Armando Coelho Neto
Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo.
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Que tiro foi esse? Tiro no rosto é ódio, mas não mata ideias, por Armando Coelho Neto

Ilustração – arte Banksy

Que tiro foi esse? Tiro no rosto é ódio, mas não mata ideias

por Armando Rodrigues Coelho Neto

O primeiro e o segundo tiro teriam sido como alívio de segurança. Mas, o terceiro a deixou alerta; o quarto desassossegada; o quinto e o sexto a cobriram de vergonha; o sétimo e o oitavo foram o horror… o décimo terceiro tiro foi em mim.

Mais ou menos com essas palavras, a escritora Clarice Lispector descreve a morte de um bandido no conto “Mineirinho”. A indignação e perplexidade da narradora são confusas, pois ao mesmo tempo em que reconhece os crimes do bandido, ela se descobre absorta diante dos trezes tiros. Numa entrevista à TV Cultura, Clarice fala de sua angústia dizendo: “ele morreu com treze balas, quando uma só bastava… Eu era o Mineirinho massacrado pela polícia. Qualquer que tivesse sido o crime dele, uma bala bastava. O resto era vontade de matar, era prepotência”. Mas, do ponto de vista social, a morte de um bandido com treze tiros não provocaria indignação pois o crime já estaria justificado pelo rótulo: bandido. Se os tiros fossem contra uma pessoa de bem causaria indignação…

Tudo explicado e resolvido, Mineirinho era bandido, seria um cadáver comum a mais, como disse irresponsavelmente uma tresloucada desembargadora, com base numa insólita mensagem de uma amiga. Segundo consta, ela teria dito à jornalista Mônica Bergamo, que “a tal Marielle (Franco) não era apenas uma ‘lutadora’; ela estava engajada com bandidos! Foi eleita pelo Comando Vermelho e descumpriu ‘compromissos’ assumidos com seus apoiadores”. A morte da vereadora seria consequência de cobrança de “dívidas”. E mais: “qualquer outra coisa diversa é mimimi da esquerda tentando agregar valor a um cadáver ‘tão comum’ quanto qualquer outro”, afirmou a destrambelhada barnabé do judiciário.

Descuido à parte, no fundo, a mensagem desumana batia com os anseios da tal desembargadora. A vítima era negra, lésbica, ativista e de origem pobre. Portanto, reunia todos os estigmas capazes para se dizer: bem feito! Quem mandou defender bandidos. Mariella estaria equiparada ao Mineirinho e foi atingida por quatro dos treze tiros disparados. Pela proximidade e premeditação aparente do delito, um só tiro bastava. Mas foram quatro. O resto foi “confere” (como se diz na marginalidade – aqui incluída a policial) e vontade de matar, como acentuou Clarice. Estranho paralelo, esse de misturar a morte de um bandido com a de uma militante dos direitos humanos, mas cuja campanha teria sido paga pelo Comando Vermelho, segundo a juíza. Aliás, não se sabe a reação dela quando souber que na área sob controle do “comando”, a vereadora arrebanhou míseros 50 votos.

O crime teve repercussão internacional, mas entre críticas ficou no ar um quê de “lá é assim mesmo, eles se entendem”. Afinal, entre 2016 e a data da morte de Marielle, 36 vereadores foram assassinados. Afinal de contas, em nome de um mercado corrupto e sem ética, a presidenta honesta deles foi destituída em nome da ética e do combate à corrupção. Afinal, o poder judiciário tem partido, dá sustentação à quadrilha de Fora Temer e faz parte de um acordão nacional. Afinal, se uma juíza diz que foi “um corpo como qualquer outro”, é porque a violência e a matança estão banalizadas e institucionalizadas. Afinal de contas, as autoridades brasileiras ignoraram comunicados sigilosos da ONU sobre ameaças contra pelo menos 17 ativistas. Afinal, um bando de juizecos impõe sua moral elitista e seletiva contra quem bem entende.

O fato é que o país vive sob aparente prevalência de psicopatia social. Sob o ponto de vista individual, “A psicopatia é uma alteração do desenvolvimento… o indivíduo não forma uma área cerebral específica. Hoje se sabe que essa área é responsável pelo caráter. E o caráter é o quanto você respeita o outro. Essa área não funciona. Não pega nem no tranco. A pessoa não enxerga o outro como a si próprio, como uma pessoa a ser respeitada. Ele não tem essa empatia… A psicopatia é um defeito do desenvolvimento cerebral… O caráter não se forma nessas pessoas… Às vezes a gente pensa ‘eu vou matar o cara que fizer alguma coisa com o meu filho’, mas você não consegue matar porque o teu caráter não deixa”, diz em entrevista Hilda Morana, doutora em Psiquiatria Forense pela Universidade de São Paulo (USP), sobre um criminoso irrecuperável.

Para a ciência, a psicopatia é caracterizada entre outras características pelo défice de controle de impulsos, pelo não sentimento de culpa, vergonha e ou empatia. A rigor, um psicopata não é necessariamente um criminoso. Desse modo, dizem os especialistas, é possível encontrar psicopatas entre pessoas bem sucedidas, acima das suspeitas. Estão presentes na política, judiciário, grandes empresas, instituições religiosas. Não raro, costumam ter os seus próprios interesses sempre em primeiro lugar. É justamente aí que os executores do crime se nivelam a tal desembargadora e demais pessoas que repassaram mensagens desqualificando a memória da vítima. No fundo, assassinos, juíza, a amiga dela e replicadores da mensagem muito se parecem. Há implícita leitura psicopata de que a vítima “defendia bandidos” e por essa razão merecia morrer, provar de seu veneno.

É difícil encontrar olhares imparciais sobre o assunto, sobretudo pelas derivantes na área política. Há muitas controvérsias que envolvem o assassinato da vereadora Marielle Franco. Sequer a mais primária das questões policiais pode ser respondida com segurança: “a quem interessa o crime?”. A quem interessa mais a intervenção no Rio de Janeiro? Quem está diretamente insatisfeito com a intervenção militar naquele estado? Aos bandidos interessaria assassinar a suposta “protetora de bandidos”? A quem politicamente traria dividendos?

Não arriscaria resposta. Prefiro me deter na violência de uma sociedade hoje movida a ódio. Nesse contexto, um criminalista ligado à Comissão de Justiça e Paz/SP me relembrou um jargão consagrado nos tribunais do júri e na antologia jurídica: “tiro no rosto é tiro de ódio”. Desse modo, sob o ponto de vista da psicopatia, os autores dos disparos estão muito próximos do ideário móvel do golpe. É no seio dele que reinam descaso com a vida humana, preconceito, elitismo, egoísmo, ganância, busca por pena de morte e portes de arma.

Que tiro foi esse? Foi tiro de ódio, ainda que tiros não matem ideias.

Foi um tiro em nós!

Armando Rodrigues Coelho Neto – jornalista e advogado, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-integrante da Interpol em São Paulo

 

Armando Coelho Neto

Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo.

7 Comentários

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  1. Onze fitas, de Fátima Guedes (a verdade não rima)

    Onze fitas (Fátima Guedes)

    Por engano, vingança ou cortesia
    Tava lá morto e posto, um desrregrado
    Onze tiros fizeram a avaria
    E o morto já tava conformado
    Onze tiros no morto e pra que tantos
    Esses tempos não tão pra ninharia
    Não fosse a vez daquele um outro ia
    Deus o livre morrer assassinado
    Pro seu santo não era um qualquer um
    Três dias num terreno abandonado
    Ostentando onze fitas de ogum
    Quantas vezes se leu só nesta semana
    Essa história contada assim por cima
    A verdade não rima
    A verdade não rima
    A verdade não rima…

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=4hlDA2J9X34%5D

  2. Que tiro….

    Vivemos um transe de Esquerdopatia Social !!! A morte desta Vereadora deve causar horror e indignação mesmo. Mas horror e indignação não por sua militância ideológica e trunfos polítcos. Deveria causar horror e indignação, da mesma forma, caso fosse a morte do Motorista. Dos 26 Policiais trucidados somente neste ano no RJ. Das crianças e moradores de favelas, que geralmente não tem nem o nome divulgado. Entre brigas e ganhos políticos, ficou a Vida das Pessoas , ainda mais ameaçadas e menos importantes. É a face mais evidente da nossa farsa democrática. E tem gente que diz não entender o Brasil de 2018? O Brasil se explica.     

  3. A desembargadora deu mais um tiro em Marielle

    Estamos mal… Porque o que tem de psicotico nas redes sociais, não é pouca coisa. O que sempre observei no Brasil é que nos temos uma sociedade autoritaria tanto endogena quanto exogena, mas que difere. Os filhos, os bem-amados, são tratados geralmente com condescendência e se os pais são autoriatios em algumas coisas, geralmente são laxistas em muitas outras. Talvez venha desse autoritarismo/laxismo sem muito dialago tanto num quanto no outro essa geração muito mais impulsiva que as passadas. E a ditadura militar colaborou muito para essa falta de dialago entre pais e filhos.

    Quanto a tal desembargadora… Fico com pena das pessoas simples e pobres que um dia foram julgadas por ela.

  4. a parte mais híbrida da guerra: a morte

    < Sequer a mais primária das questões policiais pode ser respondida com segurança: “a quem interessa o crime?” >

    As operações de assassinatos seletivos são empregadas amplamente pelo eixo hegemônico na Ibero-América: “Cuerpos maniatados, disparos certeros en la cabeza u otras partes vitales, signos claros de tortura y testimonios de sobrevivientes que describen claramente un modus operandi y patrones de ejecución, que parecen demostrar la existencia de ¨escuadrones de la muerte¨ a la remembranza de la década de los años ochenta” @ Anillos de Muerte: Escuadrones a la sombra 2/4. Essas operações geram resultados exploráveis midiaticamente no contexto da violência geral. Ousá-la abertamente no Brasil com tais características… A operação contra Marielle passou muito do padrão “sombra”, avançando para false flag, pelo que não terá sido terceirizada. Isso a transforma em baixa de guerra, fuzilada por serviço estrangeiro em solo brasileiro. Ocorre que, considerada relação custo-benefício, como false flag de faseamento, a operação parece ainda assim injustificável. Salvo se agregarmos um valor de… retaliação. O espectro do Rio da Dúvida quem sabe. Roosevelt perdeu um filho e o outro se matou depois da expedição. Ele próprio delirou de febre e quase ficou na floresta. Em seu diário escreveu mais de uma vez que o coronel queria matá-los. Era Rondon. O rio hoje tem seu nome. Justa homenagem.

    1. False flag

      A se considerar o comportamento da globo com relação ao episódio e a súbita “simpatia” pela vereadora, tudo leva a crer na hipótese de false flag sim,  e cujos desdobramentos tendem a ser mais sinistros.

    2. erratum

      “Roosevelt perdeu um filho e o outro se matou depois da expedição.”

      A informação recobrada sem tempo de consulta ao livro, inconsistente. Sobre o primeiro filho, erro. Conferirei depois o que me levou à confusão. Quanto ao segundo, a doença contraída na expedição teria sido importante no quadro do suicídio duas décadas à frente.

  5. Início, fim e meio

    Marielle foi morta pelo aparato repressivo ASSASSINO do Estado brasileiro.

    Trocam os nomes e datas, mas são os mesmos jagunços a trucidar os intocáveis dessa terra.

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