Os Juízes pela Democracia e a operação no Alemão

Terra Magazine. Por Bob Fernandes

Sexta, 3 de dezembro de 2010, 14h18 

Do Terra Magazine

Juíza: Operação no Alemão é “verdadeira enganação” 

Ana Cláudia Barros

“Uma verdadeira enganação”. Esta foi a definição encontrada pela secretária do Conselho Executivo da Associação de Juízes para a Democracia (AJD), Kenarik Boujikian Felippe, para a resposta das forças de segurança à onda de violência no Rio de Janeiro. A magistrada, que é titular da 16ª Vara Criminal de São Paulo, considera equivocada a maneira como o tráfico de drogas está sendo combatido. Para ela, só a base da pirâmide está sendo atingida.

“O que se vê é a prisão dos pequenos. Para se ter um efeito real, é preciso combater os que estão lá em cima. Os de baixo são substituíveis”, afirma, destacando que “a ponta de cima” é o empresário que ganha muito dinheiro com o tráfico. “Esse é intocável”.

AjuiA juíza condena ainda os casos de violação de direitos humanos que começam a vir à tona após as ocupações, sobretudo, do Complexo do Alemão, e o tratamento que parte da imprensa tem dado às operações policiais. Os dois assuntos foram alvos de críticas da AJD, que, no início da semana, divulgou nota repudiando “a naturalização da violência ilegítima como forma de contenção ou extermínio da população indesejada e também com a abordagem dada aos acontecimentos por parcela dos meios de comunicação de massa que, por vezes, desconsidera a complexidade do problema social, como também se mostra distanciada dos valores próprios de uma ordem legal-constitucional”.

– O papel da imprensa é trazer dados, informações para que as pessoas reflitam. Se você não mostra os fatos sob o ângulo da violação – que, infelizmente, está acontecendo -, se você vende uma imagem de que aquilo é uma solução, faz um desserviço.

Confira a entrevista.

Terra Magazine – Porque a AJD decidiu se manifestar?
Kenarik Boujikian Felippe – Em razão de seus propósitos institucionais. Só tem sentido a associação se manifestar nesse contexto. Entre as finalidades da associação, uma organização de juízes criada em 1991, está a questão dos valores do Estado Democrático de Direito. Foi dentro dessa perspectiva que a gente resolveu se manifestar. Em razão ainda de o problema não ser um fato novo. Há alguns anos, o Exército ocupou os morros no Rio de Janeiro. Naquela época, a associação se manifestou, tendo em vista que havia um desvirtuamento da função do Exército.
Hoje, há uma nova coloração, outros envolvidos, alguns fatos se alteraram. A associação não pode ver violações de direitos ocorrendo – e que isso possa ser encarado de forma positiva, como a imprensa tem mostrado -, e não fazer nada.
Na verdade, é necessário que o Estado cumpra seus papéis. É necessário que ele garanta os direitos fundamentais, e a segurança pública é um direito fundamental. Só que isso deve ser garantido sem que se cometam violações.

Na nota, a associação critica a atuação de parte da imprensa. O argumento é que estaria omitindo a violência policial.
Estão omitindo e não estão trazendo uma reflexão sobre os fatos. O papel da imprensa é trazer dados, informações para que as pessoas reflitam. Se você não mostra os fatos sob o ângulo da violação – que, infelizmente, está acontecendo -, se você vende uma imagem de que aquilo é uma solução, faz um desserviço.

A que a senhora se refere exatamente?
Em síntese, o que a imprensa está noticiando é que isso (Estado policial) vai resolver o grande problema que existe no Rio. E é uma situação mais complexa, que não vai se solucionar com a entrada da polícia, do Exército, da Aeronáutica e o que mais seja. Tem que haver um projeto de país, de comunidade, de estado, de município e o que existe é uma verdadeira enganação. E a imprensa está corroborando para isso, ao invés de ajudar a melhorar a situação, ajudar a resolver efetivamente o problema grave que existe no Rio e que tem uma população que está submetida à violência do Estado, submetida à violência das milícias e de pessoas envolvidas no mundo da criminalidade… A população é quem sofre e vai continuar sofrendo e o problema não vai se resolver.
Ou o Estado “ocupa” aquele território, e ocupar não significa colocar um imóvel onde vão ficar policiais. Ocupar no que diz respeito à função própria do Estado: colocar vários postos de saúde, urbanizar, cuidar do saneamento básico. Isso é uma coisa que leva tempo.
Fora isso, é preciso combater a criminalidade, mas de forma séria. O que se vê é a prisão dos pequenos. Para se ter um efeito real, é preciso combater os que estão lá em cima. Os de baixo são substituíveis.

Quando a senhora fala dos “que estão em cima” quer dizer aqueles que não vivem nas favelas, mas nas áreas nobres?
Que não vivem nos morros, mas ganham muito dinheiro com o tráfico de drogas. E onde está esse dinheiro? O tráfico é um mercado poderoso, mas não para aqueles que estão ali embaixo. São empregadinhos. E digo que são descartáveis. Hoje, são presos 100. Amanhã, entram mais 100. A polícia tem que agir, investigando de onde vem, para onde vai o dinheiro, qual é a fonte.

Então, na avaliação da senhora, o combate ao tráfico no Rio está sendo feito parcialmente, apenas de um lado?
Do lado mais baixo da pirâmide que envolve o tráfico. O que estão “lá embaixo” são o que chamamos de aviões, mulas, pequenos vendedores. A ponta de cima é o empresário que ganha muito dinheiro com isso. Esse é intocável. A imprensa não usa uma linha para sequer explicar e vende a ilusão para a população de que o problema está sendo resolvido.

Em relação às últimas operações policiais realizadas no Rio de Janeiro, quais os erros e acertos na avaliação da senhora?
Acertos? Sinceramente, não consigo enxergar os acertos. Não consigo enxergar que a violação de algum direito fundamental possa ser acerto. Eles partem de que pressuposto? Que os policiais podem invadir as casas. Meu Deus, não é possível! Ou respeitamos a Constituição ou não.

Na nota, a associação foi bem dura, ressaltando que, ao violar a ordem constitucional, o Estado perde a superioridade ética que o distingue do criminoso. Fica igualmente à margem.
Todos nós somos atingidos por isso. Quando abro uma exceção de violação de um direito, não estou violando só para aquele proprietário da casa na favela X, Y. Na verdade, a violação é de todos nós. Admito a violação, só que não podemos ser ingênuos de imaginar que esse Estado vai atingir outra população. A violação direta é só para um tipo de população, a mais pobre, a mais vulnerável. Vai me dizer que eles vão fazer alguma coisa do gênero em algum outro local? Não vão.
Vamos falar bem claramente: vão fazer uma busca e apreensão… Nem busca e apreensão. Vão simplesmente entrar na minha casa, derrubar a porta para ver se há alguma arma ou droga? Não vão fazer isso. Eu moro nos Jardins, aqui, em São Paulo. É seletivo. Então, “só pode ser o pobre o grande inimigo do Brasil”, e as coisas não são assim. O que me incomoda muito é que a imprensa reforça uma ideia que não tem o mínimo de veracidade, o mínimo de racionalidade.

O que exatamente?
Toda essa política de que vão entrar lá (no Complexo do Alemão) e resolver o problema, sendo que ele continua. E não é só no Complexo do Alemão. Isso não é algo que se resolve a curto prazo. Uma investigação séria demanda um certo tempo, mas é necessário começar. Quem está ganhando tanto dinheiro com o tráfico?
Tem que haver essa vertente de polícia, de criminalidade. Acho que tem que haver mesmo, mas não nesse patamar que estão colocando, que é absurdamente ridículo. O problema não vai terminar nem diminuir. Estão vendendo uma imagem de que estão resolvendo o problema e é mentiroso isso.

Qual seria o caminho mais apropriado?
São dois caminhos básicos. De um lado, o Estado ocupa o território no sentido de fazer as políticas que lhe competem dentro daquela comunidade. Tem que ter uma cultura a ser criada e se cria essa cultura através da garantia dos direitos. Educação, saúde… Quando digo educação, refiro-me a um projeto para aqueles jovens. Qual expectativa que eles podem ter de trabalho? É preciso investir nisso. É uma algo a longo prazo, mas é preciso começar já. Estamos atrasados.
Ao mesmo tempo é preciso ter uma política referente à área criminal que seja efetiva. Hoje, eles podem prender mil. São pessoas consideradas socialmente descartáveis. Amanhã, haverá outros mil para fazer a mesma coisa. Agora, se você “quebrar” quem tem o dinheiro, quem está lucrando com isso, aí se pode haver outra perspectiva. O que me incomoda é que a política adotada não é séria e tem a seguinte caracterísitica: viola os direitos da Constituição.

Como a AJD está acompanhando as denúncias de violação aos direitos humanos nas favelas ocupadas pelas forças policiais?
Agora é que elas estão começando a aparecer. Na verdade, a imprensa ficou vários dias jogando confete para as ilegalidades. Lá no Rio, há várias organizações que estão começando a receber uma série de informações. Não dá para desconsiderar toda essa realidade. É preciso que se dê andamento. Até no Judiciário mesmo. 

Luis Nassif

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