Preso, mas não culpado, por Eduardo Leite

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Preso, mas não culpado

por Eduardo Leite

O título deste artigo, que obviamente se refere ao ex-presidente Lula, não expõe uma opinião. Expõe na verdade o estado de ordenamento jurídico em que o Supremo Tribunal Federal jogou o Brasil após uma série de julgamentos, a maior parte de habeas corpus de diferentes réus, culminando na prisão do ex-presidente. Neste momento, qualquer pessoa pode ser presa em nosso país e no entanto continuar a ser considerada oficialmente inocente, inclusive pela Justiça.

Vamos aos fatos. O artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal proíbe que se considere alguém como culpado antes do trânsito em julgado da ação. Trânsito em julgado é uma expressão técnica que se refere ao momento em que não cabem mais recursos contra a decisão. É o fim do processo. É quando a decisão contrária não é mais possível por parte da Justiça.

Ocorre que, em 2016, quando julgou o habeas corpus nº 126.192, a maioria do STF, de forma astuta ma non troppo, afirmou que a Constituição não proíbe a prisão antes do trânsito em julgado. Proíbe “apenas” que alguém seja considerado culpado antes disso. O STF concluiu que, para a prisão, a Constituição exige somente uma ordem escrita e fundamentada a partir de uma autoridade judiciária.

É exatamente neste limbo judicial que está o ex-presidente Lula neste momento. Ele está preso porque foi condenado em segunda instância, embora lhe caibam ainda recursos à terceira instância em diferentes alçadas – STJ e talvez mesmo o STF –, nos quais, ao contrário do que ocorreu durante o julgamento de seu habeas corpus por parte do STF, a causa será julgada.

Explicando: Lula foi condenado em primeira e segunda instâncias por ter recebido um apartamento no Guarujá da empreiteira OAS. A maior parte dos juristas de renome não enxergou no processo provas de que houve crime. O STF, contudo, não analisou esse processo: analisou tão-somente se caberia conceder a Lula um habeas corpus para evitar sua prisão após a decisão em tempo recorde do TRF-4 em Porto Alegre. A causa ainda precisa ser julgada em terceira instância.

Se ela seguir os juristas e considerar que não há provas ou que elas são insuficientes, Lula será solto e, pior do que isso, terá passado um tempo no cárcere por decisão estatal sem ter sido culpado. O Estado não tem nenhuma maneira de devolver esse tempo a ele. Para complicar, a própria jurisprudência do STF considera que Lula deve ser encarcerado, sim, mas ainda deve ser considerado inocente. Preso, mas não culpado: não sou eu, é o Supremo dizendo.

E as decisões do STF contrariam não apenas a própria constituição, mas outras leis federais. O artigo 283 do Código de Processo Penal, por exemplo, continua valendo como lei e, por isso, recebe um nó na decisão do STF. Esse artigo consegue ser ainda mais explícito do que a Constituição: diz, literalmente, que ninguém pode ser preso antes do trânsito em julgado da decisão.

Ok, mas os efeitos se limitam a Lula, certo? Nem de longe. O Brasil tem hoje a terceira maior população carcerária do mundo – em 2017 ultrapassamos a Rússia. Segundo o sistema de informações estatísticas do sistema judiciário (Infopen), cerca de 40% destes presos ainda aguardam julgamento.

Ah, mas, se está preso, alguma coisa ele aprontou, né? Errado. Em 2015 no Recife, o Estado foi obrigado pelo STJ a pagar uma indenização de R$ 2 milhões a um homem, Marcos Mariano da Silva, que passou 13 anos na cadeia sem nem ter tido condenação. Descobriu-se, ao final, que ele era inocente – aliás, no Estado Democrático de Direito, ele sempre seria inocente até prova em contrário, e prova não houve. Junte-se a episódios como esse os custos com que o Estado arca com cada detento, podemos concluir que a prisão a qualquer custo não apenas acarreta injustiças, mas também desperdício do nosso próprio dinheiro. E quantos entre tantos presos, com ou sem condenação em primeira e segunda instâncias, não passam por situações similares?

Para piorar, existe ainda a precariedade, humana e material, com que o Estado tem de lidar com esses presos. Com certa discrição por parte da mídia, no último dia 10, 21 homens foram mortos após uma tentativa de fuga na região metropolitana de São Paulo. Por lei, não existe pena de morte no Brasil: 21 homens foram executados e, pela estatística, pelo menos oito deles não tinham sido julgados ainda.

A situação, inaceitável pelos padrões de hoje, tende a piorar após a decisão do STF contra Lula. Inúmeros casos tramitam hoje a passo de tartaruga nas diferentes esferas criminais do Brasil, desde a primeira instância dos tribunais de Justiça, nos fóruns da cidade, até o próprio STF.

O ministro Luís Roberto Barroso disse, durante os debates sobre o habeas corpus de Lula, que a sociedade não aguenta mais a impunidade, o que justificaria a prisão após julgamento em segunda instância. Então pergunto: quem vai punir aqueles que condenam pessoas inocentes?

Se não começarem a fazer seu trabalho direito, os juízes vão jogar o Brasil, que até outro dia era uma democracia, numa longa era de trevas do estado de exceção. Aquele em que qualquer um de nós pode ser preso e talvez morto sem nenhuma prova.

Eduardo Leite é advogado e vereador em Santo André (SP)

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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