Prisão preventiva de 90% das prisões em flagrante: a conta atinge ares de escândalo, por Roberto Tardelli

Ana Gabriela Sales
Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.
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Foto: Luiz Silveira/Agência CNJ 

Do Justificando 

Prisão preventiva de 90% das prisões em flagrante: a conta atinge ares de escândalo

por Roberto Tardelli

É de cortar a alma a faca. É de doer o peito. É de sair aos berros na chuva. É de sangrar os olhos. Leio nos jornais que o resultado das audiências de custódia, criadas por iniciativa humanitária de diminuir esse flagelo da superlotação carcerária, teve como resultado, aqui, na Capital do Tucanistão, a conversão em prisão preventiva de 90% das prisões em flagrante.

Significa dizer que, de cada cem pessoas detidas em flagrante, noventa vão permanecer presas. Não sei quantos seres humanos foram levados aos juízes do Departamento de Inquéritos Policiais (DIPO), do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), o que ressalta é que o sistema prisional funciona como verdadeira teia de aranha, quem nele cair, dificilmente sairá.

“A conta atinge ares de escândalo porque fere frontalmente a Constituição Federal, que assegura, textualmente que ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança.”

É, assim, de grotesca ilegalidade a manutenção dessas pessoas humanas encarceradas, a menos que a estatística e a lógica hajam sido reinventadas e que noventa por cento das pessoas humanas, seres humanos, presos em flagrante pela polícia e levados ao Juiz de Custódia, cumprissem as cautelas dizimadoras dos arts. 312 e seguintes do Código de Processo Penal.

Na crônica forense, não tenho dúvidas que a imensa maioria é composta de usuários de drogas, convertidos em traficantes, pequenos roubadores, ladrões de Natal (miseráveis que surrupiam panetones, castanhas, cachaça). Gente que se encolhe com seus cães nos baixos dos viadutos, gente que perdeu tudo e a quem restava apenas a liberdade de sair por aí.

Fico me perguntando que espécie de superioridade moral sente o Juiz, ou pior, na pluralidade deles, os Juízes que se sentem autorizados a descumprir a Constituição Federal, desabando seus ódios, suas limitações pessoais, seus preconceitos contra a massa miserável que lhe cai às mãos.

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Como podem se esquecer que, ao chegarem a esse absurdo patológico, negaram o juramento que prestaram, no primeiro momento em que foram investidos do poder de julgar? Que gente é essa que não se solidariza, que lota e amassa e amarrota gente como se fosse lixo em celas superlotadas?

Vivemos tempos narcísicos, esses que negaram a liberdade que jamais lhes pertenceu a tantos miseráveis, são diuturnamente encorajados pela legião de ódio que as redes sociais mobilizam. São legitimados pelo ódio, são acolhidos pelo ódio e fazem do ódio o eixo central do que  imaginam ser um pensamento, mas não é mais que preconceito, não mais é do que uma limitação atroz de horizontes.

“Nas redes sociais, eles saem fortalecidos até para rasgarem a Constituição, sem que percebam, alienados que são, que essa mesma Constituição que violam, que rasgam, que ridicularizam, é a mesma que lhes dá existência.”

Não percebem eles que estão queimando a própria casa, estão derrubando o próprio castelo. Não percebem, em suma, que os presos que sequestram, aos lhes negar a liberdade a que tem direito, estão albergados na mesma Constituição que enalteceu como nunca o Poder Judiciário.

Os mesmos direitos que negam à população, da qual, estranhamente, não se acham pertencentes, poderão lhes ser negados, tão arbitrariamente quanto o fizeram com os pretos, os miseráveis, os desgranhentos, descamisados e descalços. O portão da legalidade que derrubaram a pontapés poderá dar passagem aos fantasmas que deixarão esses pequenos ditadores acuados, protegidos apenas pelas próprias sombras.

Como noventa por cento? Quem os soltará e quem prenderá os que prenderam por atacado? Digo isso porque somente uma visão pré-concebida e prenhe de ódio de gênero, de classe, de tudo, justifica uma detenção em massa. Não se deram conta disso?

Não se deram? Como foi possível que não se dessem conta disso?

Noventa por cento de miseráveis, capturados pela Justiça (foram presos pela Polícia, mas capturados pela Justiça) estão nesse momento espremidos em celas horrendas e superlotadas, estão dormindo no chão, entre ratos e baratas, estão se defendendo, estão sem visitas e sem sol, estão apodrecendo em vida, sem saber quando sairão e se, quando saírem, quando irão se livrar das sequelas da privação de liberdade que ilegalmente sofreram.

A questão – essa chacina com os direitos humanos – dos noventa por cento nos remete a outro patamar: quem pode deter esse processo de agigantamento, não da expressão punitivista, inevitável ao Direito Penal, em maior ou menor extensão, mas desse ódio social militante? Quem devolverá a legalidade aos ilegalistas?

“Noventa por cento presos, afundados no pior dos infernos. Afundados e submersos num oceano de iniquidades do qual não conseguem sair.”

Acima desses juízes, outros juízes, preclaros e lídimos, consagraram a tese de que não é possível discutir matéria de prova no Habeas Corpus, único meio aos alcance desses deserdados para que tenham de volta a liberdade que lhes foi tomada. Não é possível, dizem, discutir as motivações da prisão, apenas são possíveis questionamentos formais. A ilegalidade ou a injustiça da prisão, estamos cansados de ouvir, ficam para a discussão de mérito que, com sorte, ocorrerá ainda este ano.

Desses noventa por cento, outros noventa por cento serão condenados; desses, cinquenta por cento terão regimes de penas menos gravosos e terão ficado presos imotivadamente por meses e meses a fio. Os demais, ah, esses se tornarão inquilinos do Inferno, reféns do sistema penitenciário mais degradante.

Noventa por cento. Noventa por cento. Noventa por cento.

“Arre, estou farto de semi-deuses.

Onde é que há gente neste mundo?” –  Fernando Pessoa. 

 

Roberto Tardelli é Advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway.

Ana Gabriela Sales

Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.

3 Comentários

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  1. Realmente, uma estatística

    Realmente, uma estatística assombrosa. Impossível que todo esse percentual de prisões preventivas encontrem amparo na legislação. É a sanha do encarceramento, mesmo sem culpa formada. Eis porque o sistema carcerário penal se encontra não operacional, uma verdadeira sucursal do inferno. 

    Tais presos estão fadados a se tornarem futuros “soldados” das facções criminosas tornando-se, assim, refratários a qualquer esforço para recuperação/regeneração. Transpostas os portões do inferno, as chances são mínimas para isso. Presídios e cadeias se transformaram em verdadeiras “universidades” do crime. 

    Dessa maneira, o Judiciário dá sua cota de contribuição para agudizar ainda mais essa tragédia humana.

    Pode-se, e deve-se, punir quem eventualmente comete crimes. Mas essa punição não pode ser antecipada. A regra deveria ser o encarceramento só após a eventual condenação, salvo as exceções previstas na Lei.

     

  2. Uma tragédia Dr. Tardelli

    Parabéns pela indignação.

    Dou um exemplo de hoje, no fórum criminal da Capital.

    Não sou crimiinalista mas ainda ontem, a pedido de familiares meus amigos, fiz uma audiência de um jovem afro-brasileiro preso em 01/11. Em duvidoso flagrante. 

    Um caminhão de entregas, com motorista e ajudante, foi assaltado às 13:06 hs, e levadas 7 caixas de frangos. Comunicado o assalto via rádio, cometido por quatro elementos, cerca de dez minutos depois, dois PMs de motocicletas detiveram três jovens, a cerca de um quilômetro. Um com 18, outro 17 e o terceiro com 16 anos. Todos eram vizinhos e de famílias amigas entre sí. Compõe um quadro incomum desse tipo de criminosos.

    Eles carregavam ´uma caixa de frangos´ que alegam haver encontrado à beira da rua, atrás de uma árvore. Todos são residentes na mesma rua ou travessas de onde foram detidos, réus primários, sem antecedentes. O meu cliente, com 18 anos, além do art. 157 responde também por corrupção de menorers, conforme a denúncia acolhida.

    No ato da abordagem não se questionou a existência de sete caixas, produtos do roubo. Tanto para os PMs quanto ao Delegado de Política eles negaram a participação no crime. No 46o DP, das duas vítimas, o motorista reconheceu dois dos acusados. A outra vítima, o ajudante não reconheceu nenhum deles.

    Diante dessa realidade dos autos e do depoimento dos PMs acreditei que seria tranquila a obtenção da revogação da prisão preventida decretada após a audiência de custódia. Ontem, após o depoimento dos policiais militares ficou confirmado que eles não perseguiram os assaltantes. Que foram encontrados a cerca de um quilômeto do local. Decorridos cerca de dez minutos após o fato.

    As vítimas, residentes no interior do estado, serão ouvidos por precatória prevista apenas para 22/02.

    Para minha surpresa, ao final, indaguei da Juíza se consultaria a Promotora obre o nosso pedido de revogação da prisão preventiva que estava protocolada nos autos. Seria normal a apreciação após o depoimento das testemunhas.

    A Magistrada de forma áspera respondeu que já haviam conversado – portanto antes da oitiva dos PMs – e que o pedido estava indeferido, segundo ela, para assegurar a regular instrução do processo.

    Essa a cultura do aprisionamento que viola a Carta Magna. Essa a política que joga centenas de milhares de jovens pobres para a condição de exército de reserva do crime organizado.

    E ao final, quando o poder judiciário reconhecer a evidência de falta de certeza e convicção decorrente da fragilidade senão da falta de provas…?

     

     

  3. olha só…ninguém está ligando pra isto aí…

    As pessoas são mau tratadas em hospitais, escolas, transporte público e ninguém se indigna com isto…esta é a vida no Brasil. 

    O país é muito grande só vejo solução com divisão de território.

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