perguntou-me: Professor, onde vamos parar? Respondi: já paramos. Aliás, estamos andando de ré. Você não notou?

Post scriptum – O caso arquivado pelo STF (crime de racismo imputado a Bolsonaro): o perigo de um precedente desse jaez

Para quem gosta da tese de que os tribunais superiores são cortes de precedentes, vai aí uma coisa interessante. Bolsonaro foi denunciado por racismo. Por 3×2, o STF não recebeu a peça. Como bem disse o advogado e professor Paulo Iotti, se fosse (se fosse e, segundo ele, não deveria) para ser arquivado teria que ser por imunidade parlamentar, jamais por liberdade de expressão. Explico: com essa decisão, qualquer pessoa poderá, a partir de agora, dirigir esse tipo de ofensa, escárnio, impropério, etc, a alguém e poderá arguir esse precedente. Dirá: “meu direito de opinião”. Vejam: nem preciso discutir o que foi dito (não quero acirrar ânimos e atrair hate speeches). Apenas chamo a atenção para os efeitos colaterais do que foi decidido. Qual será a “tese” (precedente) que se extrai do julgamento? O problema não é o passado. É o futuro. De todo modo, vale, aqui, também a observação sobre o momento do julgamento, próximo às eleições. E se a denúncia tivesse sido recebida? E vale também para o vazamento de delações contra candidatos nesse período. Lá vem o repórter com uma notícia exclusiva, mostrando uma delação não homologada. E não adianta dizer, para justificar, que, embora se saiba que pode interferir no pleito…, e, na sequência, meter um “mas”… E vem o maldito “mas”. Socorro, Ben Stark.

Post scriptum festivo – Ministros Dias Toffoli e Luiz Fux: lembrai-vos da Constituição!

Assume hoje o novo presidente do STF, ministro Dias Toffoli, tendo como vice o ministro Luiz Fux. Desejo profícua gestão e que tenham sempre do lado, como no alto império romano, alguém para, de 500 em 500 jardas, avisar-lhes: “lembrais-vos da Constituição; vossa missão é bem guardá-la” (na Roma antiga, o escravo é quem avisava o general vitorioso: “lembra-te que és mortal”).

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

8 Comentários

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  1. Lênio, ah, Lênio.

    Seu “achado” escrito como a descoberta do Novo Mundo por Colombo (já se sabia dele antes, desde os Vikings), bem como outros povos já “descobriram” e moravam lá fazia séculos, é de uma ingenuidade típica dos nossos jurisconsultos.

    Esse pessoal que esteve com Lula e Dilma e o PT, levando-os a acreditar que em alguma era do mundo, desde que o primeiro homem descobriu a norma como forma de regramento social, que o órgão acusador não usaria o seu processo de acusação como peça política!!!!!

    Arrrrrrfffff…

    Eu tenho o Lênio em altíssima conta, não pelo seu suposto saber jurídico (que parece estar em uma caixa no vácuo, como requer essa cientologia), mas por suas posições políticas.

    Mas o texto é de doer!

    O processo sempre foi utilizado e manipulado por juízes, promotores,policiais e advogados como instrumento político na luta de classes, eminente doutor!!!!

     

    Só isso explica que as economias mais desiguais seja entre os ricos (EUA), seja entre os pobres (Brasil) tenham as maiores populações carcerárias do planeta, e como tais, os presos de sempre: pobres, latinos, pretos e toda sorte de indesejáveis.

    Claro que o MP, nem o juiz ou o delegado estão sós…Eles manipulam leis legisladas para a manipulação!!!

    Sim, caro doutor, vai aí outra dica: os estamentos normativos são causa e efeito de conservação e reprodução do ethos político e das estruturas sociais nas quais estão inseridos.

    O que te assusta agora, talvez, sejam os esbirros e extrapolações que antes não eram tão percebidas, mas que só confirmavam a regra para os de baixo!

    Advogada algemada?

    Uai, em um país onde o promotor senta ao lado de deus-pai todo poderoso, o juiz, e não junto às partes defendentes, como em todo país que ao menos finge ser civilizado, qual o susto?

    A hierarquia já estava posta. Ela agora só resolver gritar seu nome!

    Menos ingenuidade, doutor…menos.

  2. Com relação ao precedente de

    Com relação ao precedente de racismo, o autor pode ficar sossegado. Ele só vale se o denunciado for candidato com changes reais de derrotar o PT.

  3. Comentário

    Caro Prefessor Lenio, eu leigo que sou em direito e leis gostaria que alguem me exclarecesse o seguinte:

    Quem que fiscaliza e pode punir juizes que julga com base em ilações, achismos e outros tantos argumentos não baseados em provas?

    Porque juristas, advogados, professores como você, não exigem um posicionamento da tal OAB? Que no eu entender está  em cima do muro deixando de defender seus representados, afinal é uma entidade de classe profissional, ou não?

  4. O coitado do Lenio Streck……..

    Quando escreve no conjur, baixa uma horda de advogados e membros do judiciario meio bolsominions pra descer o pau no pobre homen, que não cansa de defender esse troço que se chama constituição que, parece, ninguem da a menor pelota……..e quando escreve em blog de esquerda, leva paulada tambem……ta dificil…..tempinhos pra la de estranhos……como ja disse  em outra ocasião, melhor passar receita de bolo ou de camarão na moranga……

    1. Estou esperando a receita de petit gateau!

      Se for para escrever esse tipo de asneira, usando como escudo o fato de ter posição política progressista, é melhor a receita culinária!

      Foi por esse pensamento acrítico na esquerda que imbecis como zé cardozo “passearam” sua estultice e nos ajudaram a chegar até aqui!!!!!

      Quer unanimidade vá fazer igual ao lex luthor moraes e ganhar a vida adestrando concurseiro! Quem sabe sobra uma vaguinha no circo do stf?

      Então ele descobriu agora que promotores usam processos e suas funções como instrumentos políticos?

      Uai, ele estava onde, em Marte?

      Ou no mesmo país dos bocós que acreditaram no judiciário?

      Deve ser coincidência que em todos os momentos de autoritarismo, NUNCA se tenha fechado o mp ou tribunais,e não se conheça juiz ou promotor torturado ou cassado!!!

      Só coincidência!!!!

  5. Respeite a justiça Azande

    “Uma nova teoria da prova, tipo “o pintinho envenenado da tribo Azembe”?

    Dr. Lênio, mais respeito com a justiça do povo Azande (não Azembe), que ela é melhor do que a nossa.

    Se a galinha (não pinto) sobreviver, o réu é absolvido. A nossa mata o réu para poupar a galinha…

  6. O Lenio Streck é
    O Lenio Streck é incansável.
    Dia sim outro também tem nos mostrado como no Brasil o Direito é o que os Tribunais dizem que é.
    As leis e a Constituição são meros detalhes.

  7. !!!!!!!!!!!!!

    Caro Professor,

    Ao conversar com policiais e outras formas de autoridade por 18 anos de serviço público, a impressão que me passam é que já no ato da escolha do concurso público a se prestar, no ato da escolha da profissão, não pensaram em estabilidade, salário, responsabilidade ou nas minúcias do ofício. Agiram por pura vaidade: para poderem fazer o que quiserem sem sofrer consequências, para poderem ter armas ( e as usarem, quando lhes pisarem o pé, é claro), poderem dar carteirada e entrar onde quiser sem pagar, etc. Em vista disso: o concurso para delegado, promtor, juiz e outras merdas deveriam se pautar mais na análise da personALIDADE DO CANDIDATO do que no conhecimento do prolixo direito tão esquecido pelas autoridades ultimamente. Afinal, as leis estão na internet mesmo…Desculpe a lingua de trapo ( o rascunho tava pior ainda, eu mesmo me censurei)!

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