PEC dos Magistrados: falácias argumentativas e a fragilidade do debate, por Sergio Reis

PEC dos Magistrados: Falácias argumentativas e a fragilidade do debate público brasileiro

Na introdução de um livro que pretendo publicar em 2015, faço uma equiparação, do ponto de vista de suas implicações para a conformação da alienação social (e do distanciamento perante seu negativo, i.e., uma sociedade com vocação emancipatória), entre os fenômenos do estranhamento, do analfabetismo e do pensamento falacioso. Não é interessante, neste momento, desenvolver pormenorizadamente cada uma dessas categorias e apresentar sob que formas elas se conectam para a produção de formas relevantes de opressão do nosso tempo, mas cabe postular que cada uma delas contribui, à sua maneira, para a produção de mecanismos de incompreensão, distanciamento e de tensão não-produtiva (i.e. disruptiva, desagregadora) entre as pessoas.

Uma das defesas que realizo é a de que o chamado Pensamento Crítico – uma linha lógico-pedagógica de conhecimento prático conectada, na minha proposta, com a filosofia de Paulo Freire – é uma estratégia progressista para contornar o terceiro dos fenômenos citados acima. Nesse sentido, desenvolvo como proposta a ideia de que o ensino de lógica argumentativa de acordo com a linha que sugiro deveria constar dos currículos escolares, universitários e, inclusive, das Escolas de Governo (e, subsequentemente, dos concursos públicos).

Entendo que a falta desse poderoso instrumento faz bastante diferença no contexto brasileiro, em especial nos debates públicos e, de forma decorrente, na capacidade dos cidadãos de entenderem, processarem e criticarem discursos, ideias e proposições que sejam, em sua essência, falaciosos. A falácia, em uma definição muito grosseira, é um equívoco de raciocínio, que ocorre de propósito ou involuntariamente. Ela pode ser formal, quando ocorre, de forma geral, um erro (p.ex. uma contradição interna) entre as premissas, ou entre as premissas e a conclusão – o conjunto delas forma um argumento –; ou informal, quando as premissas simplesmente não endereçam o argumento, ou são frágeis demais para suportá-lo. No caso das informais, o que ocorre, muitas vezes, é que o interlocutor as acaba utilizando como uma forma de fuga da discussão, como subterfúgio para, na verdade, não debater o ponto em questão.

Um dos sentidos não emancipatórios das falácias é justamente esse: as discussões, ao não tratarem especificamente dos tópicos, tendem a se direcionar aos próprios interlocutores ou a questões que, em síntese, nada tem a ver com os elementos debatidos. As falácias em nada contribuem para resolver ou aperfeiçoar problemas, expressam em boa medida um “apelo à vitória” durante as interpelações, fazem com que os temas sejam abordados com simplicidade e superficialidade (atributos que chamo de “moradas do conservadorismo”, por expressarem lugares comuns míticos, tradicionais ou gregários) e, em geral, acabam por significar distintas formas de desrespeito às pessoas.

Lamentavelmente, o pensamento falacioso, no Brasil e no mundo, é um problema disseminado, transcendendo classes sociais, disciplinas do conhecimento e níveis de formação educacional. Há muitos professores, políticos, universitários, doutores, filósofos e magistrados (apenas para citarmos categorias tidas como quintessenciais do ponto de vista de seu nível de estudo) que – por opção ou por absoluta falta de conhecimento – praticam falácias diariamente, inclusive como procedimentos habituais em seus próprios regimes profissionais, no conteúdo da sua atuação. Basta darmos uma passada nas redes sociais, nos campos de comentários de notícias e, mais facilmente, nos artigos de opinião e nos editoriais de jornais para notarmos a escatologia média dos níveis argumentativos, a transversalidade do problema e todas suas consequências no sentido de se dificultar debates que discutam o conteúdo efetivo das questões e que contribuam, realmente, para a resolução de problemas. Subjacentemente, o predomínio das falácias reforça os outros dois fenômenos elencados no começo deste texto – afastando, sob distintas formas, os sujeitos sociais – e contribui para a resiliência e o aprofundamento do obscurantismo e do conservadorismo ideológico em nosso país. 

E, como dizia um pouco antes, o estudo sobre lógica argumentativa por aqui ainda é muito incipiente. Há apenas um livro razoavelmente recente – fruto de uma tese de doutorado – em português sobre lógica argumentativa em termos próximos ao que pretendo abordar no projeto. Lamentavelmente, a obra encontra-se esgotada. As demais obras que podemos encontrar nas livrarias – não mais do que uma dúzia – são traduções de livros em inglês, em geral de textos de divulgação sobre falácias (e sem exatamente uma preocupação teórica profunda). Nas escolas, os currículos tendem a abordar a questão de forma incidental, subsidiária. Nas universidades, apenas alguns dos alunos de cursos como Direito, Filosofia e Matemática têm a oportunidade de entrar em contato com essa modalidade de conhecimento. No entanto, em geral restringe-se ao estudo dos aspectos formais da discussão, a construção de silogismos, a teoria dos conjuntos, o modus tonnens, etc. Finalmente, nos concursos públicos, são cobradas tabelas-verdade totalmente desconectadas das questões reais – o concurseiro busca, em geral, apenas decorar as sequências de “verdadeiro” e “falso” a partir de sentenças absurdas. Em síntese, trata-se de um tópico de considerável importância filosófica, pedagógica e, evidentemente, política, que não ocupa uma posição de tradição epistemológica no Brasil. E isso impacta com força a qualidade do debate público em nosso país.

As falácias contidas na defesa da PEC dos Magistrados

Um dos assuntos que venho abordando em meus textos é a chamada PEC dos Magistrados, proposta de emenda constitucional que visa conceder 5% de aumento salarial para juízes de todos os níveis e promotores e procuradores do Ministério Público para cada 5 anos de exercício de atividade advocatícia (inclusive realizada antes do ingresso em concurso), até o máximo de 35 anos (resultando no incremento de 35% nos vencimentos desses profissionais). Na prática, esse projeto cria uma espécie de regime supraconstitucional para essas categorias, permitindo com que apenas elas venham a receber salários acima do teto constitucional – que, por sinal, possui como métrica a remuneração auferida pelos próprios Ministros do STF.

Em 3 ensaios (https://jornalggn.com.br/blog/sergiorgreis/pelo-direito-a-desigualdade-a-pec-dos-magistrados%E2%80%93-i-republicanismo-versus-corporativismo, https://jornalggn.com.br/blog/sergiorgreis/a-pec-dos-magistrados-e-seu-ataque-a-republica, https://jornalggn.com.br/blog/sergiorgreis/pelo-direito-a-desigualdade-a-pec-dos-magistrados-e-o-poder-do-lobby-togado-%E2%80%93-ii-impactos-orcamentarios), apresentei argumentos de ordem filosófica e gerencial para contestar a aprovação da medida. Por um lado, expus seu forte sentido antirrepublicano, dada a circunstância, dentre outras razões, de buscar extrair um naco significativo do orçamento público para beneficiar um setor da sociedade já representante da elite mais elevada do país em meio a um discurso que busca transformar um benefício absolutamente corporativista em uma necessidade e demanda nacionais de primeira relevância. Por outro, apresentei um conjunto de riscos administrativos e orçamentários de elevada magnitude e significado, considerando-se, a partir da deliberação favorável à medida, o estouro dos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal com relação aos gastos com pessoal por parte do Poder Judiciário de vários Estados. De acordo com a LRF (Lei Complementar 101/2000), o ente que extrapola determinados tetos de dispêndio com a folha de pagamento passa a sofrer uma série de restrições legais, incluindo-se aí a proibição de recebimento de novas transferências voluntárias e garantias, o congelamento de novas contratações de servidores, a proibição de reajustes salariais do quadro de funcionários e, inclusive, demissões de agentes públicos, até a normalização da situação.

Dadas as enormes implicações, notamos o quão importante é debatermos a questão. Lamentavelmente, contudo, as discussões têm ocorrido em um nível absolutamente raso, em que poucos argumentos, de sofrível consistência, são trazidos pelos defensores da medida, ao passo em que os posicionamentos contrários são atacados em geral mediante o uso do recurso das falácias – o que seria algo surpreendente se olhássemos para a qualidade da formação acadêmica dos interlocutores, em geral magistrados com décadas de experiência no ofício de dizer o direito e de distribuir a justiça. Creio que seja esta uma oportunidade, então, para observarmos a fragilidade das premissas adotadas do ponto de vista da lógica, inclusive como um aprendizado sobre o mecanismo de construção de falácias e sobre a potencialidade do uso do Pensamento Crítico como uma forma de avançarmos, em sentido progressista, na discussão sobre esse tema e de outros, de forma geral.

Primeiramente, diria que a falácia central contida na defesa da PEC é conhecida como “dois errados fazem um certo” (two wrongs make a right, em inglês). Esse raciocínio, enquadrado como um equívoco informal, baseia-se na consideração de que diante de uma situação considerada errada, uma outra, também errada, irá cancelá-la. Em um debate hipotético, duas pessoas debatem sobre política. O sujeito A defende o candidato X, e o sujeito B, o Y. O sujeito A diz que o candidato Y é corrupto. Como réplica, o sujeito B responde que o candidato X não cumpriu uma promessa de campanha. A falácia ocorre na réplica porque é irrelevante se o candidato daquele que fez a crítica à corrupção do defendido pelo outro ter sido ineficiente em seu mandato. Se há embasamento na premissa de que o outro é corrupto, a réplica, se não endereçar essa questão, não estará de fato debatendo o tópico, e sim tergiversando, falaciosamente. Em outras palavras, a corrupção está lá, esperando para ser analisada.

Esse, em outros termos, é o equívoco fundamental contido na PEC. Vejamos: seus defensores argumentam que há uma situação adversa na magistratura. Dentre os elementos de comprovação, atestam a desmotivação dos juízes, a defasagem salarial, a eventual circunstância de, nas repartições, não terem os juízes o salário mais alto de todos, etc. Mesmo que todas essas razões fossem verdadeiras, a questão que fica é: a solução a esse quadro está na criação de um dispositivo que crie um regime supraconstitucional para um único e específico segmento da sociedade e lhe permita auferir remunerações situadas acima do teto máximo estabelecido pela própria Constituição? É esse o contra-argumento que apresentei, indicando que deveríamos pensar em soluções que não precisassem ser, no meu entendimento, antirrepublicanas para o equacionamento do tema. Em síntese, uma proposição errada como resposta a uma situação errada não arredonda o cenário. Pelo contrário, agrava a crise remuneratória – para além de outras nefastas consequências, exaustivamente abordadas – gerando uma torrente de outros problemas, atingindo em efeito cascata boa parte do funcionalismo público. Em síntese, a solução para um erro está em discuti-lo para se buscar a sua solução, sem que esta signifique em si mesma um outro erro.

As tréplicas ao meu argumento (e de outros, que também se opõem à PEC) explicita a fragilidade da defesa da medida. De modo geral, se encaixam no grupo de falácias chamadas de “apelo ao motivo” do interlocutor. Elas são operacionalizadas por meio do questionamento sobre quais seriam as reais intenções daqueles que rejeitam um dado argumento. O problema é que, mais uma vez, o motivo do interlocutor é um elemento irrelevante na discussão. A falácia acaba sendo utilizada, mais uma vez, como um recurso de subterfúgio ao debate sobre o conteúdo do argumento atacado, que se mantém intacto, não contrarrestado. No caso da PEC, vários de seus defensores mais vocais acreditam que a oposição à medida ocorre por parte daqueles que dela não se beneficiariam. Em outras palavras, se houvesse benefício às carreiras ou cargos desses interlocutores críticos, eles permaneceriam silentes, sem objeção. Para além de ser uma inferência absolutamente frágil, ela é incapaz de dar conta da crítica ao caráter antirrepublicano da proposição. Ela permanece ali, sem óbices.

Outros vão além: um primeiro grupo comete duas falácias simultaneamente ao dizer que a crítica à PEC provém de quem gostaria de ser juiz, mas não conseguiu. Entendo que aí estejam duas divertidas falácias: o apelo ao desempenho e o apelo ao ridículo. O primeiro é consubstanciado no ataque ao interlocutor mediante o recurso a uma premissa do tipo “você não alcançou o meu nível, como pode me questionar?”. O segundo é expresso no levantamento subsidiário de hipóteses emocionais como razões para a objeção. O apelo ao ridículo é uma espécie de supersimplificação do argumento do interlocutor, eventualmente com propósitos humorísticos. No caso em questão, há defensores da PEC que acreditam – talvez tendo como referencial Alexander de Almeida, o rei do camarote (e aqui repito o caráter da mesma falácia, apenas para verem como ela não acrescenta ao debate) – que “tudo isso não passa de uma inveja”.

Existem outros que, em suas respostas, golpeiam ainda mais abaixo da cintura. Há quem deturpe um certo argumento de seu interlocutor, transformando-o em algo muito menos consistente e passando a debater com esta nova premissa – a chamada falácia do espantalho. No meu caso, defendi que há associações e sindicatos que possuem o que chamo de comportamento antirrepublicano ao tratarem, nos espaços públicos, de agendas que seriam eminentemente suas como as mais importantes para a sociedade e, mais gravemente, como sendo não uma demanda sua, mas do “povo” – e, então, apresentei a PEC como exemplo, tendo como base discursos de representantes. Alguns retorquiram que, na minha definição conceitual sobre o antirrepublicanismo, eu me referia a todas as associações; outros, que eu falava de todas as ações já desenvolvidas por um determinado sindicato (da magistratura). Não foi isso, obviamente, o que eu disse, mas foram esses os “espantalhos” elaborados pelos interlocutores – “argumentos” muito menos sólidos e, portanto, mais fáceis de serem repelidos pelos defensores da medida. Outra falácia, muito mais comum, infelizmente, é o ad hominem. Ela ocorre quando, sem aprofundamento (i.e. sem um conjunto de dados ou premissas que sustentem o argumento), atacamos o interlocutor, e não as ideias dele. O foco se torna a ofensa à pessoa, e não a desconstrução de um argumento. No contexto da PEC, os opositores à sua aprovação são chamados de “pseudointelectuais”, “demagógicos”, “suspeitos”, etc. Creio que não exista falácia mais vil, na medida em que simboliza o mais completo desinteresse (ou a mais expressiva dificuldade) em se lidar com o dissenso. Nada dos eventuais problemas contidos na PEC é endereçado por meio dessas (ou de quaisquer outras) falácias.

Muitas e muitas outras falácias contidas nesse pobre debate poderiam ser explicitadas. Há o ônus probandi, que se baseia na tática de transferir ao interlocutor a responsabilidade de provar que meu argumento é falso (sendo o lógico, na tradição científica e filosófica, que eu busque provar, primeiramente, que meu argumento é verdadeiro). É o que ocorre, por exemplo, com relação aos parcos estudos feitos por algumas associações de juízes, que desconsideram uma série de premissas estatísticas básicas (o que envolve outras duas falácias, a supressão de evidências ou cherry picking e o viés favorável ou confirmation bias) e rejeitam a Nota Técnica produzida pela Consultoria do Senado, sem substanciar a crítica. Há o ad misericordiam (apelo à misericórdia), que busca defender a Magistratura como a grande classe oprimida da sociedade brasileira (autodenominada, p.ex., como Geni, numa citação à canção de Chico Buarque), o que faria ruborizar segmentos como catadores de lixo, moradores de rua, sem terras, empregadas domésticas, carvoeiros, costureiras em regime de semi-escravidão, etc. 

Ainda com relação à nota técnica desenvolvida pela Consultoria do Senado, os articulistas defensores da PEC acusam seus autores de uma espécie de hipocrisia por desenvolverem um documento que é desfavorável ao ganho de remunerações superiores ao teto constitucional ao passo em que os próprios consultores também receberiam acima desse limite. A diferença, reconhecida pelos próprios magistrados, está em que no Congresso – e no Executivo – existe o dispositivo do “abate-teto”, o qual torna irrelevantes os vencimentos nominais situados acima dos limites estabelecidos na CF, o que não ocorre no Poder Judiciário. A falácia do tu quoque (“e você também”) – que ocorre, p.ex., quando alguém critica o outro em virtude de um comportamento que ele mesmo pratica igualmente –  na verdade não ocorre no caso dos Consultores, já que eles não recebem, efetivamente, acima do teto constitucional, como acusam alguns magistrados. Esse é um caso interessante, então, para vermos como uma crítica a respeito da existência de um dito comportamento falacioso pode ser refutada. 

No meu caso, em que tive minha vida funcional vasculhada para que fosse “acusado” de receber uma gratificação a qual, no final da minha carreira, também faria com que eu recebesse, um dia, acima do teto, fico em dúvida se sofri um ad hominem, um apelo à probabilidade (no qual se comete a falácia de usar como premissa certa um evento que é apenas provável), ou, na verdade, se foi apenas uma mentira (já que mesmo que eu venha a chegar ao último nível da minha carreira e continue a ter essa pequena função comissionada, jamais meus vencimentos totais ultrapassarão o teto). Mentir não é adotar um pensamento falacioso, mas sim entrar em outra seara: a da injúria, a da calúnia e a da difamação, irrelevantes para o caso em questão.

Enfim, como vemos, a estratégia argumentativa dos defensores vocais da PEC 63/2013 é consideravelmente falaciosa, sendo incapaz de endereçar as críticas que lhes são feitas, ou mesmo de adotar soluções alternativas para os problemas que, alegadamente, afligem àqueles que dizem defender. Muitas vezes em que um crítico da proposta sugere como saída a elaboração de um plano de carreira para a Magistratura, a reação dos juízes que se manifestam e a da mais tonitruante objeção, afirmando que não é essa a solução ideal –  essa é outra falácia, por sinal, chamada de falácia da solução perfeita ou do nirvana, que é uma falha lógica exatamente por conjecturarem, a partir da negação de uma proposição por não sê-la ideal, que exista alguma que efetivamente o seja, plenamente. No fundo, vários acabam vendo a solução para a crise que constitui a classe de juízes a partir de soluções que expressam um falso dilema (outra falácia): só é possível enxergar dois cenários (quando há tantos outros em jogo), um com Adicional por Tempo de Serviço, outro sem o ATS.

Finalmente, uma contribuição original que faria à Teoria das Falácias Argumentativas – inclusive a partir da oportunidade que venho tendo em debater com defensores da PEC – é a formulação de uma novo tipo de equívoco lógico informal: a falácia da legitimidade precondicional. Ela pode ser definida como aquela em que se busca refutar o argumento do interlocutor com base na ideia de que ele não se manifestou da mesma forma e primeiramente a respeito de outras situações similares. Ou seja, a crítica que um interlocutor faria a uma dada situação só poderia ser legítima se ela também tiver sido feita a outras (de preferência todas) situações similares. Como exemplo (já apresentado em outras ocasiões), indico a tirinha genial de Laerte, na qual ele conta a história de alguém (possivelmente ele próprio) que precisa entregar todos os “documentos comprobatórios e formais” que atestem suas críticas a outros genocídios ocorridos ao longo da história (curdos, no Iraque de Saddam Hussein; judeus, por nazistas; armênios, por otomanos; tutsis, por hutus, em Ruanda, etc) antes de, finalmente, poder externar sua objeção ao massacre palestino realizado recentemente por Israel.

Trata-se de uma falácia porque a crítica a qualquer um desses trágicos acontecimentos independe, do ponto de vista de sua validade (em sentido lógico), da manifestação prévia sobre temas correlatos. A oposição a uma dada realidade constituirá uma premissa possível e passível de argumentação sem que seja necessário explicitar antes uma rejeição similar a todas as outras ocorrências que, por algum critério, sejam vistas como similares. E, repetindo o que já foi colocado antes, até mesmo se um sujeito, por alguma razão, criticasse um genocídio e defendesse outro, ele poderia estar sendo tremendamente incoerente (e desumano), é questionável se estaria sendo falacioso (e aqui entraríamos, mais uma vez, no tu quoque): ainda que alguém criticasse um crime e defendesse (ou mesmo silenciasse sobre) outro, o argumento não pode ser desconsiderado simplesmente em virtude dessa hipocrisia. O primeiro crise, se sofrer crítica fundamentada, deve sim ser considerado um posicionamento válido, independentemente do interlocutor. Ainda que seja difícil, a partir de um certo ponto de vista ético, admitir essa conceituação que fiz, é preciso ficar claro que, em lógica, é fundamental separarmos argumentos de pessoas. 

Esse é um esforço essencial para que os tópicos sejam efetivamente debatidos, e em seus próprios termos, e não subvertidos em razão de uma afinidade ou lealdade (ou o contrário disso) pessoais ou políticas perante o interlocutor. Por suposto, nada disso invalida, em separado, uma discussão sobre os posicionamentos de alguém, sobre sua coerência, seus valores, etc – até porque não questioná-los também pode significar uma falácia, chamada de “tenho direito à minha opinião” (I’m entitled to my opinion), um erro lógico do tipo “cortina de fumaça” baseado na inatacabilidade de um argumento em razão de um irrelevante – em sentido lógico – direito à opinião (garantia que não é salvo conduto para questionamentos do tipo “verdadeiro” ou “falso”). Conforme pretenderei desenvolver no livro em gestação, citado no começo do texto, não há contradição alguma entre lógica e ética. Pelo contrário, há um profundo sentido ideologicamente progressista no combate às falácias, um projeto que, sinceramente, creio ter potencial para contribuir para repensarmos alguns fundamentos do nosso processo educacional e, quem sabe, da práxis política e jornalística.

Fui bastante atacado por dedicar esforços à PEC dos Magistrados. Vários questionaram o “porquê” dessa escolha diante de tantos outros problemas existentes na Administração Pública, como se, no fundo, minha postura fosse menos legítima por não ter escrito artigos que também atacassem essas outras matérias – e eu tenho acompanhado de forma próxima, p.ex., a crise da água. Esse acaba sendo um pensamento falacioso bastante perigoso, exatamente por buscar inserir pré-condições extra-lógicas de validade às reflexões. Entendo, de todo modo, que é possível, sim, perceber a PEC em questão como um fenômeno especialmente gravoso à República, por tudo o que já explicitei em outras ocasiões. Pela posição absolutamente especial desfrutada pelos Magistrados (a qual eu também, de certa forma, faço parte, enquanto servidor de outro Poder), pela posição crítica que ocupam na determinação de aspectos constitutivos e formativos essenciais da sociedade brasileira, pela facilidade e pelo decorrente poder, enquanto casta, de utilizarem essa vantagem posicional como parte de um sistema de trocas mútuas (ou de sequestro, talvez) perante os eleitos da democracia representativa, por conceber outras alternativas para a resolução dos problemas apontados por quem defende a medida; por tudo isso encaro a PEC como um equívoco sem paralelo na história recente deste país.

O antirrepublicanismo, enfim, se insere na práxis viciada de, na dúvida e considerando o “kairós” (a oportunidade ideal de intervenção) do esforço concentrado do Senado em período eleitoral, buscar garantir o seu (gigantesco) quinhão de benesses as quais poderão paralisar, simplesmente, vários dos Estados da federação. Repisando a crítica, esse raciocínio antirrepublicano prefere apostar na conquista de uma vantagem a si mesmo e arriscar a continuidade administrativa de unidades territoriais da nação a recuar e, civilizadamente, repensar com parcimônia e tenacidade quais seriam as saídas que fossem adequadas à própria Magistratura e, simultaneamente, à Nação (feito possível, sim, de ser empreendido por corporações, magistrados isolados, intelectuais, etc). Fica aqui, aliás, o convite – algumas contribuições iniciais de minha parte estão em outros ensaios. Os Senadores que referendarem essa solução conservadora serão corresponsáveis e copartícipes não apenas de uma iníqua política “pró-cíclica” de escassos recursos públicos – um reforço essencial à nossa vituperiosa desigualdade social – mas também de uma sanção à maior crise administrativa brasileira do século XXI. Vivamos com isso?

 

 

 

Redação

10 Comentários

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  1. Excelente artigo!

    Grata pela esclarecedora matéria!!

    É revoltante ver como certos cidadãos, os quais responsáveis pelo nosso Judiciário e MP’s, são de tal egoísmo, a ponto de ao fim, se aprovada a absurda PEC, mesmo diante de brilhantes e tão coerentes argumentos aqui expostos, que podem compromenter ainda mais a já tão mal vista Administração Pública do país… O argumento à la ” Rei do camarote” foi o momento humorístico, e cruel ,mas real do texto!

    Fiquemos de olho nos nobres Senadores que darão voto favorável a esse absurdo antirrepublicano! A ver.

  2. Concordo com a idéia central

    Concordo com a idéia central – mas cá prá nós, tá muito BLA BLA BLA… nem um data venia engendraria tamanha embromation… Tá pior que entrevista do TITE…

    Saravá!

  3. Sérgio Reis é o “menino da

    Sérgio Reis é o “menino da porteira”, é?

    Fez facul pelo PROUNI e agora deita falação (ops. quase escorregou…) ?

    Mas, repito, a “idéia na cabeça”, como dizem os manos, é correta… 

    1. Ideia Central

      Véio,

      Não precisa ler tudo. Apenas guarde esta parte do texto: 

      “Um dos sentidos não emancipatórios das falácias é justamente esse: as discussões, ao não tratarem especificamente dos tópicos, tendem a se direcionar aos próprios interlocutores ou a questões que, em síntese, nada tem a ver com os elementos debatidos.”

      Saravá, irmão!

  4. Realmente, há muita falácia

    Realmente, há muita falácia nesse mundão afora. Pior é quando se tenta começar um debate e o assunto vira uma troca de acusações. Bom mesmo seria o ensino de lógica. Quem sabe, a gente poderia começar a discutir sem tentar desmerecer quem pensa diferente da gente. É um caminho e tanto que temos a percorrer.

  5. Mas no mundo real, o que há,

    Mas no mundo real, o que há, dizem, é que desembargadores recebem 45 mil mensais liquidos e juizes 35 mil tambem liquidos. Isto  na chamada justiça comum. Esse negocio de teto só vale para os juizes federais, MPF e stf. Teto nunca foi barreira para a justiça nos Estados. É uma festa.

  6. o argumento da realidade

    o argumento da realidade talvez cnvença esses magustrados – um dia esse país explode com todos eles por falta de recursos para pagar os salários acima do teto que talvez pudesse manter uma comunidad inteira.

    são so reis desnudado  das falácias muito bem desnudada por este artigo.

    quero ver um magistrado desse competir com um catador de papel.

    pelo menos no primeiro dia duvido que ele caet tanto ppel quanto o catador.

    de verdade, não falaciosamente.

    imagine a importancia histórica para o país do catador de papel quando esses magistrados começarem a se desvencilhar da papelada existente no judiciário.

    montanhas e montnhas de papel para enfim os ctadores se libertarem de suas agruras.

     

  7. Sérgio te mandei mensagem aqui pelo portal

    Olá Sérgio, desculpe usar os comentários para te mandar mensagem, gostaria de discutir com você algumas fundamentações do estudo das falácias e outras aplicações práticas na nossa realidade brasileira. Abraço!

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